Lágrimas por um jovem prefeito

Imagem: Onur
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Por MARCO MONDAINI*

Quando um gestor é celebrado como ídolo pop, mas desconhece os clássicos que moldaram seu próprio chão, algo está fora do lugar. Pernambuco, terra de insurreições e poesia, merece mais do que lágrimas de fãs e citações improvisadas

1.

Estávamos eu e meu filho de oito anos num dos polos das festividades de São João na cidade do Recife quando uma pequena aglomeração nos chamou a atenção. Tratava-se da passagem do jovem prefeito da capital pernambucana, João Campos, pela avenida que leva até o ponto originário da cidade – o Marco Zero.

Como costuma acontecer em tais ocasiões, um amontoado de aparelhos celulares ergueu-se na direção do alcaide com a intenção de registrar o seu desfile. Porém, aquilo que mais me impressionou foi a cena de uma jovem mulher que, com o rosto molhado, dizia para que todos a ouvissem: “Eu vi o prefeito! Ele me fez chorar!”.

Já vi pessoas se emocionarem até as lágrimas por terem visto (de perto ou de longe) lideranças políticas do campo de esquerda como o ex-governador Leonel Brizola e o presidente Lula, mas as lágrimas da jovem acima citada tinham um caráter novo, mais assemelhadas àquelas que são vertidas por adolescentes diante de estrelas da música pop.

Pois bem, há poucos dias, li que o jovem alcaide tem conselhos a dar ao governo Lula a fim de que este melhore a sua avaliação em queda numa sequência de pesquisas. Do alto do meu pessimismo, desconfio que o sucesso de João Campos nas redes digitais não o credencia ao posto de conselheiro do governo Lula 3, da mesma forma que a entrada de Sidônio Palmeira na Secom não impactou positivamente a sua popularidade até o momento, muito pelo contrário.

Comunicação é meio e deve estar sintonizada a um “fazer política” que tenha raízes intelectuais no campo que o originou historicamente, para além de familismos. Narro, a seguir, um episódio que parece ter passado despercebido pelos ambientes comunicacionais com o propósito de ilustrar o que acabo de afirmar.

2.

Reeleito prefeito da cidade do Recife, em 6 de outubro de 2024, com uma votação recorde de 725.721 votos (78,11% dos votos válidos), João Campos foi o entrevistado do programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, no dia 28 de outubro, três semanas após a retumbante vitória eleitoral ainda no primeiro turno.

Então, no último bloco do programa, a jornalista Maria Cristina Fernandes, do jornal Valor econômico, fez uma pergunta ao jovem gestor de 31 anos, que o deixou visivelmente desconcertado: quais teriam sido os três livros que o ajudaram a formar a sua visão de Brasil?

Sob certa pressão da jornalista, o filho do ex-governador de Pernambuco por dois mandatos, Eduardo Campos, e bisneto do igualmente ex-governador de Pernambuco por três mandatos, Miguel Arraes, citou os três livros, na seguinte ordem: (i) Como as nações fracassam, dos economistas Daron Acemoglu e James Robinson (2012); (ii) Utopia para realistas, do historiador Rutger Bregman (2014); (iii) Getúlio Vargas – a biografia em 3 volumes escrita pelo jornalista Lira Neto (2012-2014).

Causou-me certo constrangimento não ter ouvido da boca de uma jovem liderança do campo político de centro-esquerda, ex-estudante da mesma Universidade Federal de Pernambuco onde leciono (inobstante o fato de ter feito a sua graduação no curso de Engenharia Civil) e com uma longa vida política pela frente, uma única referência sequer a obras constitutivas da forma (em chave progressista) como a compreensão do Brasil foi sendo construída no decorrer dos séculos XIX e XX, a exemplo daquelas de cinco renomados intelectuais nascidos no Recife e de dois nascido na Paraíba, mas que têm as suas vidas vinculadas visceralmente à cidade do Recife, governada atualmente por João Campos:

(1) O abolicionismo, de Joaquim Nabuco (1883); (2) Libertinagem, com o clássico “Vou-me embora pra Pasárgada”, de Manuel Bandeira (1930); (3) Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna (1955); (4) Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto (1955); (5) Formação econômica do Brasil, de Celso Furtado (1959); (6) Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire (1974); (7) Crítica à razão dualista Ornitorrinco, de Francisco de Oliveira (1972 e 2003).

É possível que tal lembrança não passe de um ato de pedantismo intelectual frente ao jovem prefeito e presidente nacional do Partido Socialista Brasileiro (PSB), que surfa na comunicação levada a cabo no espaço cacofônico das redes digitais.

Seja como for, aproprio-me do título do clássico frevo pernambucano composto por Luiz Bandeira para dizer que, isso sim, “é de fazer chorar”.

*Marco Mondaini, historiador, é professor titular do Departamento de Serviço Social da UFPE e apresentador do programa Trilhas da Democracia. Autor, entre outros livros, de A invenção da democracia como valor universal (Alameda). [https://amzn.to/3KCQcZt]


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