“Memórias do cárcere” segundo Florestan Fernandes

Cena de "Memórias do cárcere" de Nelson Pereira dos Santos
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Por DÉBORA MAZZA*

Memórias do cárcere balizava-me o aparecimento de uma nova consciência política da realidade nacional e de uma repulsa ao conformismo típico dos movimentos de rebelião”

T.S. Eliot no poema A terra devastada afirma que “abril é o mais cruel dos meses” pois nele germina “os lilases da terra morta”, “as agônicas raízes da chuva da primavera”, “os secos tubérculos” e “a terra em neve deslembrada”. Diz: “leio muito a noite e viajo para o sul” como estratégia para fugir dos “restos do inverno” europeu (ELIOT, 1999, p. 52).

Ruy Castro (2024), talvez inspirado em T.S. Eliot, em artigo recente, indagou se podemos considerar abril “o mais cruel dos meses”. Dentre outros acontecimentos, relembrou o “abril de 1831, quando Dom Pedro I abdicou do trono brasileiro e o deixou para seu filho de seis anos”, o violento 1º. de abril de 1964, que durou 21 anos e “teve seu aniversário de 60 anos vigorosamente descomemorado há dias”, o “abril de 1981, quando houve a bomba no Riocentro” e, para complicar ainda mais a dúvida, encerrou o texto lembrando “a crueldade do abril de 1500, quando descobriram/invadiram o Brasil”.

O texto sério e irônico de Ruy me reportou a uma antiga e atual resenha de Florestan Fernandes (1920-1995) sobre o livro Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, e sua adaptação cinematográfica feita por Nelson Pereira dos Santos (FERNANDES, 1984, 2022).

Graciliano Ramos (1892- 1953) foi preso pela ditadura do Estado Novo quando ela começava a se desenhar, no início de 1936. Sem acusação formal ou processo, o escritor alagoano foi detido em Maceió por suposto envolvimento com a Intentona Comunista, contra o governo de Getúlio Vargas, ocorrida em novembro de 1935 e combatida pelas Forças de Segurança Nacional. Passando por diversos presídios, incluindo a Colônia Correcional, em Ilha Grande (RJ), ele ficou preso até início de 1937, período em que começou a escrever Memórias do Cárcere. Publicado em 1953, o livro narra o cotidiano do preso político, as condições insalubres e alguns episódios da repressão daquela época, como a deportação de Olga Benário para a Alemanha nazista.

Em 1984, o livro foi adaptado para o cinema por Nelson Pereira dos Santos (1928- 2018). Neste mesmo ano, Florestan Fernandes escreveu sobre o livro e o filme na série “Colunas Eternas” da Folha de S. Paulo (FERNANDES, 1984).

Memórias do cárcere

(Por Florestan Fernandes, 20.ago.1984).

Há quantos anos li Memórias do cárcere? Não me lembro. Não seria preciso ter vivido sob o inferno do Estado Novo para sofrer o impacto da grandeza daquele livro, que vincula a criação artística exemplar à ira moral e política mais consequente.

Os que falam de “literatura crítica” e de “arte engajada” quase sempre permanecem na periferia dos símbolos e na superfície da luta política.  Graciliano Ramos travou o combate ao nível mais profundo da defesa da dignidade do eu e da condenação irretratável do despotismo institucionalizado. Temperamento e circunstâncias acenderam a chama do “intelectual revoltado”, gerando-se assim a única obra de denúncia integral e de desmascaramento completo existente em nossa literatura.

Não voltei a ler o livro. Nem agora, que senti um ímpeto irrefreável de incentivar os leitores a não perderem a sua transposição cinematográfica. O vigor do livro, na minha memória, prende-se à revolta íntima, ao afã de denunciar e desmascarar além e acima dos limites do inconformismo ideológico e político, de buscar uma objetividade tão intransigente e penetrante que nos lembra a “verdadeira ciência”, no sentido de Karl Marx.

Ao sobrepujar seu rancor e as humilhações sofridas, o intelectual descobre o significado da prisão e da violência que imperam em toda a sociedade brasileira, de modo a identificar o microcosmo dentro do qual fora lançado como o limite mais brutalizado e esquecido do todo, mas, ao mesmo tempo, o mais expressivo e revelador.

De um golpe, o Estado Novo e as várias franjas psicológicas, policiais, militares ou políticas da opressão mostravam-se no que eram, em sua realidade histórica específica e nas projeções que a soldavam ao passado escravista e colonial mais ou menos remoto e recente, ou seja, em sua realidade histórica estrutural.

Em um país no qual a descolonização foi confundida com a troca de guarda na casa reinante e com a monopolização do poder pelos estratos dominantes dos estamentos senhoriais, Memórias do cárcere balizava-me o aparecimento de uma nova consciência política da realidade nacional e de uma repulsa ao conformismo típico dos movimentos de rebelião, que iriam engravidar a história das “noções proletárias”.

