Marighella e seu outro – Carlos

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Por DÊNIS DE MORAES*

Considerações sobre a trajetória política e intelectual do “engenheiro que escrevia versos”

Em memória de Paulo Mercadante.

Quando elaborava a biografia do escritor Graciliano Ramos, no limiar dos anos 1990, conheci um Carlos Marighella que extrapolava as imagens míticas do comandante guerrilheiro da segunda metade da década de 1960. Tive o privilégio de ouvir os relatos e ler as páginas do diário do advogado e ensaísta Paulo de Freitas Mercadante (1923-2013), um dos amigos da irrestrita confiança de Graciliano, sobre o seu convívio fraterno com Carlos, a partir da redemocratização de 1945. Os três eram militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), sendo Marighella o veterano (ingressou em 1934) e Graciliano o novato (filiou-se em 18 de agosto de 1945). Paulo lembrou-se de Graciliano emocionado ao receber a soma em dinheiro que amigos comunistas conseguiram reunir para ajudá-lo em momento de agruras financeiras. O único dirigente que participou da coleta de doações foi Carlos Marighella.

No calor das lembranças de Mercadante, quem reaparecia não era o comunista de aço, e sim um homem educado, risonho, emotivo, afável e irreverente. Que gostava de cerveja, de futebol (torcedor do Vitória na Bahia e do Corinthians em São Paulo), de samba, de Jackson do Pandeiro e Noel Rosa, de carnaval e dos bailes do Cordão da Bola Preta. Que fugia do “aparelho” em que vivia clandestino no Rio de Janeiro, durante o governo reacionário do marechal Eurico Gaspar Dutra, para saborear seus pratos favoritos – feijoada e comida baiana – no restaurante Furna da Onça, em pleno centro da cidade.

Certa vez, foi flagrado lá por Graciliano e Mercadante, que registrou no seu diário: “Encontramos M., meio disfarçado, porém visível a olho nu, numa feijoada, de costas para a porta lateral, em companhia de um velho tromba, mais conhecido do que o Barreto Pinto. Apenas acenamos. Graça de cara amarrada, para evidenciar a sua desaprovação”.[1] Com o intuito de ludibriar a vigilância da polícia política, colocava uma peruca sobre a calvície e usava óculos escuros (disfarces que voltaria a usar após a ditadura militar pós-1964). Foi assim que compareceu, incógnito e triste, ao velório de Graciliano, seu amigo e escritor predileto, em 20 de março de 1953.

O Marighella que aprendemos a medir pela firmeza na práxis política era, segundo Paulo Mercadante, um dos raros dirigentes comunistas de sua geração com preocupações intelectuais. Não se limitava aos documentos partidários e tratados marxistas; apreciava literatura brasileira e clássicos do pensamento universal. “Carlos não se apegava a certezas férreas diante das fragilidades humanas. Com ele podíamos nos abrir. Na sua humanidade, distinguia-se daqueles dirigentes que vinham logo com uma citação de Marx para desqualificar os problemas pessoais como debilidades burguesas. Ao expressar-se, ele não recorria aos jargões partidários. Conversava normalmente, não seguia as fórmulas feitas e os maniqueísmos”.

O historiador Jacob Gorender (1923-2013), que o conheceu em 1945, traça um perfil semelhante ao apresentado por Mercadante: “Marighella era um líder revolucionário muito diferente de outros que eu acompanhei na direção. Era um homem fraternal, não tinha nenhum ar de superioridade, nunca se atribuiu méritos pessoais particulares. Quando falava de suas experiências na tortura, na prisão e em outras circunstâncias, só o fazia para ensinar, para alertar os companheiros que não tinham essa experiência. Um homem, um líder, que jamais usava de grosserias, que se interessava pelos problemas pessoais dos companheiros, problemas de alojamento, de dinheiro para comprar comida, para atender a necessidades familiares e assim por diante. Ao mesmo tempo, um homem que dava o exemplo e por isso tinha condições de exigir o cumprimento de tarefas, podia ser rigoroso nas cobranças das tarefas de que os outros companheiros estavam encarregados”.[2]

As palavras do arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2021) compõem esse mosaico de impressões. Carlos foi “talvez o mais romântico e o mais entusiasmado” no círculo de amigos de Niemeyer no PCB. “Um companheiro da melhor qualidade, muito decente, muito fiel. Prezava a gente; ele e João Saldanha vinham aqui no escritório para conversarmos sobre tudo, saíamos para almoçar. (…) Era um guerreiro, que sempre queria virar a mesa. Faz falta no grupo alguém assim, que incentive para a coisa caminhar mais rápido. É preciso alguém que se antecipe. Sem coragem não se faz nada”.[3]

 

Carlos Marighella nasceu em um sobrado na Baixa do Sapateiro, em Salvador, no dia 5 de dezembro de 1911, filho de Augusto Marighella, um imigrante italiano, mecânico e simpatizante do anarquismo, e de Maria Rita do Nascimento, negra baiana descendente de escravos sudaneses. As ideias libertárias do pai conformaram-lhe o espírito avesso à discriminação e ao preconceito. Indignava-se com a segregação dos negros. Craque nas peladas e em matemática, adorava escrever poemas e lia, à luz de velas, os jornais que o pai lhe passava. Na última série do curso científico do Ginásio da Bahia, tirou nota 10 ao responder a uma prova de física com versos.

Em 1931, aos 19 anos, ingressou no curso de engenharia civil da Escola Politécnica da Bahia e não demorou a aderir à Federação Vermelha dos Estudantes, vinculada ao PCB. A militância levou-o diversas vezes à prisão. A primeira delas ainda em 1932, quando participava da ocupação da Faculdade de Medicina da Bahia, ao lado de mais de 500 pessoas, a maioria estudantes, em defesa da redemocratização do país. A manifestação foi dissolvida pela polícia do interventor federal no estado, capitão Juracy Magalhães. Depois ter concluído o terceiro ano de engenharia em dezembro de 1933, embates internos na Politécnica resultaram numa investigação que se arrastou até março de 1934, sendo-lhe aplicada pena de advertência pelo furto de provas de física que teria praticado na secretaria da escola.

Dois meses depois, por unanimidade, a Congregação negou provimento ao recurso na sindicância que apurava a sua participação na distribuição de panfletos considerados subversivos. Desta vez, foi punido com três meses de suspensão.[4] A graduação ficou interrompida. “Pouco antes de terminar o curso, abandonei a escola e desisti da carreira. Um sentimento profundo de revolta ante a injustiça social não me permitia prosseguir em busca de um diploma e dedicar-me à engenharia civil, num país onde as crianças são obrigadas a trabalhar para comer”, relembraria três décadas depois.[5]

No mesmo ano de 1934, ingressou no PCB, já como um dos trunfos na complicada tarefa de reerguer a desorganizada e acanhada seção baiana. As condições políticas locais de algum modo interferiram na motivação. A Bahia tinha se tornado, segundo o escritor João Falcão (1919-2011), “um autêntico refúgio comunista”. Embora conservador e anticomunista, o interventor Juracy Magalhães não acompanhava o governo de Getúlio Vargas na caçada aos comunistas após a malsucedida insurreição de novembro de 1935. Estava mais preocupado com a tenaz oposição dos integralistas à sua administração. Na oposição de esquerda, o PCB era um mal muito menor. Em tal cenário, foi na Bahia que se refugiaram alguns comunistas nordestinos envolvidos na insurreição, como José Praxedes, Alberto Passos Guimarães e Diógenes Arruda.[6]

Carlos mudou-se para o Rio de Janeiro no começo de 1936, onde passou a atuar no setor de imprensa, divulgação e propaganda do partido. O clima era de guerra com a violenta perseguição de Vargas aos que haviam participado da insurreição e aos opositores do governo em geral. Inúmeros dirigentes e militantes do PCB foram presos e condenados pela Lei de Segurança Nacional. Os presídios, colônias penais e navios da Marinha ficaram superlotados. Até um intelectual progressista, mesmo sem ser (ainda) membro do PCB, como Graciliano Ramos, diretor da Instrução Pública de Alagoas, acabou encarcerado durante dez meses e dez dias, sem processo ou culpa formada.

