Por CÉSAR LOCATELLI*
Comentário sobre o livro recém-lançado
“No bairro periférico não existe lei, não existe justiça. E é por meio dessas sete histórias que cada mãe coloca sua dor para fora e busca pela justiça da mudança”, registra a contracapa do livro Mães em luta, escrito por sete mulheres que tiveram seus filhos assassinados pelo Estado.
Mães em luta é resultante do desenvolvimento de um dispositivo grupal clínico-político de escrita constituído por uma dimensão criativa, por uma dimensão de experimentação artesanal, com a produção de bordados e textos individuais e coletivos e, por fim, por uma dimensão de cuidado com a palavra do outro, com a expressão de dor e com a sustentação do grupo.
O grupo de nove profissionais, que estiverem ao lado das mães nessa caminhada, sublinha, ainda, que: “A espera pela publicação deste livro enquanto corpo gerado a muitas mãos foi comparada, por uma das mães, ao período de gravidez: preparação cuidadosa, expectativa sobre o que virá, alegria e esperança vital. À morte assassina, sistêmica e brutal impetrada pelo Estado violento e racista, a vida responde em suas múltiplas formas e linguagens, reconfigurando resistências, re(existências)”.
“A investigação dos crimes e punição dos responsáveis não existe”
A frase acima, de Paulo Sérgio Pinheiro, reconhecido porta-voz da luta pelos direitos humanos, é complementada por seu depoimento para a orelha do livro: “Este livro, Mães em luta, reúne diversos depoimentos de mães que perderam seus filhos e deve servir para romper o silêncio e a inação dos governos diante desses crimes. São testemunhos candentes, plenos de lembrança das vidas de seus filhos, que todos os defensores da vida e da dignidade da pessoa humana nesse país têm a obrigação de ler e divulgar”.
Expõem, Damazio Gomes da Silva e Valdênia Aparecida Paulino Lanfranchi, defensor e defensora de direitos humanos, no prefácio, que: “Nas narrativas de cada mãe podemos reviver junto com elas os momentos de dor ao tomar conhecimento da notícia das mortes, a busca pela verdade, os caminhos percorridos atrás de provas que demonstrem a violência desmedida por parte da polícia. (…) Lutam para afirmar que no Brasil não há pena de morte e que todos tem o direito de receber um julgamento justo”.
Eram jovens e, como todos jovens, sonhavam
As lembranças dos sonhos, dos planos, das esperanças com o que o futuro lhes reservava, compõem a tônica desta primeira parte. Guilherme sonhava com carros; Kaique era bom aluno; Douglas queria estudar administração; Josias tinha enorme facilidade de aprender; Peterson era cheio de vida, adorava se divertir; Victor quis ser bombeiro; Luan era o melhor aluno da classe.
Nos abraçamos no luto e nos enlaçamos na luta
“Até quando vamos ver jovens negros morrerem assim? Até quando vão matar nós? É muita hipocrisia dizer que a lei é feita para todo mundo e em nome de todos, quando na verdade ela é feita por alguns e não é aplicada de maneira justa para todos”, revolta-se Miriam Damasceno da Silva, em um dos relatos agregados da parte dois da obra.
A você que matou meu filho é o titulo da parte três. São dois relatos. Um de dúvida: a razão do tiro na nuca de Douglas ainda é desconhecida. O outro de perplexidade por ter o vídeo de seu filho, no chão e com as mãos para o alto, sendo executado com três tiros.
“Por que não deu a oportunidade de meu filho pagar pelo seu erro? Por que você não fez o serviço correto? Por que você decidiu ser o delegado, o promotor, o juiz, o jurado e decidiu dar a sentença de morte para meu filho? Como você consegue dar três tiros em uma pessoa toda encolhida no chão? Encolhida no chão e já com a mão erguida para o alto, se entregando: você executou o Victor com três tiros.” (Solange de Oliveira Antonio)
Que justiça é esta?
Composto por cartas aos governantes, àqueles que acham que se faz justiça dando poder de matar aos agentes de Estado, a um desembargador, essa quarta parte reforça a larga conivência com as recorrentes execuções de jovens negros no Brasil.
Na carta às autoridades do Brasil, a começar pelo presidente da república, as mães relembram falas de João Dória e Jair Bolsonaro incentivando o exercício arbitrário e tirânico da força policial: “A letalidade produzida pela violência policial é autorizada por muitos governantes. O governador João Doria, de São Paulo, quando tomou posse em primeiro de janeiro de 2019, falou claramente que a polícia ‘tinha que atirar para matar’. O Presidente Jair Bolsonaro, em 2018 declarou: ‘[O policial] entra, resolve o problema e, se matar 10, 15 ou 20, com 10 ou 30 tiros cada um, ele tem que ser condecorado, e não processado’”.
Onde vive a palavra hoje?
Descritas na parte cinco, as oficinas de escrita, todos os domingos por nove meses, cuidaram de realizar um projeto alimentado há anos pelo Movimento Mães em Luto da Zona Leste: “um projeto que portava o desejo de tornar públicas histórias cujas vidas são silenciadas pelo massacre de jovens negros no Brasil, com importante dimensão de transmissão para as gerações futuras”.
*César Locatelli é jornalista e mestre em economia pela PUC-SP.
Referência
Gilvania Reis Gonçalves, Maria Medina Costa Ribeiro, Miriam Damasceno da Silva, Rossana Martins de Souza Rodrigues, Sidineia Santos Souza, Solange de Oliveira Antonio, Tatiana Lima Silva. Mães em luta. São Paulo, editora Fábrica de cânones, 2022, 144 págs.
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