Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO*
A “guerra aos trabalhadores” e “morte aos proletários excedentes”, as palavras de ordem do suicidarismo que mora na essência do neoliberalismo
Essa nota dá continuidade a outra que foi publicada em dezembro de 2023 no site A terra é redonda, mas que não foi bem notada. Sob o propósito de caracterizar o extremismo neoliberal, ela recebera originalmente um título negativo, “não, não é fascismo”. O escrito, entretanto, saiu com um título afirmativo que também se mostrou bem justo, “extremismo neoliberal suicidário”. Ninguém deu bola, mas a questão é importante para o que vem vindo no século XXI com o ocaso do capitalismo.
O artigo tinha uma mensagem: eis que é preciso evitar usar a etiqueta “fascista” para caracterizar todos os extremismos de direita. Pois, esse costume impede uma melhor compreensão dessa prática política que, desde os anos 1980, vem buscando dar sustentação ao sistema fundado na relação de capital.
Eis que, como bem se sabe, essa normatividade subiu ao governo a partir do momento em que a “economia” nos países centrais, com a queda da taxa de lucro e o advento da estagflação, entrou em crise na década anterior. Por isso mesmo, essa programação ideológica continuou perseguindo esse objetivo nas décadas seguintes porque, se a crise conjuntural, que se expressou por meio de queda abrupta do PIB em meados dos anos 1970, foi superada, a tendência de quase-estagnação (baixa taxa de lucro) não pode ser revertida de modo sustentável.
A tese aventada é que o fascismo se caracteriza sempre por reconstruir o Estado na forma de uma “comunidade mítica”, enquanto o neoliberalismo tenta limitar ao máximo o Estado enquanto promotor de comunidade ilusória. Grosso modo, o fascismo responde a uma crise da hegemonia mantida pelo liberalismo, enquanto o neoliberalismo vem a ser uma resposta à crise econômica – não apenas conjuntural.
Eis que, por um lado, o Estado se faz necessário para manter a unidade do sistema, na forma de uma comunidade ideal, ocultando a oposição de classe engendrada pela relação de capital. E ele faz isso regulado e administrando a concorrência entre indivíduos e empresas, evitando que ela se transforme numa luta suicidaria de todos contra todos. Eis que é sempre possível que, nas condições de competição, a luta de classe recrudesça.
Por outro, o Estado tem de prover as condições da acumulação de capital, intervindo, se necessário, para suplementar os funcionamentos sistêmicos na superação das crises e na retomada do crescimento econômico. É, pois, a partir dessa determinação do Estado que se pode entender o neoliberalismo em suas formas insinuante e extremista.
Sim, trata-se sim de uma contradição: o Estado põe a comunidade na aparência, a nação, para permitir que a exploração, a expropriação e o jurismo possam prosperar como é da essência do sistema nucleado na relação de capital. Contudo, quando surge uma crise intensa e, mais ainda quando essa se torna estrutural – ou seja, quando a produção de mais-valor se torna insuficiente para remunerar o capital superacumulado – o Estado tem de intervir tanto na economia, na sociedade civil, quanto em si mesmo.
Aqui se quer examinar melhor um curso dentro da corrente do neoliberalismo, aquela que se apresenta como “credo libertário”, que se autodenomina de anarcocapitalismo e que está pontuando agora no governo da Argentina. Donde ela vem? Onde está a sua nascente na correnteza da ideologia econômica? Para onde ela vai? Ao governar, difunde liberdade ou despeja ditadura?
Desde logo, é preciso não confundir a corrente austríaca com a corrente neoclássica, as quais alagam partes distintas do campo da economia vulgar, que também é política. Eis que a primeira, desde Alfred Marshall, soe ser objetivista, ou seja, apresenta-se como um saber instrumental sobre o funcionamento do sistema econômico e, assim, como mera Economia, enquanto a segunda, desde Karl Menger, mostra-se como subjetivismo, como um saber sobre a essência suposta da sociabilidade humana apreendida a partir da vida econômica na economia mercantil generalizada.
Com Ludwig von Mises, nessa perspectiva fundadora, ela se viu como uma praxeologia, isto é, como uma ciência da ação humana em geral: “Na ocorrência dos fenômenos sociais prevalecem regularidades as quais os homens têm de ajustar suas ações, se deseja ser bem-sucedido. É inútil abordar os fatos sociais com a postura de um censor que os aprova ou desaprova segundo padrões arbitrários e julgamentos de valor subjetivos. (…) A transformação do pensamento que os economistas clássicos haviam iniciado só foi levada às suas últimas consequências pela moderna economia subjetivista, que transformou a teoria dos preços de mercado numa teoria geral da escolha humana”. (Mises, 2010. p. 22-23).