No 1º de maio de 1936, detido pela Polícia Especial de Filinto Muller, Carlos foi torturado 23 dias. Cumpriu um ano de prisão. Solto, partiu para São Paulo a fim de auxiliar na reorganização o partido e combater a dissidência trotskista. Aos 26 anos, tornou-se membro do Comitê Estadual. Novamente preso em 1939, queimaram-lhe as solas dos pés com maçarico, enfiaram-lhe estiletes sob as unhas, arrancaram-lhe alguns dentes e abriram sua testa com uma coronhada. Não cedeu aos algozes. Numa solitária do Presídio Especial de São Paulo, compôs o poema “Liberdade”:

Não ficarei tão só no campo da arte,
e, ânimo firme, sobranceiro e forte,
tudo farei por ti para exaltar-te,
serenamente, alheio à própria sorte.
Para que eu possa um dia contemplar-te
dominadora, em férvido transporte,
direi que és bela e pura em toda parte,
por maior risco em que essa audácia importe.
Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma,
que não exista força humana alguma
que esta paixão embriagadora dome.
E que eu por ti, se torturado for,
possa feliz, indiferente à dor,
morrer sorrindo a murmurar teu nome.

“Rondó da liberdade”, também de 1939, é um dos poemas engajados que refletem bem o seu espírito libertário:

É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.
Há os que têm vocação para escravo,
mas há os escravos que se revoltam contra a escravidão.
Não ficar de joelhos,
que não é racional renunciar a ser livre.
Mesmo os escravos por vocação
devem ser obrigados a ser livres,
quando as algemas forem quebradas.
O homem deve ser livre…
O amor é que não se detém ante nenhum obstáculo,
e pode mesmo existir até quando não se é livre.
E no entanto ele é em si mesmo
a expressão mais elevada do que houver de mais livre
em todas as gamas do humano sentimento.
É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.

A ditadura Vargas confinou-o na Ilha de Fernando de Noronha, onde organizou cursos de formação política para os detentos, cuidou da horta comunitária e jogou futebol com integralistas. Transferiram-no em 1942 para a temida Colônia Correcional Dois Rios, na Ilha Grande. Além de acompanhar pelo rádio as vitórias dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, valeu-se da habilidade manual para criar uma oficina coletiva de artesanato, cujos produtos eram vendidos a parentes e amigos. A receita servia para melhorar a alimentação, comprar remédios, ajudar nas despesas das famílias pobres e no pagamento de honorários de advogados.

Um dos últimos escritos de Carlos na Ilha Grande foi o poema “Prestes (no dia do seu aniversário)”, em 3 de janeiro de 1945. Faltavam dois meses para Luiz Carlos Prestes (1898-1990) completar nove anos de cárcere. Prestes fora escolhido, mesmo preso, secretário-geral na II Conferência Nacional do PCB, realizada na clandestinidade em Engenheiro Passos, Rio de Janeiro, de 28 a 30 de agosto de 1943.

O poema inscrevia-se no culto à personalidade do dirigente máximo do partido, ressaltado por vários autores na imprensa partidária, à semelhança do tratamento reservado ao “guia genial dos povos” – Josef Stalin.

Ó Cavaleiro heroico da Esperança
filho exemplar do povo brasileiro,
teu vulto imenso mais e mais avança,
guia e ilumina o continente inteiro.
A glória do teu nome o mundo alcança
audaz libertador. És o primeiro
que ao nosso povo inspira confiança,
admiração, afeto verdadeiro.
A voz não diz, tampouco a pena exprime
a tua dor num cárcere, sem crime,
longe do amor caríssimo da filha.
Mas teu martírio uma verdade encerra:
no coração do povo desta terra
somente o nome teu fulgura e brilha.

Com a anistia decretada em 18 de abril de 1945, Luiz Carlos Prestes foi libertado no dia seguinte, o mesmo acontecendo com Marighella, após seis anos de prisão. Esperava por Carlos à saída do Presídio da rua Frei Caneca, no Rio, o estudante de Direito Paulo Mercadante, 21 anos, designado para a tarefa pelo capitão Antônio Rollemberg, responsável pela área militar do PCB. Quatro outros militantes reforçavam a segurança contra qualquer hostilidade ou provocação. Paulo era um dos jovens comunistas atraídos pela mística em torno de Marighella – o “engenheiro que escrevia versos” –, que resistira heroicamente nas masmorras do Estado Novo.

Carlos portava uma pequena maleta e trajava um surrado paletó bege e calça azul-marinho. Mercadante levou-o à Casa Tavares, na Avenida Rio Branco, para comprar-lhe roupas. O dinheiro só deu para um terno e um par de sapatos. De lá rumaram para o consultório de um oftalmologista que lhe receitou lentes para a miopia. Há meses, seus óculos haviam quebrado e, por estar preso, não conseguira substituí-los.

A escala seguinte foi na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, no Catete. Secretário-geral do Centro Acadêmico Luís Carpenter, Paulo Mercadante apresentou Marighella a professores, entre os quais o catedrático Homero Pires. Sua presença alvoroçou os estudantes, que o procuraram para conversar sobre política. Em companhia de Mercadante, do líder estudantil Paulo Silveira e do secretário da faculdade, Osvaldo Carpenter, almoçou no lendário restaurante Lamas, no Largo do Machado. “Simpático e esperançoso em relação ao futuro, Carlos logo nos conquistou”, recordou Mercadante. Osvaldo Carpenter ofereceu-lhe um jantar em sua casa e o hospedou naquela noite.

O biógrafo Mário Magalhães narrou as aventuras noturnas no Rio, após o longo período de reclusão forçada: “Ele não se restringiu aos rabos de saia do partido. Com Mercadante e outros acadêmicos, fez-se assíduo em boates de Copacabana e da Urca. Retornava de madrugada para o apartamento que o partido lhe destinara, no Catete. Logo cedo caminhava para o edifício que abrigou o Clube Germânia até 1942, quando os estudantes da UNE o invadiram e expulsaram os donos alemães”.[7] Mas teve que se voltar logo à militância, pois compunha a comissão organizadora do comício em comemoração à libertação de Prestes, que levou 100 mil pessoas ao Estádio de São Januário, no Rio, em 23 de maio de 1945.

Marighella integrou-se ao Comitê Central, para o qual fora designado na Conferência da Mantiqueira – ponto de partida para a reorganização do PCB, a partir do apoio à mobilização pela entrada do Brasil na guerra contra o nazi-fascismo na Europa, que incluía uma aliança política pragmática com Getúlio Vargas no quadro da união nacional contra o Eixo. Marighella fez parte do grupo de comunistas baianos que desempenhou papel relevante na reestruturação do partido, ao lado de Giocondo Dias (1913-1987), Armênio Guedes (1918-2015), Mário Alves (1923-1970), Maurício Grabois (1912-1973), Jorge Amado (1912-2001), Fernando Santana (1915-2012), Aristeu Nogueira (1915-2006), Milton Caires de Brito (1915-1985), Boris Tabacof (1929-2021), Osvaldo Peralva (1918-1992), Almir Matos (1922-1997),Jacob Gorender, João Falcão e outros.

Eleito deputado federal pelo PCB da Bahia em 2 de dezembro de 1945, com 5.188 votos, Carlos quis instruir-se em Direito Constitucional para atuar com desenvoltura na Assembleia Constituinte. Paulo Mercadante cedeu-lhe livros jurídicos, sendo Comentários à Constituição de 1891, de João Barbalho, o volume que mais apreciou. Bom orador, Marighella distinguiu-se como um dos autores do capítulo sobre direitos e garantias individuais da nova Constituição. Em dois anos de mandato, proferiu 195 discursos, denunciando as más condições de vida do povo e a crescente penetração imperialista no país. Defendeu a reforma agrária, a liberdade de culto religioso, o ensino leigo, o divórcio, a soberania nacional e o controle estatal nos setores estratégicos da economia e da produção.

