Literatura na quarentena: Quarenta dias

Imagem_Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Daniel Brazil*

Comentário sobre o romance de Maria Valéria Rezende

Maria Valéria Rezende é uma das mais prestigiadas escritoras brasileiras contemporâneas. Além de vasta obra infanto-juvenil, escreveu contos, crônicas e romances que conquistaram uma legião de admiradores.

Quarenta Dias, lançado em 2014, talvez seja sua obra mais visceral. A autora revela que viveu por vários dias nas ruas de Porto Alegre para criar a história de Alice, uma professora aposentada que é coagida pela filha a abandonar seu apartamento em João Pessoa para cuidar de um futuro neto, na capital gaúcha.

A narrativa, escrita em forma de diário, revela de forma quase brutal a perturbação emocional de Alice, que mal chega à cidade e é abandonada pela filha, que vai estudar no exterior com o marido. Um velho caderno, com uma Barbie na capa, passa a ser o depositário das frustrações e da revolta da protagonista. Inconformada, sai pelas ruas procurando o filho desaparecido de uma amiga da Paraíba.

Algumas referências são evidentes. Os quarenta dias do título ecoam o episódio bíblico de Jesus andando no deserto, em jejum. O nome da protagonista nos remete à personagem de Lewis Carroll, em suas aventuras erráticas por outras realidades.

A Alice de Maria Valéria Rezende passa fome e frio, enquanto peregrina pela periferia de Porto Alegre, entrando em favelas e canteiros de obras, dormindo em bancos da rodoviária, tentando assimilar o golpe de ter sido enganada pela própria filha. Sua procura por um incerto Cícero tem algo de autoflagelo, mas também de sublimação, como se o reencontro do filho de outra preenchesse o vazio surgido em sua vida.

Mais que o enredo, somos envolvidos pelo domínio narrativo da escritora, que alterna trechos do diário com um relato posterior, deixando intencionalmente algumas páginas incompletas, frases sem ponto final. Estes diálogos com a Barbie que enfeita a capa do caderno refletem o estado aflitivo e confuso da personagem, que vai encontrar alívio em algumas figuras que cruzam seu caminho, seres que também vagam pela cidade, mas que guardam alguns valores como solidariedade e gratidão. 

Nesses tempos sombrios de quarentena, conhecer os Quarenta Dias de Maria Valéria Rezende é mais do que uma simples coincidência numérica. É um encontro com a literatura brasileira do século XXI, através de uma de suas maiores representantes.

Leitura perturbadora, que leva o leitor a penetrar em um mundo invisível, uma Porto Alegre negra, nordestina, pobre e desigual, distante da mídia e do cartão postal. Mas é nesse país sem maravilhas que Alice, sem nenhum coelho para guiá-la, encontra a saída para seu pesadelo.

*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.

Referência

Maria Valéria Rezende, Quarenta dias. Rio de Janeiro, Alfaguara, 2018 (https://amzn.to/45AS518).

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Bolsonarismo – entre o empreendedorismo e o autoritarismo
Por CARLOS OCKÉ: A ligação entre bolsonarismo e neoliberalismo tem laços profundos amarrados nessa figura mitológica do "poupador"
Fim do Qualis?
Por RENATO FRANCISCO DOS SANTOS PAULA: A não exigência de critérios de qualidade na editoria dos periódicos vai remeter pesquisadores, sem dó ou piedade, para um submundo perverso que já existe no meio acadêmico: o mundo da competição, agora subsidiado pela subjetividade mercantil
Carinhosamente sua
Por MARIAROSARIA FABRIS: Uma história que Pablo Larraín não contou no filme “Maria”
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Distorções do grunge
Por HELCIO HERBERT NETO: O desamparo da vida em Seattle ia na direção oposta aos yuppies de Wall Street. E a desilusão não era uma performance vazia
Carlos Diegues (1940-2025)
Por VICTOR SANTOS VIGNERON: Considerações sobre a trajetória e vida de Cacá Diegues
O jogo claro/escuro de Ainda estou aqui
Por FLÁVIO AGUIAR: Considerações sobre o filme dirigido por Walter Salles
Cinismo e falência da crítica
Por VLADIMIR SAFATLE: Prefácio do autor à segunda edição, recém-publicada
A força econômica da doença
Por RICARDO ABRAMOVAY: Parcela significativa do boom econômico norte-americano é gerada pela doença. E o que propaga e pereniza a doença é o empenho meticuloso em difundir em larga escala o vício
A estratégia norte-americana de “destruição inovadora”
Por JOSÉ LUÍS FIORI: Do ponto de vista geopolítico o projeto Trump pode estar apontando na direção de um grande acordo “imperial” tripartite, entre EUA, Rússia e China
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES