México – a reforma do poder judiciário

Imagem: Israel Bernal
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Por ALFREDO ATTIÉ*

As consequências jurídico-políticas de uma reforma que podem servir como inspiração e modelo para que se efetue no continente americano uma mudança da concepção e da prática da justiça

1.

Foi, finalmente, aprovado, no México, o Projeto de Una reforma con y para Poder Judicial de la Federación(uma Reforma com, e para o Poder Judiciário Federal), originalmente apresentado, em 2020, para amplo debate político e social, e aos poderes legislativo e judicial daquele país, pelo presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO).

Andrés Manuel López Obrador deixa seu cargo hoje, primeiro de outubro, quando tomará posse sua sucessora, Claudia Scheinbaum Pardo, ex-prefeita da cidade do México. A vitória de Claudia Scheinbaum foi mais um dos feitos do atual presidente, que logrou, ainda, obter, na mesma eleição de 2024, maioria expressiva tanto no Congresso mexicano quanto em grande número dos governos provinciais, para o Partido MorenaMovimiento Regeneración Nacional –, que fundou, há doze anos, terminando seu mandato com amplo apoio popular.

Estava na Cidade do México, para compromisso acadêmico na Universidad Nacional Autónoma de México, no dia da eleição – feriado nacional, em que as famílias aproveitam para passear pela cidade, visitando parques, igrejas, palácios e museus, em um exercício cultural e educacional bonito de presenciar – e era perceptível esse apoio, sobretudo, do povo mexicano mais simples à causa representada por AMLO. No final do dia, encerrada votação, a praça central estava lotada, já para a comemoração da vitória da candidata do presidente e de seu partido. Esse apoio foi decisivo para que a Reforma Judicial se concretizasse, com alterações importantes na Constituição e nas leis do país.

Pouco compreendida no Brasil, objeto, ainda, de ataques de juristas e comentaristas políticos apressados, brasileiros que parecem ignorar seu teor, trabalhando com velhos preconceitos e com a imagem que Estados Unidos e Canadá buscaram impor ao importante trabalho legislativo mexicano,[i] minha intenção, no presente artigo, é tecer breves comentários à reforma, buscando demonstrar sua intenção político-democrática, seu texto e contexto jurídicos, bem como suas consequências jurídico-políticas, que podem servir como inspiração e modelo para que se efetue, no continente americano, uma mudança da concepção e da prática da justiça.

2.

O filme de Serguei Eisenstein, Que viva Mexico!, finalizado por Aleksandrov, sobre a aventura mexicana, de seus povos originais até a primeira década do século XX, a par de buscar uma assimilação entre os povos dominados pelos colonizadores das Américas, a partir do final do século XV, e os agentes da Revolução de 1910, de um ponto de vista de uma ou várias etnias indígenas que buscam recuperar seu protagonismo histórico e cultural, solapado pelo empreendimento dominador e explorador europeu, termina com a indagação da possibilidade de efetivamente esses povos retomarem em suas mãos o controle de seus destinos.

Essa busca de reconhecer e fazer conceder expressão aos elementos autóctones é uma constante dramática da história mexicana – como, ademais, daquela dos povos colonizados. De fato, no movimento de independência do México, os documentos constitucionais terão a influência, em primeiro grau, da Constituição escrita que Napoleão Bonaparte impôs ao império espanhol, a Carta de Baiona, que, pela primeira vez, indicava a igualdade entre todos (ou quase todos, pois havia, tanto lá como aqui, no Brasil, a exclusão dos africanos) os habitantes de sexo masculino, fossem os espanhóis da Península Ibérica, fossem os habitantes das colônias nos demais Continentes.

A resposta dos nacionalistas-realistas resistentes espanhóis, sob a tutela armada da imperial Grã-Bretanha, veio com a Carta de Cádiz, que reproduziu a fórmula da igualdade (parcial), inspirando, afinal, o Plano de Iguala, que falava expressamente na representação dos povos, ou “todos los habitantes de él, sin otra distinción que su mérito y virtudes, son ciudadanos idóneos para optar cualquier empleo; Sus personas y propriedades serán respetadas y protegidas,”, conforme outorgado pelo comandante Iturbide, em nome do chamado Ejército Trigarante, em 1821.[ii]

Na mesma época, o Brasil iniciava seu processo da independência da metrópole portuguesa, busca de autonomia política que logo se mostraria uma ficção, depois objeto de uma construção historiográfica de propaganda. Ao contrário da Carta mexicana, o Império brasileiro encontrará expressão jurídico-política na chamada “constituição outorgada” de 1824, que, a rigor, inaugura a tradição dos atos institucionais, típicos das várias ditaduras pelas quais passou nossa história.[iii]

Claro está que essas pretensas Constituições, fruto da moda imperialista e absolutista pseudoilustrada europeia – verdadeira face dissimulada do louvado – por europeus e norte-americanos, em ideologia difundida com notável habilidade, para todos os povos do mundo – constitucionalismo moderno, renderam, sobretudo em nosso caso, a contradição de um povo formal-constitucional que nega a constituição de sua própria sociedade e desenha formas de exclusão na criação de estruturas de poder, reproduzindo a relação metrópole-colônia no interior da permanente colônia (que se fez, a partir de então, estruturalmente colonizadora), que se autodeclara como independente e, mais significativo, autoconcebe como império.[iv]

Nosso ensino jurídico viu-se, desde o início de sua jornada brasileira, logo após a mistificadora independência política, embrenhado numa visão artificial da realidade social. Como que prisioneiro da mesma ficção emancipatória, que gerou, em verdade, a continuidade dinástica dos Bragança, na metrópole e na colônia, na figura dos dois descendentes do Príncipe que teria sido responsável pelo, insisto, primeiro ato institucional brasileiro, travestido de Carta Outorgada, em 25 de março de 1824 – portanto há duzentos anos exatos.