Ficou célebre uma frase de Marighella – “a vida é mais forte do que a fantasia” – nas reuniões da bancada do PCB na Constituinte, integrada por 14 deputados federais e o senador Luiz Carlos Prestes. Para Jorge Amado, também deputado eleito por São Paulo, Marighella era o mais brilhante parlamentar comunista: “Nós éramos, os dois, uma espécie de relações públicas da bancada. E éramos sobretudo os redatores dos discursos e dos comunicados para aqueles companheiros que não redigiam. Marighella foi um deputado da maior importância. É preciso lembrar que o Parlamento de então era muito diferente do que é atualmente. Os deputados estavam acostumados com aquela falsa solenidade, muito mais hipócrita, em certo sentido, do que é hoje uma sessão parlamentar. Mas Marighella rompia facilmente com isso. Ele tinha não só o senso de humor, ele tinha uma coisa extraordinária, Marighella tinha imaginação. Não era um intelectual limitado”.[8]

O ambiente tóxico da Guerra Fria acirrou as tensões entre Estados Unidos e União Soviética. Discursando em Fulton, nos EUA, o ex-primeiro-ministro inglês Winston Churchill acusou a União Soviética de ter erguido “uma cortina de ferro” no Leste Europeu. A tarefa principal das democracias ocidentais, disse ele cinicamente, era defender “o mundo livre”. Era preciso deter e isolar os comunistas a qualquer preço, bem como barrar a ascensão eleitoral dos Partidos Comunistas ocidentais. No Brasil, o obscurantismo prevaleceu e, sob fogo cruzado do governo direitista e americanófilo de Dutra, o PCB teve seu registro suspenso em maio de 1947. Os mandatos de seus parlamentares foram cassados em 7 de janeiro de 1948. Quando o presidente da sessão comunicou ao plenário a decisão, a bancada do PCB, comandada por Marighella, subiu nas poltronas do Palácio Tiradentes e, de punhos erguidos em sinal de protesto, começou a gritar uníssona: “Nós voltaremos! Viva o PCB! Viva o proletariado!”.

A Juventude Comunista foi declarada ilegal, sedes do PCB fechadas, 143 sindicatos colocados sob intervenção e jornais comunistas empastelados. Em 22 de maio de 1948, com Marighella na clandestinidade, nasceu no Rio de Janeiro seu filho Carlos Augusto, Carlinhos, fruto do relacionamento com Elza Sento Sé. No mesmo ano, a direção do PCB designou Marighella para assumir a direção do Comitê Estadual de São Paulo. Continuou à frente da revista Problemas, que propagava aqui, como os demais periódicos do PCB, as teses dogmáticas do realismo socialista e difundia traduções de textos teóricos soviéticos, além de artigos sobre a penetração imperialista no Brasil e as políticas entreguistas de Dutra.

Desde dezembro de 1947, ele vivia com a militante Clara Charf, que trabalhara como secretária da bancada comunista na Câmara dos Deputados. Nos primeiros tempos de clandestinidade, ela aprendeu com Carlos uma regra que observou rigidamente, inclusive nos dez anos de exílio em Cuba, de 1969 até regressar com a anistia em 1979: “Clara, você não pode sorrir nas ruas, senão vão logo te reconhecer”. Nem quando posava para fotos ela transigia.

Carlos defendia a igualdade de gênero e os direitos das mulheres. “Meu marido era feminista”, atestou Clara. “O feminismo é um sentimento de valorização das mulheres. Quando nos tornamos companheiros, ele me compreendia e sempre estimulava a formação de organizações para mulheres. Marighella dividia as tarefas domésticas, mas não sabia passar roupa. Então, enquanto eu ficava com esse serviço, ele lia para mim em voz alta para ‘eu não perder tempo’. Ser feminista não é só declarar, é demonstrar, respeitar e dar o mesmo direito aos dois seres”.[9]

Em 1956, Marighella presidiu a 1a. Conferência Nacional sobre o Trabalho do Partido entre as Mulheres. Três anos depois, incentivou a criação da Liga Feminina da Guanabara, na órbita do PCB. Entre suas dirigentes, estavam Clara Charf, Ana Montenegro (1915-2006) e Zilda Xavier Pereira (1925-2015). A entidade foi fechada pela polícia política em 1º. de abril de 1964. Segundo a historiadora Maria Cláudia Badan Ribeiro, Marighella estimulava a militância feminina durante a luta armada de resistência à ditadura militar pós-1964 (que abordarei adiante) e “tentava convencer os companheiros a deixarem suas mulheres participarem das reuniões, trazerem os problemas sociais da dona de casa”. Marighella conseguiu dobrar o governo de Fidel Castro e Cuba aceitou algumas mulheres que integravam a Ação Libertadora Nacional no treinamento para a guerrilha rural. Conforme Maria Cláudia, ele condicionou o acordo com os cubanos à inserção das militantes indicadas pela ALN nos cursos de preparação.[10]

Em 1950, aos 41 anos, Carlos Marighella chegou à Comissão Executiva e ao Secretariado Nacional – órgãos máximos da hierarquia partidária. O PCB vivia mais um momento turbulento. Acuado pelas perseguições arbitrárias do governo Dutra, que confundia a opinião pública com argumentos falaciosos sobre seus vínculos com a União Soviética, o PCB radicalizara sua plataforma no Manifesto de Agosto, naquele ano, abandonando a política de frente democrática que o transformara, nos padrões do pós-guerra, em um partido de massas, com 200 mil filiados. O partido passou a pregar a luta armada, a ser liderada por um exército de libertação nacional. A diretriz sectária levou os comunistas a pregarem o voto em branco na eleição presidencial que reconduziu, pela vontade popular, Getúlio Vargas ao Palácio do Catete.

Marighella endossou o Manifesto e, por extensão, o esquerdismo que isolaria o PCB das massas. Paulo Mercadante anotou no seu diário: “Carlos, conosco sentado, expunha a tese de que o partido, na linha justa que atendia aos interesses do povo, iria mobilizar, em progressão crescente, todas as classes exploradas, a fim de provocar, afinal, o salto necessário à tomada do poder. Carlos era sereno e sincero em suas exposições. Mesmo nelas não acreditando piamente, mantinha-se firme, sempre atribuindo às debilidades de sua origem burguesa a dúvida porventura existente”.

Mas nem todos no partido engoliram o Manifesto. Graciliano Ramos discordou; ao seu círculo íntimo externou o entendimento de que, com a radicalização, o PCB entrava em descompasso com a realidade e se dissociava da dinâmica social. Carlos tentou convencê-lo a aceitar a normativa, ponderando “que, progressivamente, as classes exploradas seriam mobilizadas para o salto necessário à conquista do poder”. Mercadante, que testemunhou a conversa, transcreveu a tréplica de Graciliano no seu diário: “Graça aguardava o final da longa justificativa para fazer a primeira pergunta. Como poderia o partido ganhar as massas getulistas? E o campo? Chegaria a palavra de ordem ao interior, se faltavam ao partido os meios necessários de comunicação, principalmente escrita? Por fim, qual o exemplo de uma revolução qualquer sem as condições históricas de deterioração das classes dirigentes? Os argumentos eram rebatidos por Carlos, sem muita certeza, e Graça, afinal, concordou com o êxito da revolta apregoada, porém indagando: vitoriosa a revolução, como conseguiremos nos manter no poder em face de uma realidade geopolítica tão adversa?”.[11]

Apesar de estar com prisão preventiva decretada, acusado de “subversão”, Marighella participou das lutas políticas e sociais dos anos 1950, sobretudo a partir de 1952, quando começou a declinar a obediência ao Manifesto de Agosto. Organizou greves operárias em São Paulo e no Porto de Santos; liderou a passeata de cem mil pessoas em protesto contra a carestia, em 1953. Clamou pelo monopólio estatal do petróleo; opôs-se ao envio de soldados brasileiros à guerra da Coreia; criticou a escalada belicista do imperialismo americano na Indochina e o colonialismo europeu em países africanos; combateu a desnacionalização da economia e a privatização do ensino.

Chefiou a primeira delegação de comunistas brasileiros à República Popular da China, em 1952, dentro da estratégia diplomática do governo de Mao Tsé-tung de divulgar a comitivas de simpatizantes estrangeiros os esforços da Revolução para acelerar o desenvolvimento do país. Foi uma das vozes influentes para que o PCB abandonasse, no IV Congresso, em novembro de 1954, a linha mais radical e voltasse a valorizar alianças eleitorais com os trabalhistas.

O XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em 1956, abalou o mundo com as denúncias dos crimes praticados na era Stalin. “Marighella tomou o Relatório Kruschev como se fosse uma punhalada de Stalin. Vi-o chorar de raiva e indignação”, rememorou Paulo Mercadante. “Ao contrário da maioria dos membros do Comitê Central, Carlos acatou o veredicto de Kruschev, descartando a versão de que o relatório era falso ou uma simples provocação.” Sentiu-se traído. Quando da morte de Stalin em 5 de março de 1953, Marighella o louvara, assim como Prestes e outros mais, na edição extraordinária da Voz Operária: “O que o grande Stalin fez pela humanidade, pela libertação dos povos, pela causa da paz, da democracia e do socialismo, nos impõe o dever de honrar sua sagrada memória”.[12]

Marighella permaneceu no PCB e votou favoravelmente à Resolução do Comitê Central que se referiu à “corajosa denúncia do culto à personalidade levado à prática pelo Partido Comunista da União Soviética”; mas foi relacionado, juntamente com Prestes, entre os dirigentes que se opuseram a um debate interno mais prolongado sobre os rumos do partido depois da crise na URSS. A divulgação do Relatório Kruschev resultou no desligamento da facção ligada a Agildo Barata e de vários intelectuais, entre eles Paulo Mercadante.

A fidelidade de Marighella naquela quadra difícil levou Prestes a confiar-lhe uma tarefa crucial. Entregou-lhe uma pilha de cartas endereçadas a amigos nos estados, solicitando contribuições financeiras para quitar uma dívida de um milhão e quinhentos mil cruzeiros, contraída em empréstimos feitos pelo setor de finanças do partido. Marighella cumpriu a missão, e a dívida foi liquidada.

Em março de 1958, Marighella apoiou a Declaração Política que fundamentou a mudança programática aprovada no V Congresso, em 1960. Os comunistas propugnavam agora por “um governo nacionalista e democrático”, recomendando à classe operária “aliar-se à burguesia ligada aos interesses nacionais”. O caráter da revolução brasileira, dizia o documento, era anti-imperialista e antifeudal, nacional e democrático. Adotava-se a via pacífica para o socialismo, através da formação de uma “frente única nacionalista e democrática”, integrada pelo proletariado, o campesinato, a pequena-burguesia e até setores de “latifundiários em contradição com o imperialismo norte-americano”.

O PCB divulgou em abril de 1960 as Teses para Discussão no V Congresso, que ocuparam por quatro meses a “Tribuna de Debates” do jornal Novos Rumos. Marighella publicou o artigo “Defendendo a linha atual” (edição de 22 a 28 de julho de 1960) rebatendo as críticas de João Amazonas à Declaração de Março de 1958. “A linha atual não foge aos princípios revolucionários, pois segue o ensinamento do marxismo-leninismo de que devemos apontar as massas o que têm de fazer hoje (vejam bem, hoje) para defender-se a si e a seus direitos e reivindicações. A esse respeito já assinalava Dimitrov que o nosso dever revolucionário é saber encontrar formas de luta que se originem das necessidades vitais das massas, do nível de sua capacidade de luta em cada etapa de seu desenvolvimento”.

A Resolução do V Congresso reiterou em linhas gerais a Declaração de 1958, fixando que “a realização das tarefas da atual etapa da revolução brasileira teria que passar, necessariamente, pela organização de uma frente única nacionalista e democrática”. O encerramento aconteceu em 5 de setembro de 1960, no auditório lotado da Associação Brasileira de Imprensa, no Rio. Desde o governo de Juscelino Kubitschek, a quem o PCB apoiara na campanha eleitoral de 1955, o partido vivia na semilegalidade, o que permitiu a Prestes, Marighella e demais dirigentes voltarem à luz do dia, depois de uma década de clandestinidade. A sessão inaugural foi presidida por Marighella, que convidou a comporem a mesa dois fundadores do PCB em 25 de março de 1922: o escritor e jornalista Astrojildo Pereira (1890-1965) e o eletricista Hermogênio da Silva Fernandes (1889-1976).

Marighella ficou com Prestes e a maioria da Executiva quando do racha que resultou na fundação do Partido Comunista do Brasil (PC do B), em 1962, com a subsequente expulsão de nomes como João Amazonas, Pedro Pomar, Maurício Grabois e Diógenes Arruda. Porém, as divergências no comando do PCB não terminaram. Marighella e Mário Alves passaram a questionar a política de aliança das forças progressistas com a burguesia nacional. Também não viam com bons olhos a relação, tida como próxima, de Prestes com o presidente Goulart. Para eles, o partido se punha a reboque de posições reformistas, que afastavam os comunistas da linha de frente nas mobilizações dos trabalhadores por direitos sociais e esvaziavam o sentido da luta revolucionária.

Na perspectiva de Marighella, o partido deveria renunciar à moderação excessiva e intensificar a pressão pelas reformas de base – notadamente a reforma agrária “na lei ou na marra”, preconizada pelas Ligas Camponesas de Francisco Julião. Reiterava a necessidade de os comunistas se prepararem para a eventualidade de um golpe de Estado, em função do agravamento do quadro político-institucional. Chegou a se reunir no apartamento do deputado Fernando Santana, na Rua Senador Vergueiro, Flamengo, no Rio de Janeiro com a ala brizolista que organizava os “grupos dos onze” – células ativistas que se propunham a esclarecer e mobilizar as classes populares para a resistência na eventualidade de um golpe contra Jango. O deputado Neiva Moreira, um dos mais próximos a Leonel Brizola, disse ter encontrado em Marighella “um homem firme, sólido, claro, prudente”, que se comprometeu a defender junto ao PCB o trabalho desenvolvido pelos grupos dos onze, criticados como “esquerdistas” pela maioria da cúpula partidária.[13]

O golpe militar veio em 31 de março de 1964, e o “dispositivo militar” que defenderia Jango simplesmente faltou ao encontro. Marighella e outras lideranças e organizações ainda pressionaram oficiais legalistas a resistir. Mas esses militares invariavelmente repetiam que aguardavam ordens de Jango.

A sanha repressiva assumiu as rédeas. Além de perseguições e detenções de opositores, suspensões de direitos políticos por dez anos, indiciamentos em Inquéritos Policiais Militares e demissões ou aposentadorias compulsórias no serviço público. Quase 180 deputados federais cassados de 1964 a 1979. O regime fardado recorreu a sequestros, prisões ilegais, torturas e assassinatos; interveio em mais de 400 sindicatos e proibiu centrais sindicais; fechou a União Nacional dos Estudantes e diretórios estudantis; promoveu arrochos salariais e cortes drásticos de direitos sociais, trabalhistas e previdenciários; curvou-se, como o mais venal dos vassalos, ao grande capital nacional e estrangeiro, ao mercado financeiro e ao latifúndio; impôs a mordaça para impedir denúncias de seus escândalos de corrupção, dilapidação do patrimônio público e endividamento externo.

Carlos, incluído no Ato Institucional número 1, perdeu os direitos políticos e fugiu com a família minutos antes de seu apartamento alugado na Rua Corrêa Dutra, no Flamengo, ser invadido pelo DOPS. Ali, Carlos e Clara moraram legalmente durante os governos de Juscelino Kubitschek e João Goulart. Nos 22 anos em que viveram juntos, foi o único período em que puderam circular livremente, com endereço e telefone conhecidos.

Em 9 de maio de 1964, agentes do DOPS seguiram Marighella que, percebendo o cerco, tentou confundi-los entrando no Cine Eskye, na Tijuca, zona norte do Rio, que exibia o filme Rififi no safári. As luzes do salão acenderam-se e Marighella resistiu à voz de prisão gritando: “Abaixo a ditadura militar fascista! Viva a democracia! Viva o Partido Comunista!” Mesmo baleado no peito, enfrentou os sicários do golpismo e a muito custo foi detido. Passou dois meses na cadeia, incomunicável, sendo exaustivamente interrogado até a concessão do habeas-corpus, impetrado pelo advogado Sobral Pinto. Teve que voltar à clandestinidade, em virtude da decretação de sua prisão preventiva pela Justiça Militar de São Paulo.