Essa ciência é, na verdade, uma metafísica, uma pontuação que reifica e consagra como eterna a forma imediata de relação social consagrada no capitalismo. A máquina de guerra da filosofia clássica, como diz Ruy Fausto, vale-se sempre da posição de um fundamento primeiro para impor uma visão de mundo. E é esse operar que se vê aqui. Menger, em seus Princípios de Economia Política, para definir coisa como bem e homem como homo oeconomicus, emprega a teoria das quatro causas de Aristóteles: (a) causa final: “existência de uma necessidade humana”; (b) causa material: “a coisa possui qualidades (…) em nexo causal com a satisfação da referida necessidade”; (c) causa formal: “reconhecimento, por parte do homem, desse nexo causal”; (d) causa eficiente: “o homem poder dispor dessa coisa” (Menger, 1983, p. 244).
E esse tipo de fundamentação também aparece, de modo bem claro, no Manifesto Libertário (2013) de Murray Rothbard, um dos principais gurus de Javier Milei. Esse autor torna explícito, algo que está implícito no princípio acima citado de Meger. Eis que parte de um axioma que tira, não de sua cachola algo paranoica, mas da sociabilidade do capital que se institucionaliza, bem se sabe, por meio da imposição da propriedade privada. Para compreendê-lo bem é preciso ter em mente que “pessoa” não significa aí “humanidade”, mas “propriedade privada de si mesmo”.
O credo libertário está baseado num axioma central: o de que nenhum homem ou grupo de homens pode cometer uma agressão contra a pessoa ou a propriedade de qualquer outra pessoa. Ele pode ser chamado de “axioma da não-agressão”. A “agressão” é definida, assim, como o uso ou ameaça de violência contra a pessoa ou propriedade de qualquer outro indivíduo. (Rothbard, 2013, p. 17).
A “livre escolha humana” posta em primeiro lugar por Mises, portanto, está restrita – “não-livre” – diante propriedade privada, que Rothbard alavanca como princípio primeiro. A agressão original de uns contra os outros em que consiste a propriedade privada fica desde então proibida de prosperar; doravante, portanto, não pode mais haver agressão de uns contra os outros, ou seja, de não-proprietários contra proprietários.
Desse principismo decorre, por dedução, o teorema principal do libertarismo: “Se nenhum homem pode cometer uma agressão contra outro; se, em suma, todos têm o direito de estarem “livres” da agressão, então, isto implica diretamente que o libertário se encontra firmemente ao lado (…) das “liberdades civis”: a liberdade de falar, publicar, se reunir, e se envolver em qualquer um dos chamados “crimes sem vítimas”, como pornografia, desvios sexuais, e prostituição” (idem, p. 37).
Se as “liberdades civis” são condição da liberdade da forma mercadoria, os “crimes sem vítimas” figuram aí, evidentemente, como um eufemismo para o direito do homem burguês principalmente de explorar os proletários – ou seja, aqueles que têm apenas a si mesmo como propriedade e, portanto, não tem propriedade alguma. Pois, como bem se sabe, a prostituição revela de modo exemplar a natureza da relação de dinheiro que, para os liberais, enobrece o capitalismo. E esse ponto é importante porque a propriedade privada aparece assim como um direito de despossuir de dignidade – mas também de expropriar, explorar, sugar juros – aqueles que são apenas os outros.
Dois corolários delirantes decorrem dessa axiomática sociológica. O primeiro deles vem para negar a existência da sociedade: “o individualista” – diz Rothbard – “sustenta que apenas os indivíduos existem, pensam, sentem, escolhem e agem; e que a “sociedade” não é uma entidade viva, mas apenas um rótulo para o conjunto dos indivíduos que interagem” (idem, p. 53). O segundo vem para aplastar o Estado e mesmo o governo como agência supraindividual: “o libertário vê que ao longo da história e até os dias de hoje existiu um agressor central, dominante e preponderante sobre todos os direitos: o Estado” (idem, p. 38).
Sobra daí, também, outro corolário que precisa ainda ser provado na prática: eis que, para ele, é preciso abolir o governo central, pois todos os bens públicos (saúde, educação, segurança etc.) – e não só os bens ditos privados – devem ser providos pelas empresas privadas (idem, p. 231). Eis, pois, a justificativa última da compulsão de privatização que acomete o capitalismo contemporâneo.
Vê-se, pois, que o libertário, enquanto figura ideológica, parece acreditar religiosamente na aparência do sistema econômico do capital: ao contrário do fascista que quer pôr a comunidade ilusória como comunidade mítica, ele quer abolir o Estado. Pretende suprimi-lo como forma da comunidade ilusória para instituir outra forma de poder e de violência concentrada, a qual poderia ser considerada um “sistema de governança estritamente privada do capitalismo”.
Rothbard não quer abolir, portanto, a função societária do Estado. Trata-se evidentemente de uma protopia e que tem, por isso mesmo, a sua serventia. Não se trata, portanto, nem de utopia ou de distopia que são noções negativas; trata-se de algo que pode ser posto afirmativamente. De qualquer modo, aquela que era da filosofia clássica se transforma agora numa máquina de guerra política, sobretudo na esfera da política econômica.
