Marielle Franco – mártir da luta pela terra

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Por RENATO NUCCI JUNIOR*

A morte de Marielle Franco pode ser tributada à disputa fundiária, uma das marcas do conflito social no Brasil

1.

Em 24 de março, operação da Polícia Federal prendeu três suspeitos de serem os autores intelectuais do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSol-RJ). São eles os irmãos Domingos Brazão e Chiquinho Brazão. À época do crime, Domingos era conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro. Já Chiquinho Brazão era vereador na Câmara do Rio de Janeiro.

Outro preso na operação foi o delegado Rivaldo Barbosa, indicado como chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro pelo general Braga Neto, interventor na segurança pública no estado, uma semana antes da morte acontecer. As investigações revelaram que Braga Neto teria sido avisado pelo chefe do setor de inteligência da Polícia Civil do estado, Richard Nunes, de que havia suspeitas de relação de Rivaldo Barbosa com a milícia. E que por isso desaconselhou sua indicação para chefe da Polícia Civil. Mesmo assim Braga Neto bancou sua indicação para o cargo. Rivaldo Barbosa foi peça importante no assassinato, ao utilizar a posição privilegiada conferida pelo cargo, para atrapalhar e retardar as investigações.

A cobertura jornalística dos grandes meios de comunicação sobre o caso tem priorizado, em sua abordagem, a profunda deterioração das instituições político-administrativas do Rio de Janeiro. Restou evidente, mais uma vez, a captura dos aparelhos de Estado pelas milícias e o crime organizado. Já a causa mesma que motivou a trama do assassinato de Marielle Franco é tratada quase como um detalhe acidental.

Segundo as investigações, uma das causas, ou a causa principal que teria motivado os criminosos a tramarem a morte de Marielle Franco, teria sido por seu papel de combater interesses espúrios da família Brazão, relacionados ao uso e destinação de terras urbanas na Zona Oeste do Rio, região notoriamente controlada pela milícia. Alguns aspectos da investigação revelam que Marielle Franco não teve papel tão determinante em atrapalhar os negócios dos Brazão. Para a Polícia Federal, um membro da milícia infiltrado no PSol do Rio de Janeiro para acompanhar os passos de Marielle Franco, teria superestimado e mesmo inventado fatos sobre o papel da vereadora em suas ações política na Câmara.[i]

Pouco importa, contudo, se as informações repassadas pelo miliciano infiltrado no PSol eram verídicas. O que realmente interessa é como elas foram recebidas e entendidas pela família Brazão. De acordo com depoimento de um assessor de Marielle Franco, Chiquinho Brazão estava extremamente irritado com a bancada do PSol e com a vereadora em particular, por ter votado contra o projeto. Por isso, sem qualquer dúvida, a morte de Marielle Franco pode ser tributada à disputa fundiária, uma das marcas do conflito social no Brasil. Conflito que opõe os interesses do latifúndio, nas áreas rurais, e da especulação imobiliária, nas áreas urbanas, aos interesses das massas trabalhadoras.

2.

É importante destacar que o conflito pela terra, no campo e na cidade, tem se acirrado nas duas últimas décadas em nosso país. O atual estágio da acumulação capitalista no Brasil, apoiado na agromineração exportadora e na especulação imobiliária, ambos conectados de diferentes formas ao sistema financeiro nacional e internacional, necessita ampliar o monopólio do capital sobre a terra e os recursos naturais. O resultado é o permanente conflito entre latifúndio urbano e rural de um lado e, de outro, camponeses, posseiros, quilombolas, indígenas, ribeirinhos e moradores em habitações irregulares nas cidades.

De acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT).[ii] em 2022 foram registrados 1.572 conflitos por terra no campo brasileiro. Esse número é quase o dobro dos 804 conflitos registrado em 2013. O levantamento da CPT indica que em 2015 o número de conflitos registrados foi de 829. A partir de 2016, ano do golpe contra Dilma, registrou-se um salto nos conflitos da ordem de 35%, pulando para 1.123. Desde então, os conflitos nunca ficaram abaixo dos mil registros, cujo recorde foi o ano de 2020, com 1.628. Registrou-se também um significativo aumento do conflito pela água, que saltou de 104 em 2013 para 225 em 2022.

Outro dado que reforça essa percepção do crescimento dos conflitos fundiários pode ser comprovado pelos dados do site da Campanha Despejo Zero e do Mapeamento Nacional dos Conflitos por Terra e Moradia.[iii] Existem atualmente em curso no Brasil 358 mil conflitos urbanos e rurais pela posse da terra.  Comparativamente, pesquisa do Dieese para o ano de 2022[iv] apontou para um total de 1.067 greves no Brasil no referido ano. Esse total está abaixo das mais de 2 mil greves registradas pelo próprio Dieese em 2016. Citamos as greves como referência, pois se trata do mais clássico conflito entre capital e trabalho. Demonstra-se como o conflito pela terra ocupa no Brasil uma grande centralidade.

A causa para isso, a nosso ver, situa-se num traço estrutural que marca historicamente a relação dominante brasileira com o povo e o país, desde a colonização e mesmo após a Independência. Nosso papel na divisão internacional do trabalho é a de fornecer matérias-primas agrícolas e minerais, sustentada na superexploração do povo e no monopólio da propriedade fundiária. Dados da Oxfam Brasil mostram que em nosso país as propriedades agrícolas acima de mil hectares, representando 0,9% dos imóveis rurais, concentram 45% do total da área rural.[v]

Sem romper completamente sua inserção subordinada e periférica no sistema imperialista, com o país se especializando em produzir de artigos agro minerais demandados pelas potências centrais e de quase nula densidade tecnológica, o controle de territórios destinados a esse papel se torna fundamental. O monopólio da terra e dos recursos naturais exige um permanente movimento de expropriação do pequeno proprietário camponês, ou de membros de comunidades tradicionais como indígenas e quilombolas.

Ao contrário do que se imagina a expropriação primária da terra não foi um acontecimento histórico situado num passado remoto, mas é condição essencial para o desenvolvimento do capitalismo e do sistema imperialista. Ele está em todo o lugar. Seja no genocídio do povo palestino em Gaza pelas mãos de Israel; seja na morte de indígenas yanomamis na Amazônia pelas mãos de garimpeiros, cujas pepitas de ouro são depois comercializadas por marcas internacionais;[vi] seja na grilagem de terras urbanas nas cidades brasileiras ou nas mudanças de planos diretores que atendem os interesses do capital imobiliário, o que abre espaço para a expansão dos FIIs (Fundos de Investimentos Imobiliários), variedade de papéis oferecidos em bolsa que abarca 2,5 milhões de investidores e um volume investido de R$ 129 bilhões.[vii]

3.

Para tanto, a violência estatal e paraestatal, ou a combinação de ambas, numa relação promíscua entre os diversos ramos do Estado, latifúndio e grupos criminosos, cumpre papel fundamental. Casos recentes exemplificam essa promiscuidade.

Em janeiro passado, no sul da Bahia, pistoleiros a serviço de fazendeiros do movimento ruralista e paramilitar “Invasão Zero”, apoiados por policiais militares, atacaram a Terra Indígena Caramuru/Paraguassu. O ataque resultou na morte de Nega Pataxó, importante liderança dos indígenas na região.[viii] Em abril do ano passado, Luiz Uaquim, principal líder do “Invasão Zero” na Bahia, cercou uma ocupação do MST no estado em área destinada a reforma agrária. Um áudio vazado revelava que os ruralistas iriam atacar os sem terra junto com a polícia militar baiana.