Menos de um ano depois, Marighella publicou Por que resisti à prisão. Os 18 capítulos englobam relatos autobiográficos, uma minuciosa descrição de sua prisão em 1964, denúncias de agressões a políticos, intelectuais e líderes sindicais, e uma avaliação sobre as consequências funestas do golpe. Na parte polêmica do livro, expôs seu desacordo com o caminho pacífico para a revolução no Brasil. Apontou erros cometidos pelo PCB que teriam contribuído para o imobilismo das forças populares diante da queda de Jango. Considerou equívocos graves a política de conciliação com a burguesia (“a tendência da burguesia é para a capitulação sem resistência ante a direita”), a débil penetração no campo, o desprezo pela classe média, a subestimação do trabalho de base, o insuficiente empenho na formação política do proletariado e a confiança exagerada no dispositivo militar do presidente deposto.

Em 20 anos, o cenário alterara-se dramaticamente. Se no pós-guerra de 1945 a atmosfera de euforia com a liberdade e de esperanças no socialismo convencera Marighella a sustentar que “os golpes armados, a desordem e a violência não ajudarão a marcha da democracia para a frente”, o contexto político de 1964 lhe parecia irremediavelmente cinzento e hostil. No texto “O papel das forças populares e nacionalistas”, de 1965, incluído em Por que resisti à prisão, ele acentuou que as consequências do golpe antipopular e antissocial colocavam em xeque a via pacífica. “Nenhuma possibilidade legal pode ser desprezada, desde os entendimentos pela cúpula à luta jurídica ou à luta de caráter humano pela solidariedade aos presos políticos e suas famílias, aos perseguidos 38 políticos e exilados, luta que tem uma importância imensa e que jamais pode ser relegada a segundo plano. Mas é evidente que a solução do problema brasileiro por uma via pacífica se distanciou enormemente da realidade, depois do emprego da violência pelos inimigos do povo”.[14]

Despertou reações e controvérsias em setores do PCB a passagem em que Marighella indicou a guerrilha como uma das formas de resistência que se deveria tomar em conta no enfrentamento da ditadura: “A realidade socioeconômica brasileira poderá levar ao aparecimento de guerrilhas e outras formas de luta surgidas da experiência das massas”. Não teve de casual a menção à Revolução Cubana como “exemplo ilustrativo de que na América Latina – ou pelo menos em muitos países latino-americanos – nada há a esperar de uma via pacífica para a conquista da independência ou do progresso social”.[15]

As teses de Por que resisti à prisão, compartilhadas por Mário Alves, Apolônio de Carvalho e Jacob Gorender, foram derrotadas em reunião do Comitê Central. A divisão tornava-se nítida: de um lado, o grupo de Marighella em oposição ao pacifismo; de outro, Prestes e a maioria do CC, que reafirmavam os postulados do V Congresso, deles partindo para elaborar uma tática diante do novo quadro político. Apesar das críticas internas a Prestes e à Comissão Executiva pela ausência de uma correta avaliação da conjuntura e pelo imobilismo que levou o partido a não organizar a resistência ao golpe, nenhuma autocrítica convincente veio da direção do PCB.

No ensaio “A crise brasileira”, de 1966, Marighella demarcou o campo que poderia ser explorado pela guerrilha. “O Brasil é um país cercado pela atual ditadura militar entreguista e pelos círculos dirigentes norte-americanos, a cujo serviço se encontram os traidores que empolgaram o poder. Dentro das condições desse cerco, a guerrilha brasileira – com seu conteúdo nitidamente político – não pode deixar de significar um protesto, uma referência para a elevação da luta do nosso povo”.

Numa evidência de que já se guiava pela bússola da luta armada, completou: “Ninguém espera que a guerrilha seja o sinal para o levante popular ou para a súbita proliferação de focos insurrecionais. A guerrilha será o estímulo para o prosseguimento da luta de resistência por toda parte. Para o aprofundamento da luta pela formação da frente única antiditatorial. Para o esforço final da luta de conjunto, de todos os brasileiros, luta que acabará pondo por terra a ditadura”.[16]

Essas ideias foram mal recebidas e reprovadas no Comitê Central do PCB. Em 1º de dezembro de 1966, Marighella renunciou à Comissão Executiva numa carta de dez páginas. “O contraste de nossas posições políticas e ideológicas é demasiado grande e existe entre nós uma situação insustentável”, enfatizou, manifestando a disposição de “lutar revolucionariamente, junto com as massas, e jamais ficar à espera das regras do jogo político burocrático e convencional que impera na liderança.” Em oposição frontal à diretiva partidária que apontava para a necessidade de uma frente antiditatorial inserida na luta de massas, sustentou que “a luta pelas reformas de base não é possível pacificamente, a não ser através da tomada do poder por via revolucionária e com a consequente modificação da estrutura militar que serve às classes dominantes”. Foi além dizendo que “o abandono do caminho revolucionário leva à perda de confiança no proletariado, transformado, daí então, em auxiliar da burguesia, enquanto o partido marxista passa a ser apêndice dos partidos burgueses”.[17]

Marighella manteve-se, entretanto, no Comitê de São Paulo, sendo reeleito por ampla margem na Conferência Estadual do PCB, em Campinas, São Paulo, em abril de 1967. Luiz Carlos Prestes surpreendentemente compareceu, mas não conseguiu reverter os votos favoráveis a Marighella. O biógrafo Emiliano José narrou assim o “duelo” de titãs: “O clima era tenso. O Comitê Central, ciente da força de Marighella no estado, envia uma delegação chefiada pelo próprio Prestes, evidenciando a importância que a parcela hegemônica do partido dava ao encontro”.

Era um confronto de ideias, e de duas grandes lideranças. Uma quase mitológica, a de Prestes, o “Cavaleiro da Esperança”, o líder da coluna que levou o seu nome, o mártir do Estado Novo, a personificação dos comunistas no Brasil. Outra, tão antiga como a dele e agora uma estrela em ascensão, pelas propostas que defendia e pela coragem demonstrada na luta contra a ditadura – Marighella. Os votos dos 37 delegados escolhidos pelas bases traduziram a dimensão do prestígio de Marighella: 33 votaram com suas teses e apenas três ficaram com Prestes. A luta armada ganhava terreno e a aliança operário-camponesa tornava-se, nessa conferência, prioritária em relação a aliança com a burguesia nacional, para desconforto da corrente de Prestes”.[18]

As tensões com a cúpula do PCB não o impediram de continuar compilando os poemas que escrevia desde 1929. O segundo livro, Os lírios já não crescem em nossos campos, foi por ele custeado em1966. O primeiro volume tinha sido Uma prova em versos e outros versos, publicado em 1959 pelas Edições Contemporâneas.[19] Transcrevo um deles, “O país de uma nota só”,

Não pretendo nada,
nem flores, louvores, triunfos.
nada de nada.
Somente um protesto,
uma brecha no muro,
e fazer ecoar,
com voz surda que seja,
e sem outro valor,
o que se esconde no peito,
no fundo da alma
de milhões de sufocados.
Algo por onde possa filtrar o pensamento,
a idéia que puseram no cárcere.
A passagem subiu,
o leite acabou,
a criança morreu,
a carne sumiu,
o IPM prendeu,
o DOPS torturou,
o deputado cedeu,
a linha dura vetou,
a censura proibiu,
o governo entregou,
o desemprego cresceu,
a carestia aumentou,
o Nordeste encolheu,
o país resvalou.

Tudo dó,
tudo dó,
tudo dó…
E em todo o país
repercute o tom
de uma nota só…
de uma nota só…

Mesmo desautorizado pelo Comitê Central, Marighella viajou com passaporte falso para Havana, onde, de 31 de julho a 10 de agosto de 1967, participou, na qualidade de observador, da 1ª Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (Olas). O evento reuniu dirigentes revolucionários de todo o Continente. Com o slogan “Um, dois, três, mil Vietnãs!”, Cuba ofereceu suporte aos movimentos de libertação nacional da América Latina.

Ao ter a confirmação da presença de Marighella, a direção do PCB enviou telegrama ao PC cubano alertando que ele não estava autorizado a representar o partido na Olas e ameaçando-o de expulsão. Marighella respondeu com uma carta comunicando sua desfiliação. Encerrada a conferência, ficou alguns meses em Cuba, onde escreveu o primeiro texto sistematizado sobre o tema: “Algumas questões sobre a guerrilha no Brasil”, publicado pelo Jornal do Brasil em 5 de setembro de 1968.[20] Regressou ao Brasil com a promessa de apoio dos cubanos a um foco guerrilheiro.

