Levados pelas marés

Frame de "Levado pelas marés", filme dirigido por Jia Zhangke/ Divulgação
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Por FRANCISCO FOOT HARDMAN*

Considerações sobre o filme de Jia Zhangke, em exibição nos cinemas

1.

A mais recente criação cinematográfica de Jia Zhangke, Levados pelas marés, cuja produção finalizou em 2024, sem dúvida resulta num filme complexo e enigmático. Síntese explícita de fragmentos filmados em 2001, 2006, 2017 e 2022, que foram magistralmente editados a ponto de constituir uma narrativa estranhamente coesa entre densidade histórica e lirismo melancólico, difícil não sair tocado pelas suas imagens. Que dialogam, sem respostas fáceis nem aparentes, com toda a filmografia do cineasta, com suas visões da China contemporânea, que são também os impasses e desafios de toda a humanidade neste mundo. E neste tempo.

Muito já se falou sobre a intrigante cena de abertura. Um homem, segurando uma ferramenta de trabalho, vê o fogo queimar o mato ribeirinho, a cidade e fábricas ao fundo. E a banda de rock, nos lembra, retomando versos de tradição clássica chinesa: “Nenhuma queimada mata todas as ervas daninhas / Vão crescer de novo na primavera”. Logo em seguida, as imagens esmaecidas, quase desfiguradas, da chegada do novo século (2001), sugerem tantas dúvidas em meio, talvez, a falsas euforias.

Por sorte, temos a melhor “fio-condutora” neste filme: a estupenda atriz Zhao Tao, que vive o papel de Qiaoqiao, dançarina, modelo ou cantora de ocasião. Estamos em Shanxi, norte da China, província natal de Zhao Tao e de Jia Zhangke. Estamos em Datong, importante cidade mais ao norte de Shanxi, que se expandiu em tempos modernos graças à mineração do carvão.

Ninguém poderá exigir que Datong nos apareça por suas famosas ruínas budistas, alguma vez vislumbradas ao fundo de uma cena. Vizinha do território da Mongólia Interior, seu clima é semiárido, com invernos rigorosos e tempestades de areia mais duras que em Pequim, a “capital do Norte”, cujos ventos, muitas vezes, como lembrava velho ditado, “cortam como faca”.

Será, ao contrário, diante desse grupo impressionante de homens marcados pela dureza da vida de mineiros, postados coletivamente nas escadas de uma fábrica, que a câmera fixa nosso olhar. Em contraponto direto com uma alegre reunião de mulheres, num espaço fechado em que celebram seu dia cantando estrofes de antigas canções. Comoventes suas vozes e rostos. Sem retoques seus sorrisos e rubores. Nessas imagens, entre tantas outras, vemos uma China tão bela e pobre como uma república popular que se constrói.

E logo adentramos o velho Palácio da Cultura dos Trabalhadores, espaço em abandono, que está sendo recuperado como lugar de lazer especialmente dirigido para os mineiros aposentados. E, ali, então, num palco rústico, apresenta-se uma linda ópera popular tradicional de Shanxi, cantada por um grupo extenso de mulheres, que se sustentam graças às gorjetas recebidas de seu público masculino. E é essa interação que volta a dar vida ao local. Canto antigo, damas afinadas em completa harmonia, homens velhos: o tempo se refaz.

2.

Mas o ponto nodal da narrativa é a súbita separação de Qiaoqiao e seu namorado Bin (vivido pelo ator Li Zhubin), empresário da noite meio picareta, que resolve partir para Chongqing, bem longe, no sudoeste central da China, a maior cidade do país.

Estamos de volta, assim, às cenas inconfundíveis da obra-prima de Jia Zhangke, o filme Em busca da vida (2006), contemporâneo à construção da Barragem das Três Gargantas, no grande rio Yangtzé, que levou à remoção forçada de amplas populações, incluindo a cidade inteira e ribeirinha de Fengjie – na verdade apêndice urbano que pertencia à municipalidade de Chongqing. Pois para lá voltamos, pelas mãos e olhos de Qiaoqiao, que viaja em desespero à busca de Bin.

E, aqui, para além da tensão crescente entre os dois personagens, cercados de ruínas da cidade que cai e do rio que sobe, temos, talvez, uma chave exemplar de decifração do filme: na vida mais vale partir ou ficar? Nosso sonho de pacificar a alma e fazer nossa vida mais feliz se faz melhor no campo ou na cidade? Perguntas, evidentemente, sem resposta.

Façamos novo salto para a última parte do filme, que se passa em 2022, em pleno cenário da pandemia do Covid-19. Bin, velho e arruinado, depois de passar na promissora cidade de Zhuhai, província de Guangdong, sul da China, onde tem um choque frente à passagem do tempo e a chegada das novas tecnologias (as cenas com o velho-novo influencer na Tik Tok, Xing, são irônicas e impagáveis), volta a Datong, na esperança de recomeçar e, quem sabe, reconquistar Qiaoqiao. Desejos que logo se revelam impossíveis.