O libertarismo neoliberal aparece na cena eleitoral e política contemporânea como oposição radical não só ao socialismo centralista como também à socialdemocracia que, diante das desgraças e dos conflitos sociais criados pelo próprio capitalismo, quer transformar a comunidade ilusória – até certo ponto – numa comunidade real.
O neoliberalismo se opõe ao programa político que predominou no pós-guerra, alegando que ele, mediante tal propósito, corrompe as normas “pétreas” da propriedade privada; no entanto, o que quer não é impedir a corrupção no interior da classe dominante, mas a transferência da renda e da riqueza supostamente ganha já (ou a ganhar) pela classe dominante, para cuidar das fraturas sociais criadas pela expropriação, exploração e a sugação de juros que o modo de produção capitalista gera e faz prosperar.
É exemplar nesse sentido o que ocorre atualmente na Argentina. Como sabe, a classe dominante nesse país, da média frequentadora de Miami até a burguesia extravagante, mantém o hábito de guardar a sua riqueza financeira em dólares ou em título dolarizados. E essa tradição cria um enorme problema para a manutenção da estabilidade da economia argentina.
Maurício Macri, que tomou posse como presidente no final de 2015, após doze anos de domínio peronista, governou segundo os cânones do neoliberalismo. Deixou flutuar o câmbio permitindo aos argentinos comprarem moedas estrangeiras com mais facilidade e sob pouco controle. Em 2019, tomou um empréstimo de 50 bilhões de dólares para tentar administrar os déficits do balanço de pagamentos que insistiam em ameaçar o funcionamento do sistema. Mas esse aporte acabou financiando a fuga de capitais já que a economia desse país não conseguia decolar com taxas de acumulação mais altas. O investimento na economia capitalista, como se sabe, depende de oportunidades lucrativas encorajantes e suficientes e elas não apareceram na Argentina.
Ora, um empréstimo externo precisa ser pago na mesma moeda em que foi tomado: consiste, pois, num alívio temporário que traz possivelmente uma dor maior depois de algum tempo. À medida que chegou a hora de pagar, a demanda adicional de dólares agravou o problema cambial; o desequilíbrio passou então a exigir a desvalorização constante do câmbio. Ora, essa queda do valor do peso diante do dólar, cria uma inflação generalizada porque os custos dos importados se elevam, mas também, principalmente, por causa da indexação informal dos preços ao dólar, algo que ocorre nessa economia capitalista viciada nesse dinheiro estrangeiro.
Diante desse impasse, diante da ruína econômica em andamento, o governo libertário eleito em dezembro de 2023, ao invés de tomar medidas que coagissem a burguesia a manter a sua riqueza financeira na moeda local, obrigando os “argentinos” dolarizados a se tornarem argentinos pesados, optou por produzir uma enorme recessão com o fim de alcançar um ajustamento temporário para, ao fim e ao cabo, obter a dolarização completa da economia argentina.
Ao invés de fazer uma agressão à burguesia, optou por fazer uma agressão aos trabalhadores em geral por meio, evidentemente, dos mecanismos de mercado. O libertarismo que agita a bandeira da liberdade, à medida que a sua essência aparece, revela-se como promotor da miséria e da opressão para a grande maioria da população. O libertarismo emerge assim como suicidarismo. E de modo muito bem fundamentado!
Para mostrar essa fundamentação, é preciso mencionar mais um corolário do teorema libertário. A propriedade de si, como se sabe desde John Locke, é trabalho: “…cada um guarda a propriedade de sua própria pessoa; (…) o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedades suas” (apud, p. 46). O que decorre daí? O que fazer então, com o desemprego, com a capacidade de trabalho que não encontra função no mercado de força de trabalho?
Eis que, para Rothbard, “boa parte do desemprego constante da classe baixa e assim, por consequência, da pobreza, é uma opção voluntária por parte dos próprios desempregados”. Ou seja, trata-se de uma escolha feitas pelos próprios trabalhadores livremente. Logo, não se pode exigir que os “burgueses que trabalham duro sejam coagidos a sustentar aqueles que (…) são claramente disfuncionais para a sobrevivência da sociedade”. Se a pobreza e o desemprego decorrem de decisões livres, o encargo desses opróbrios não pode ser passado para outros.
A partir desse curso de argumentos, o libertário aqui revirado chega a uma conclusão bem reveladora: “em suma, que seja abolido o sistema de bem-estar social”. (Rothbard, 2013, p. 184). Sim, são estas, “guerra aos trabalhadores” e “morte aos proletários excedentes”, as palavras de ordem do suicidarismo que mora na essência do neoliberalismo.
*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Capitalismo no século XXI: ocaso por meio de eventos catastróficos (CEFA Editorial) [https://amzn.to/46s6HjE]
Referência
Menger, Carl – Princípios de Economia Política. Coleção os Economistas: Jevons/Menger. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
Mises, Ludwig von – Ação humana – Um tratado de Economia. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.
Rothbard, Murray N. – O manifesto libertário – Por uma nova liberdade. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2013.
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