Constituía uma dificílima tarefa criadora transpor para a linguagem do cinema um livro como esse, que comoveu a nação, mas permaneceu ignorado pelos estudiosos do Brasil na sua perspectiva original mais elucidativa e provocadora, em ruptura com a “história oficial” e, especificamente, com as várias modalidades então existentes de “sociologia de gabinete” e de “ciência social acadêmica”. Pela segunda vez um escritor escrevia uma obra-prima dentro do seu métier (se se tomam Os Sertões, de Euclides da Cunha como paralelo), só que, agora, o produto transcendia à ordem existente como um todo e a punha em xeque. O cinema poderia responder dialeticamente a essa realização?

Só assisti uma vez ao filme de Nelson Pereira dos Santos e seus colaboradores (entre os quais a competência dos técnicos nada fica a dever à excelência dos autores). A impressão que me ficou, corroborada por uma longa reflexão crítica, levou-me à certeza de uma correspondência dialética efetiva.

O filme opera com os três níveis do livro: o psicológico, o da memória propriamente dita, que focaliza as ocorrências do dia a dia; o dos acontecimentos, no qual a história também se objetiva através da memória e da experiência direta com a realidade do Estado brutal, chocante e repulsivo, retrato da sociedade de que fazia parte e daqueles que a comandavam, para os quais ele constituía uma “necessidade política”; o da “repetição da história”, parcialmente visível através da ocorrência do cotidiano e dos acontecimentos, mas em sua maior parte matéria de análise crítica desmascaradora, pela qual a brutalização e bestialização do homem refletiam como a ditadura se incluía em uma cadeia de continuidades, que faziam do presente um espelho fiel do passado oligárquico, do passado escravista neocolonial e do passado escravista colonial, pretensamente desaparecidos. O que é preciso assinalar: o filme faz tudo isso pelas vias próprias do cinema, sem parasitar no talento de Graciliano Ramos nem mimetizar o portentoso quadro de referências obrigatório.

Memórias do cárcere, na versão cinematográfica, explora mais desenvoltamente a linguagem artística e as possibilidades que estão ao alcance do cinema de fragmentar a realidade para, em seguida, recompor o concreto nos diversos níveis em que ele aparece na percepção, na cabeça e na história dos homens.

Quem ama o livro por ele mesmo não vai recuperá-lo no filme. Quem ama as várias verdades que Graciliano Ramos enfrentou com hombridade e coragem irá ver no filme uma engenhosa e íntegra transposição do livro. Seria pouco dizer que ambos se completam.

Nelson Pereira dos Santos explica a técnica cinematográfica como Graciliano Ramos a técnica literária, como recurso de descoberta da verdade, arma de denúncia intelectual e instrumento de luta política.

Como a “sua” situação histórica é datada de hoje, o alvo imediato é, naturalmente, a ditadura atual e as condições que lhe conferem uma substância colonial inocultável. Esse é o aspecto por assim dizer genial do filme.

A atualidade de Memórias do cárcere não poderia estar em algo exterior, como o “acaso” de uma ditadura ainda mais racional no uso da corrupção, da opressão e da violência institucionalizadas. Portanto, terminar o filme com as sequências que foram escolhidas para esse fim representa uma solução magistral, que confere ao filme o mesmo sentido intelectual, moral e político do livro, a mesma força de uma indignação avassaladora.

Em suma, ele se evidencia como um presente colonial, que não desaparecerá por si só ou por uma impossível ação redentora dos que tecem as continuidades do despotismo. Sair das prisões não é vencer as ditaduras. Para acabar com elas, no solo histórico da América Latina, seria preciso destruir o arcabouço colonial no qual elas se assentam e que lhes dá a maligna capacidade de sobreviver aos que elas aprisionam e libertam…

*Débora Mazza é professora do Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Educação da Unicamp. Autora, entre outros livros, de A produção sociológica de Florestan Fernandes e a problemática educacional (Cabral Editora/ Livraria Universitária). [https://amzn.to/4dna4Ni]

Referência


Memórias do Cárcere.
Brasil, 1984, 185 minutos.
Direção e roteiro: Nelson Pereira dos Santos.
Produção: Luiz Carlos Barreto e Nelson Pereira dos Santos.
Elenco: Carlos Vereza, Glória Pires, Nildo Parente e José Dumont.

Bibliografia


CASTRO, Ruy. O mais cruel dos meses? In Folha de S. Paulo, Opinião, 03/04/2024.

ELIOT, T. S. A Terra Devastada. Lisboa: Relógio D´água, 1999.

FERNANDES, Florestan. Memórias do Cárcere. Sociólogo analisa adaptação cinematográfica do clássico de Graciliano Ramos. In Folha de S. Paulo, Série Colunas Eternas, 20/08/1984. A resenha foi republicada na Folha de S. Paulo. 19/01/2022, p. A9.

RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. 23ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 1987.


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