O VI Congresso do PCB, realizado em dezembro de 1967, aprovou resolução contra a via insurrecional e ratificou as expulsões do partido, “por atividades fracionistas”, de Carlos Marighella, Mário Alves, Joaquim Câmara Ferreira, Apolônio de Carvalho, Jacob Gorender, Jover Telles e Miguel Batista. O partido conclamava os militantes a se empenharem numa ampla mobilização de massas contra o regime ditatorial. O horizonte revolucionário pressupunha uma gradual acumulação de forças e a organização da classe operária e das camadas antifascistas numa “frente democrática e popular”.

Em fevereiro de 1968, Marighella fundou, com Câmara Ferreira, o Agrupamento Comunista de São Paulo, que não queria ser um novo PC. “Precisamos agora de uma organização clandestina, bem estruturada, flexível, móvel. Uma organização de vanguarda para agir, para praticar a ação revolucionária constante e diária, e não para permanecer em discussões e reuniões intermináveis”, explicou no pronunciamento inicial da organização. “Seria para nós imperdoável perder tempo organizando uma nova cúpula, lançando os chamados documentos programáticos e táticos e fazendo novas conferências, de onde surgiria outro Comitê Central com os vícios e deformações já por demais conhecidos. (…) O que une os revolucionários brasileiros é desencadear a ação, e a ação é a guerrilha”.[21]

A Ação Libertadora Nacional surgiu em julho de 1968, concebida como “embrião do exército revolucionário, a força armada do povo, a única capaz de destruir as forças armadas da reação, derrubar a ditadura e expulsar o imperialismo”. A ALN rompia com a concepção de partido na tradição marxista-leninista, eliminando, nas palavras de Marighella, “o sistema complexo da direção que abrange escalões intermediários e uma cúpula numerosa, pesada e burocrática”.A maioria dos militantes era de jovens com pouco mais de 20 anos.

“A ação faz a vanguarda”, era o lema da ALN, que correspondia, como salientado pelo sociólogo Marcelo Ridenti, ao conceito teórico de Marighella segundo a qual “o desenvolvimento da organização viria da ação, isto é, da violência revolucionária, jamais dos debates teóricos, em grande medida supérfluos, já que o leninismo às lições da Revolução Cubana seriam suficientes para lançar a revolução brasileira e latino-americana”.[22] Pôs isso em prática na série de assaltos a bancos e carros-pagadores promovidos no eixo Rio-São Paulo, alguns dos quais chefiados por Marighella. O Pequeno manual do guerrilheiro urbano, escrito por ele em junho de 1969 e traduzido em diversos idiomas, tornou-se um guia sobre técnicas de preparação de ações armadas.

No texto “Chamamento ao povo brasileiro”, de dezembro de 1968, Marighella expôs as medidas que a ALN executaria, “de forma inapelável”, no poder. Entre elas, a abolição de privilégios da censura; liberdade de criação e de religião; libertação de todos os presos políticos e os condenados pela ditadura; extinção dos órgãos de repressão e do Serviço Nacional de Informações (SNI); julgamento público sumário e execução dos agentes da CIA em atividade no país, bem como dos agentes policiais responsáveis por torturas e fuzilamentos de presos; expulsão do país de cidadãos americanos envolvidos com o regime militar, com confisco de seus bens; monopólio estatal das finanças, comércio exterior, riquezas minerais, comunicações e serviços essenciais; confisco das empresas de capital privado nacional que colaboraram com a ditadura; confisco das fortunas ilícitas; confisco dos latifúndios, com extinção do monopólio da terra e de todas as formas de exploração dos trabalhadores rurais, e garantia de títulos de propriedade aos agricultores que trabalhavam na terra; eliminação da corrupção; garantia de empregos a todos os trabalhadores e às mulheres; reforma do sistema educacional, com o cancelamento do acordo MEC-USAID.[23]

Com efeito, a ALN representou o primeiro racha sério na esquerda. Na fragmentação político-ideológica, despontaram organizações pró-luta armada, como o Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), a Vanguarda Armada Revolucionária (VAR-Palmares), Ação Popular (AP, depois Ação Popular Marxista-Leninista, APML), o PC do B e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Desde a ruptura que levou à criação do PC do B em 1962, o PCB perdera um número significativo de quadros experimentados, a começar por Marighella. Praticamente todos que aderiram à luta armada estavam em discordância com a chamada “linha pacífica”, com a política de conciliação de classes que imperou até 1964 e com a burocracia centralizadora dos processos decisórios do partido.

Na ótica do PCB, o confronto com o regime militar era uma saída equivocada e voluntarista, que não levava em conta a correlação de forças desfavorável à esquerda. Temia-se que a guerrilha fornecesse pretextos para a direita radical intensificar a repressão e aniquilar os espaços de liberdade ainda existentes, isolando de vez os comunistas.

Tais argumentos não encontraram eco entre os adeptos da luta armada, cujos ímpetos para a ação se norteavam pelas referências mencionadas pelo historiador Daniel Aarão Reis Filho: “a da utopia do impasse, ou seja, a ideia de que o governo não tinha condições históricas de oferecer alternativas políticas ao país; e a de que as grandes massas populares, desiludidas com os programas reformistas, tenderiam a passar para expectativas e posições radicais de enfrentamento armado, revolucionário”.[24]

Entre os testemunhos que mais ajudam a compor o perfil de Carlos Marighella na fase tempestuosa da ALN, incluo o de João Antônio Caldas Valença, o ex-frei Maurício, que conviveu com ele em 1969, quando era um dos nove frades dominicanos que se juntaram ao setor logístico da organização. Em depoimento ao Grupo Tortura Nunca Mais, sublinhou: “Marighella tinha uma maneira de olhar muito aguda e um jeito penetrante de abordar nos diálogos com seus interlocutores. […] Era uma pessoa extremamente educada, gentil. Ouvia muito e se mostrava muito seguro nos argumentos quando falava. Tinha uma crítica muito aguda a toda uma vida de militância no PCB e ao seu processo de saída. Tinha toda uma reflexão crítica sobre a história das lutas populares no Brasil, das quais participara desde o período da ditadura de Vargas. Tinha um conhecimento da área técnica por estar ligado, no período dos seus estudos, às ciências exatas. Era poliglota, dominava os clássicos, embora pouco falasse a respeito. Sua sensibilidade derramava em pequenos atos, por ocasião das suas visitas mais do que necessárias para o andamento da organização que dirigia, nas casas dos militantes da ALN. Lembrava do nome de cada filho do anfitrião. Tinha uma memória prodigiosa para guardar nomes e se preocupava com o desenvolvimento pessoal e a formação dos militantes. Tinha informação de cada pessoa que conhecera e guardava detalhes de conversas ou situações.”

Segurança era uma preocupação constante no que se referia à ALN. “Ele era exigente e tinha muita clareza do que queria sobre este ponto”, salientou João Antônio Caldas Valença. “Mas, ao mesmo tempo em que exigia, tinha uma ousadia de estar em qualquer canto que fosse necessário de São Paulo ou Rio de Janeiro. Era visto pelos que o conheciam nos locais mais inusitados, como praças do centro destas cidades. Não tinha medo deste tipo de locomoção desde que dentro de princípios de segurança que ele obedecia.”

Segundo Valença, Marighella demonstrava “profundo respeito pelos dominicanos, sabia exatamente qual o papel do grupo de religiosos no processo de luta no Brasil, por isso respeitava sua religiosidade exposta, vivenciada várias vezes pelos frades. Chegou a estar presente em alguns atos litúrgicos, como a eucaristia, e notei nele um profundo respeito ao que estava sendo vivenciado por parte da comunidade (num colégio de freiras) em relação ao ato cristão”.