No Mato Grosso, outro estado em que o conflito pela terra opõe latifundiários e indígenas, também prepondera a relação promíscua entre a polícia e os ruralistas. Em matéria publicada no Brasil de Fato, Eloy Terena, coordenador da Articulação dos Indígenas do Brasil declarou que “A polícia militar, em regime de milícia privada dos fazendeiros, promove despejos sem ordem judicial. Já virou rotina. Um estado onde o agrobanditismo impera a custo do sangue indígena”.[ix]

Mais um exemplo dessa relação vem do Rio Grande do Sul. Em fevereiro de 2023, uma operação do Ministério Público do Trabalho libertou do cativeiro, em vinícolas gaúchas de Bento Gonçalves, 207 trabalhadores em condições análogas à escravidão. Os trabalhadores resgatados denunciaram o conluio de membros da Brigada Militar com as vinícolas, que atuavam como capangas das empresas, ao ameaçarem e mesmo espancarem trabalhadores que reclamavam das condições de trabalho e das acomodações.[x]

Sem exagero, Marielle é mais uma mártir da luta pela terra. Mas a cobertura jornalística prefere focar na relação ilícita entre milícia e os diferentes ramos do aparelho de Estado. E o fazem por razões óbvias. As grandes empresas de comunicação no Brasil têm interesses vinculados a agromineração exportadora, o que os alinha automaticamente ao imperialismo, o que os leva a defenderem a reprimarização em curso da economia brasileira, que nos faz regredir a uma condição semicolonial.[xi] Matéria publicada no site do Diplomatique, em 2018, mostra como os interesses da grande imprensa se misturam com o da agromineração.[xii]

Por isso a linha editorial da grande imprensa está focada, como indicamos mais acima, na relação ilícita entre milícia e aparelhos de Estado. Jamais a cobertura da morte de Marielle será apresentada como resultado do conflito fundiário, pois isso significa colocar o latifúndio e a especulação imobiliária, com seus métodos violentos e suas relações promíscuas entre capital privado e poder público (polícia, poder judiciário, executivo e legislativo), no banco dos réus.

*Renato Nucci Jr. é ativista da organização comunista Arma da Crítica.

Notas


[i] https://www.terra.com.br/noticias/ronnie-lessa-diz-a-pf-que-infiltrado-no-psol-pode-ter-dimensionado-mal-as-acoes-politicas-de-marielle,32fdd7e619ea03a0a3093ffe4b2845bdh7g8mdek.html

[ii] https://www.cptnacional.org.br/downlods?task=download.send&id=14302&catid=41&m=0

[iii] https://www.campanhadespejozero.org/

[iv] https://www.dieese.org.br/balancodasgreves/2023/estPesq104Greves.pdf  

[v] https://www.oxfam.org.br/publicacao/menos-de-1-das-propriedades-agricolas-e-dona-de-quase-metade-da-area-rural-brasileira/

[vi] https://reporterbrasil.org.br/2021/06/hstern-ourominas-e-dgold-as-principais-compradoras-do-ouro-ilegal-da-ti-yanomami/

[vii] https://fiis.com.br/noticias/fundos-imobiliarios-b3-consolidacao-mercado-fc/#:~:text=O%20crescimento%20dos%20investidores%20%C3%A9,registrada%20no%20fim%20de%202022.

[viii] https://apublica.org/2024/02/a-milicia-dos-fazendeiros-tem-representacao-no-congresso/

[ix] https://www.brasildefato.com.br/2022/06/25/acao-da-pm-no-mato-grosso-do-sul-deixa-pelo-menos-um-indigena-morto-e-sete-feridos

[x] https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2023/02/28/brigada-militar-do-rs-investiga-denuncias-de-que-policiais-torturaram-trabalhadores-que-prestavam-servicos-para-vinicolas.ghtml

[xi] https://revistaforum.com.br/blogs/socialista-morena/2022/6/8/jornalismo-militante-do-agronegocio-band-cnn-valor-so-premiados-pela-bancada-ruralista-118505.html

[xii] https://diplomatique.org.br/quem-controla-a-noticia-no-brasil/

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