Qiaoqiao é hoje caixa num supermercado. Seu diálogo silente com um robô falante, numa das entradas da loja, é um dos pontos altos do filme. Seu rosto em desconsolo, mal coberto pela máscara de uso compulsório naqueles tempos, não pode ser “lido” pelo robô. Mas, ao surpreendê-la triste, este amável ícone da Inteligência artificial arrisca se tratar de causa amorosa, e vem com citação de Madre Teresa, sobre as relações íntimas entre amor e dor. E arremata com Mark Twain e o poder maior que o ser humano possui ao ter o riso a seu dispor.

Mas, neste caso, não há remédio. E Qiaoqiao prepara-se para uma corrida noturna nas ruas. São dezenas, e logo centenas de pessoas que correm pelas ruas vazias, como sobreviventes de um século ingrato. E, aqui, já fora da cena, a única pronúncia audível de Qiaoqiao, de resto muda por todo o filme o que apenas realça o brilhantismo de sua expressão corporal e facial: um grito na noite fria, temperada com pequenos flocos de neve que começam a cair, já no blecaute da tela, um grito solitário talvez de desabafo, talvez de revolta, o que resta por ora é correr, o compasso de tantos passos nas ruas é como uma bateria do acaso.

Lá atrás ficou Bin, estático na noite, com seu cadarço desamarrado. Neste grito de Qiaoqiao e nos versos da banda de rock que encerra o filme, vem, em ponto maior, o sentido de uma utopia calcada, dialeticamente – porque em oposição a este mundo crescente de hordas de refugiados e perseguidos – na fixidez doída, mas acolhedora, de sua terra natal: “apenas permaneço de pé na terra em que nasci”.

3.

Este final nos pareceu mais significativo, para o sentido geral do filme, do que sua abertura. E aqui, também, talvez, se possa decifrar o sentido daquela escultura, que desponta em várias cenas-momentos distintos do filme, servindo, não por acaso, como figura destacada em diversos cartazes de divulgação de Levados pelas marés, inclusive no Brasil.

É a figura de uma criança que parece voar e tem sua cauda envolta no planeta Terra. Ao que consta, essa obra foi instalada num parque infantil de Datong, ali pelos anos 1980. O diretor Jia Zhangke confessou, numa de suas entrevistas, que, ainda pequeno, indo passear desde sua vila natal, Fenyang, com sua mãe, em Datong, ficou fascinado por essa estátua, cujo título original se aproxima de “criança astronauta”.

Em contraste com uma notícia de jornal abandonado na ruinosa Fengjié, de uma viagem espacial chinesa, real, a escultura de um sonho infantil de conquistar o espaço infinito, pode ser um grito solitário, pode ser uma corrida na noite quase deserta e gelada, pode ser o olhar divagante de uma mulher que dança e canta e sorri com os olhos, e chora, mas permanece ali, de pé, correndo na noite em sua cidade, ali, de pé, na terra em que nasceu.[1]

*Francisco Foot Hardman é professor titular em Literatura e Outras Produções Culturais da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Minha China tropical: crônicas de viagem (Unesp).

Referência


Levados pelas Marés (Feng Liu Yi Daí).
China, 2024, 111 minutos.
Direção: Jia Zhangke.
Roteiro: Jia Jia Zhangke e Wan Jiahuan.
Elenco: Zhao Tao, Li Zhubin, Pan Jianlin, Lan Zhou, Zhou You

Bibliografia


Couto, José Geraldo. “Levados pelas marés”. A Terra é Redonda, 27 jun. 2025. Disponível em https://aterraeredonda.com.br/levados-pelas-mares-2/  

 Escorel, Eduardo. “Levado pelas marés, de Jia Zhang-Ke: a jornada de Qiaoqiao na China, de 2001 a 2023.” Piauí, 18 jun. 2025.

 Frondon, Jean-Michel; Salles, Walter (Org.). O mundo de Jia Zhangke. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

 Hardman, F. Foot. “A China e os nossos mundos”. O Estado de S. Paulo [Cad. Aliás], 4. nov. 2007, p. 207.

Hardman, F. Foot. “Breves comentários sobre ‘desigual e combinado’ nas relações interculturais contemporâneas”. Trabalhos em Linguística Aplicada. Campinas, mai./ago.2024, (62/63), p. 363-67.

Hardman, F. Foot. “Simultaneísmo e fusão na paisagem, na cultura e na literatura chinesa”. In: Musse, R. (Org.). China contemporânea: seis interpretações. Belo Horizonte: Autêntica, 2021, p. 129-162.

Mello, Cecília. The cinema of Jia Zhangke: realism and memory in Chinese film. Londres: Bloomsbury, 2019.

Noritomi, Roberto. “Levados pelas marés”. A Terra é Redonda, 21/11/2024. Disponível em https://aterraeredonda.com.br/levados-pelas-mares/

Pavam, Rosane. “Levados pelas marés”. 24 out. 2024 (blog da autora).

Soares, Camilo. “Deslocamentos marginais na China contemporânea nos filmes de Jia Zhangke”. In: Birman, D.; Hardman, F. F. (Org.). Exodus: deslocamentos na literatura, no cinema e em outras artes. Belo Horizonte: Relicário, 2020, p. 33-45.

Soares, Camilo. L’espace immatériel dans le cinema de Jia Zhangke: une politique du regard. Paris, L’Harmattan, 2020.

Nota

[1] O autor agradece especialmente à sua doutoranda Lu Zheng Qi, que muito o auxiliou na pesquisa e tradução de algumas imagens e expressões.


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