Entre as ações mais ousadas da ALN após a decretação do Ato Institucional nº 5, incluiu-se o sequestro do embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick, em setembro de 1969, em parceria com o MR-8. Marighella não se envolveu com a operação, comandada por Joaquim Câmara Ferreira (1913-1970), o Toledo. A ALN seguia o princípio da autonomia tática dos grupos armados no enfrentamento do sistema repressivo. Princípio, aliás, concebido pelo próprio Marighella no Pequeno manual do guerrilheiro urbano, três meses antes: “A organização é uma rede indestrutível de grupos de fogo e de coordenação, tendo um funcionamento simples e prático, com um comando geral que também participa nos ataques”.[25]

Segundo Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz, o Clemente (1950-2019), último comandante militar da ALN, Câmara Ferreira fora favorável ao sequestro e à associação com o MR-8: “Evidentemente, Marighella tinha uma grandeza política e, a partir do momento que a ação foi feita, ela a apoiou e conclamou a organização a apoiá-la. Mas eu ouvi da própria boca do Marighella que não era o momento de se fazer uma ação como o sequestro do embaixador americano, que ia açodar o poder contra nós, e foi o que aconteceu”, declarou Carlos Eugênio.[26]

Vale lembrar que no comunicado “Sobre a organização dos revolucionários”, divulgado pela ALN em agosto de 1979, Marighella advertira os mais afoitos quanto a atos e avaliações triunfalistas na frente guerrilheira. “Alguns companheiros pensam que nossa Organização já está construída, perfeita e acabada. Tal pensamento não é correto. Nossa Organização vai se edificando à medida que a ação aparece. Cada componente de nossa Organização tem que fazer a sua parte. A experiência tem que ser de todos.(…) É perigoso pensar que temos uma força que ainda não possuímos”.[27]

A atuação conjunta com o MR-8 no sequestro de Burke Elbrick comportava também uma tentativa de demonstrar força e sentido de unidade entre organizações com estratégias diferentes, num momento em que as possibilidades de articulação eram muito dificultadas pelos rigores e riscos da clandestinidade. E ainda havia as disputas de posição entre elas pela vanguarda revolucionária. Seja como for, ALN e MR-8conseguiram repercussão nacional e internacional com o sequestro; obtiveram a libertação e o banimento de 15 presos políticos; e, como também exigiram, a divulgação na televisão e no rádio do manifesto à nação esclarecendo as razões da luta contra os desmandos e barbaridades da ditadura, furando, momentaneamente, a censura nos meios de comunicação.

Por ocasião da libertação dos presos políticos trocados por Elbrick, Marighella escreveu o breve texto “Saudação aos quinze patriotas”, afirmando estar seguro de que “o povo brasileiro aprova a atitude da Ação Libertadora Nacional e dos que com ela participaram do sequestro do embaixador dos Estados Unidos. Foi esta uma das maneiras que os revolucionários brasileiros encontraram para liberar um punhado de patriotas que sofriam nas prisões do país os mais brutais castigos impostos pelos fascistas militares”.

Meses antes, entre abril e agosto de 1969, numa casa de subúrbio no Rio, e nas condições precárias impostas pela clandestinidade, Marighella gravou em fitas de rolo e cassete textos políticos seus para a Rádio Libertadora, cujo objetivo era difundir propaganda revolucionária em alto-falantes de bairros e subúrbios e, se possível, rádios. A estudante Iara Xavier Pereira, de 17 anos, militante da ALN, ajudou nas gravações e atuou como apresentadora. “Marighella pensava tanto em ações pequenas e localizadas (serviço de alto-falante) como em ações de ampla difusão, via rádio, a exemplo da ação executada pelos integrantes da ALN que tomaram a torre de transmissão da Rádio Nacional, na grande São Paulo, e irradiaram a mensagem ‘Ao povo brasileiro’ [escrita pelo próprio Marighella] no dia 15 de agosto de 1969”, contou Iara.[28] O projeto realçava a função relevante que Marighella atribuía à contrainformação, à contraideologia e à contrapropaganda, em meios alternativos de comunicação. Tratava-se de criar artifícios capazes de burlar, com conteúdos de denúncia e orientação política, a censura empresarial de grande parte da mídia, cúmplice do regime, e a censura oficial exercida pelos órgãos de informação da polícia política e das forças armadas.

 

A maioria dos estudos já produzidos indica que, no último mês de vida, Marighella julgava conveniente um recuo nas ações armadas, com o propósito de resguardar os militantes da ALN em face da devastadora ofensiva do aparato policial-militar em revide ao sequestro do embaixador. A palavra de ordem era liquidar a qualquer preço com a guerrilha urbana. Marighella morto, o alvo primordial.

O líder da ALN estava decidido a acelerar os planos para a implantação da guerrilha rural. Viajaria para a região central do país em 9 de novembro de 1969.A sua última entrevista foi dada entre os dias 1 e 2 ao jornalista Conrad Detrez e publicada pela revista francesa Front. À pergunta se esperava fazer a revolução, ele respondeu com palavras que pareciam pressentir que não estaria presente no dia da vitória final: “A questão não é essa. Sei apenas de uma coisa: a marcha revolucionária foi desencadeada, ninguém poderá detê-la. A revolução não é um negócio de alguns, mas sim o de um povo e de sua vanguarda. Faço parte, por haver dado, com outros camaradas, o golpe de partida. Mas é claro que a luta será longa e que virá o dia em que pessoas mais jovens do que eu deverão me substituir. Aliás, a maior parte dos militantes que segue a nossa orientação é pelo menos vinte e cinco anos mais moças do que nós. Chegada a hora, um deles levará minha bandeira ou meu fuzil, se preferir”.[29]

Porém, na noite de 4 de novembro de 1969, a um mês de completar 58 anos, Carlos Marighella foi assassinado covardemente por sicários da ditadura comandados pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, numa emboscada na Alameda Casa Branca, em São Paulo, Sua morte e as sucessivas quedas nas organizações, principalmente entre 1969 e 1971, atestaram o embate desigual e temerário da guerrilha com o aparato policial-militar do regime – o que levou, nos anos posteriores, ao isolamento social e ao esgotamento da luta armada.

Paulo Mercadante encontrou Carlos pela última vez em 1967. Ao sair de um consultório dentário na esquina das Ruas da Quitanda e São José, no centro do Rio, Paulo caminhava em direção à Esplanada do Castelo, quando avistou aquele homem alto, corpulento e de cabeça raspada. Os óculos escuros não foram suficientes para ocultar a fisionomia do amigo a quem não via há anos. Paulo foi em sua direção, Carlos reconheceu-o e abraçaram-se. Foi um contato rápido como a situação exigia – Marighella vinha sendo caçado como “inimigo número um do regime”. Por estranha coincidência, Mercadante soube da morte de Carlos exatamente no local do derradeiro encontro entre eles. Vindo do mesmo consultório dentário, o advogado parou na banca de jornais e leu, arrasado, as manchetes dos jornais sobre o desfecho da selvageria na Alameda Casa Branca.

O corpo de Marighella foi enterrado pelo DOPS, como indigente, no cemitério de Vila Formosa, em São Paulo. Dez anos depois, em 10 de dezembro de 1979, por ocasião da cerimônia de traslado de seus restos mortais para o Cemitério das Quintas dos Lázaros, em Salvador, Jorge Amado escreveu um comovente texto sobre o velho companheiro na bancada comunista na Constituinte de 1946, lido à beira da sepultura pelo ex-deputado do PCB baiano Fernando Santana. Eis o parágrafo final: “Esquartejaram tua memória, salgaram teu nome em praça pública, foste proibido em teu país e entre os teus. Dez anos inteiros, ferozes, de calúnia e ódio, na tentativa de extinguir tua verdade, para que ninguém pudesse te enxergar. De nada adiantou tanta vileza, não passou de tentativa vã e malograda, pois aqui estás inteiro e límpido. Atravessaste a interminável noite da mentira e do medo, da desrazão e da infâmia, e desembarcas na aurora da Bahia, trazido por mãos de amor e de amizade. Aqui estás e todos te reconhecem como foste e serás para sempre: incorruptível brasileiro, um moço baiano de riso jovial e coração ardente. Aqui estás entre teus amigos e entre os que são tua carne e teu sangue. Vieram te receber e conversar contigo, ouvir tua voz e sentir teu coração. Tua luta foi contra a fome e a miséria, sonhavas com a fartura e a alegria, amavas a vida, o ser humano, a liberdade. Aqui estás, plantado em teu chão e frutificarás. Não tiveste tempo para ter medo, venceste o tempo do medo e do desespero. Antonio de Castro Alves, teu irmão de sonho, te adivinhou num verso: “era o porvir em frente do passado. Estás em tua casa, Carlos; tua memória restaurada, límpida e pura, feita de verdade e amor. Aqui chegaste pela mão do povo. Mais vivo que nunca, Carlos”.

Na lápide do túmulo de Carlos no Cemitério das Quintas dos Lázaros, Oscar Niemeyer desenhou a silhueta de Marighella crivada de balas, ao lado da frase que lhe serve de epitáfio: “Não tive tempo para ter medo”.

 

Em maio de 1996, dossiê da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, do Ministério da Justiça, contestou a versão oficial de que Marighella morrera ao reagir à ordem de prisão dada pelo delegado Fleury. Conforme laudo do perito Nelson Massini, ele foi executado com um tiro no peito, à queima-roupa, depois de ferido por quatro disparos. A mando de Fleury, agentes do DOPS o atiraram morto na parte traseira de um Fusca, para forjar o tiroteio. Em 11 de setembro de 1996, por cinco votos a dois, a Comissão de Mortos e Desaparecidos responsabilizou a União pela morte de Marighella. O Ministério da Justiça homologou a decisão, determinando o pagamento de indenização à viúva Clara Charf.

No seu relatório final, divulgado em dezembro de 2014, a Comissão Nacional da Verdade confirmou, com base em novos laudos periciais, que Marighella foi fuzilado a sangue frio: “O tiro que atingiu Marighella na região torácica, provavelmente o último, foi efetuado a curtíssima distância (menos de oito centímetros), através do vão formado pela abertura da porta direita do veículo, numa ação típica de execução”.[30]

Em 13 de dezembro de 1999, a Câmara dos Deputados fez sessão solene para lembrar os 30 anos de morte de Marighella, também evocados na exposição “Carlos Marighella 30 anos depois”, que percorreu o país após uma temporada no Memorial da América Latina, em São Paulo. Por ocasião do centenário de nascimento de Marighella, em 5 de dezembro de 2011, a Comissão da Anistia do Ministério da Justiça realizou, em sua homenagem, uma sessão especial no Teatro Vila Velha, em Salvador. Em nome do Estado brasileiro, os ministros da Justiça, José Eduardo Cardozo, e dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, pediram oficialmente desculpas à família de Marighella pelo seu assassinato.

Carlos Marighella é nome de ruas no Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e Belém, entre outras cidades. No local da execução na Alameda Casa Branca, foi erguido um monumento em sua homenagem. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) mantém na antiga fazenda Cabaceiras, hoje Acampamento 26 de Março, em Marabá, Pará, a Escola Carlos Marighella, que atende 600 alunos matriculados no ensino infantil e fundamental e na educação de jovens e adultos. Inaugurada em 1973 no município de Sandino, província de Pinar del Río, Cuba, a Escuela Carlos Marighella desenvolve atividades voltadas ao trabalho agrícola.

Em 17 de fevereiro de 2014, após uma votação da qual participaram alunos, ex-alunos, pais, professores e funcionários, o nome do Colégio Estadual Presidente Emílio Garrastazu Médici, no bairro do Stiep, em Salvador, foi alterado para Colégio Estadual do Stiep Carlos Marighella. Do total de 658 votos apurados pela comissão responsável, Marighella obteve 461 e outro grande brasileiro e baiano, o geógrafo Milton Santos, recebeu 132, com 65 em branco ou nulos. A mudança foi referendada em portaria do governo da Bahia; no dia 11 de abril de 2014, o governador Jaques Wagner, do PT, inaugurou a placa e o letreiro do colégio com o nome de Carlos Marighella.

Numa análise serena das circunstâncias históricas, podemos discutir e questionar algumas de suas crenças, concepções estratégicas e táticas políticas. Mas a Marighella o que é de Marighella: poucos homens em nosso país demonstraram tamanha bravura na árdua luta pela emancipação social. Nunca tergiversou no essencial: sempre foi solidário aos explorados, oprimidos e excluídos.

No seu belo ensaio A chama que não se apaga”, o sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995) reavaliou as ideias, as vicissitudes, os erros e os acertos, as contradições, os compromissos e o destemor que singularizam o legado de Carlos Marighella. E concluiu: “Um Homem não desaparece com a sua morte. Ao contrário, pode crescer depois dela, engrandecer-se com ela e revelar sua verdadeira estatura à distância. É o que sucede com Marighella. Ele morreu consagrado pela coragem indômita e pelo ardor revolucionário”.[31]

* Dênis de Moraes, jornalista e escritor, é professor associado aposentado do Instituto de Arte e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense. Autor, entre outros livros, de O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos (José Olympio).

Este texto é uma versão revista, modificada e ampliada do artigo “Carlos Marighella, 90 anos”, publicado no site Gramsci e o Brasil, em 2001.

 

Notas


[1] Dênis de Moraes. O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 240.

[2] Jacob Gorender, “Recordações de um companheiro”. In: Cristiane Nova e Jorge Nóvoa (orgs.). Carlos Marighella: o homem por trás do mito. São Paulo: Editora Unesp, 1999, p. 396.

[3] Depoimento de Oscar Niemeyer no documentário Marighella, de Isa Grinspum Ferraz, 2012.

[4] Mário Magalhães. Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo, ob. cit. .São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 64.

[5] Carlos Marighella. Por que resisti à prisão. São Paulo: Brasiliense; Salvador: EDUFBA, 1995, p. 23-24.

[6] João Falcão. Giocondo Dias: a vida de um revolucionário. Rio de Janeiro: Agir, 1993, p. 83-87.

[7] Mário Magalhães. Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo, ob. cit., p. 154.

[8] Jorge Amado, “O homem que ria e que chorava”. In: Cristiane Nova e Jorge Nóvoa (orgs.). Carlos Marighella: o homem por trás do mito. São Paulo: Editora Unesp, 1999, p. 386.

[9] Ver José Fernando Martins, “Conheça Clara Charf, a maceioense que lutou ao lado de Marighella”, Jornal Extra, Maceió, 4 de dezembro de 2021.

[10] Entrevista de Maria Cláudia Badan Ribeiro a Emily Dulce, “Mulheres foram protagonistas da resistência armada à ditadura”, Brasil de Fato, 6 de dezembro de 2018. Consultar ainda Maria Cláudia Badan Ribeiro. Mulheres que foram à luta armada: protagonismo feminino na ALN (Ação Libertadora Nacional). São Paulo: Alameda, 2018.

[11] Dênis de Moraes. O velho Graça, ob. cit., p. 259-260.

[12] Carlos Marighella, “Honremos a memória do grande Stalin”, Voz Operária, 10 de março de 1953.

[13] Dênis de Moraes. A esquerda e o golpe de 64. São Paulo: Expressão Popular, 2011, p. 180.

[14] Carlos Marighella. Por que resisti à prisão, ob. cit., p. 141.

[15] Idem.

[16] Escritos de Carlos Marighella. São Paulo: Editorial Livramento, 1979, p. 88.

[17] Ibidem, p. 89.

[18] Emiliano José. Carlos Marighella: o inimigo número da ditadura militar. São Paulo: Sol & Chuva, 1997, p. 217.

[19] Os dois volumes de poesia de Marighella foram reunidos, postumamente, no livro Rondó da liberdade: poemas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

[20] Escritos de Carlos Marighella, ob. cit., p. 117-130.

[21] Ibidem, p. 137.

[22] Marcelo Ridenti. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora Unesp, 1993, p. 39.

[23] Escritos de Carlos Marighella, ob. cit., p. 139-143.

[24] Daniel Aarão Reis. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 50.

[25] Carlos Marighella. Manual do guerrilheiro urbano e outros textos. 2. ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 1974, p. 67.

[26] Depoimento de Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz no documentário Marighella: retrato falado do guerrilheiro, de Sílvio Tendler, 2001.

[27] A íntegra do texto “Sobre a organização dos revolucionários” está disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marighella/1969/08/sobre.htm.

[28] Iara Xavier Pereira, “Introdução: Projeto Rádio Libertadora”. In: Rádio Libertadora: a palavra de Carlos Marighella. Organização de Iara Xavier Pereira. Brasília: Ministério da Justiça/Comissão de Anistia, 2012, p. 21.

[29] “Leia fac-símile de entrevista inédita de Marighella à revista francesa”, Cult, 30 de setembro de 2019. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/entrevista-marighella/.

[30]Relatório da Comissão Nacional da Verdade; v. 1. Brasília: CNV, 2014, p. 448. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf.

[31] Florestan Fernandes. A contestação necessária: retratos intelectuais de inconformistas e revolucionários. São Paulo: Ática, 1995, p. 149.

 

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