No Brasil recém-independente, nenhuma palavra sobre a categoria mais importante do direito na modernidade, que é a pessoa como sujeito de direitos e obrigações. A enunciação da centralidade pessoal do direito, aqui, viria a ocorrer quase cem anos após o Grito do Ipiranga, num documento tido como de direito privado, o Código Civil de 1917, mesmo a no de promulgação da atual Constituição mexicana. Quero dizer, com isso, que não havia obstáculo ideal nem material para o reconhecimento, mesmo que formal e limitado, como feito no movimento de independência mexicano, por influência do projeto político-imperial napoleônico, em última instância, que impedisse a carta de independência brasileira atuar da mesma forma.

Contudo, parece-me evidente, o ato institucional brasileiro continha uma limitação clara, dada pelo fato de que a independência formal – não materializada juridicamente até o presente, talvez, muito embora o esforço constituinte hercúleo de 1986/1987 – somente ocorreria após a outorga da pretensa Constituição, pelo Tratado do Rio de Janeiro, firmado pelo imperador Pedro e pelo embaixador britânico no Brasil, este em representação do rei João VI de Portugal. Documento em que havia renúncia de sucessão por parte do imperador e reconhecimento de emprego do título de igual estatura, em relação ao Brasil, pelo rei. Todo um conjunto de atos forjados, em verdade, como a história posterior, tanto do Brasil quanto de Portugal, viria demonstrar, em termos políticos e dinásticos.

O interessante é que a Carta brasileira buscou, explicitamente, inspirar-se, na subversão costumeira de textos estrangeiros, na leitura nacional, em outro texto napoleônico, este da lavra de Benjamin Constant, para instituir, aqui, uma versão do Poder Moderador, fantasma que nos assombra até hoje. O ensino jurídico brasileiro, então, inaugurava-se sob o signo da continuidade, armando-se como repetição exemplar da formação dos servidores públicos das elites havida na Universidade de Coimbra, em São Paulo e em Olinda/Recife.

O Brasil, que seguia as leis coloniais – demonstração da perenidade da ordem posta pela metrópole, substituída Lisboa pelo Rio de Janeiro –, no âmbito civil, mas buscou forjar Códigos pretensamente próprios, nas áreas Comercial e Penal, para possibilitar, respectivamente, o livre exercício subalterno das elites, no âmbito internacional, e o controle do povo, no ambiente interno. Nada dizendo, claro, sobre a escravidão, que fornecia o fundamento para o pensamento e a prática da crueldade moral, intelectual e material de nossa história.

Sem o reconhecimento da pessoa, portanto, de direitos e deveres, o que ocorria era um modo de embaralhamento institucional, que permitia a exploração e opressão por parte da minoria – que se entendia europeia, mas efetivamente representante do caráter superior no País (que se queria novo, mas não era) – sobre a maioria, pobre, livre ou escravizada.

Nossa educação jurídica continua a perseverar no preconceito a todo popular, e a propagar a ideia de que a aliança do direito brasileiro com as, em verdade, imposições elitistas, concede a saída para os problemas que, sob essa ótica, não cansam de reaparecer e crescer. Verdadeira negação, portanto, de direitos e deveres que, na prática, ocupa os espaços da mídia, na celebração do mainstream jurídico e sua vaidosa imagem, haurida nos espelhos que para si forja. As características desse povo serão objeto da ação da violência real e simbólica dessas elites, dobradas sob a pesada desconsolação de si mesmas.

É a evidência dessa educação empobrecida e deturpada que me faz compreender as críticas de juristas brasileiros à reforma judicial mexicana. É esse medo e aversão da presença do povo e do despertar de seu poder que faz com que logo se acenda, nessas mentes subalternas, o alerta de risco à tradição jurídica brasileira – que nunca foi verdadeiramente jurídica e, talvez, nem mesmo brasileira.

As críticas apontam para um dogmatismo de ordem colonial: só há um modelo de justiça, afirmam, consciente ou inconscientemente, sendo aquele que os norte-americanos engendraram para seu próprio mundo – e que foi copiado pela Europa, até bem pouco tempo, mesmo no âmbito continental, que, diante da concepção de controle constitucional do Novo Mundo, desde logo, tornou-se assombrada pela obsessão de criar uma corte constitucional.

Ocorre que esse modelo é um modelo ultrapassado e, por essa inadequação contemporânea, tem levado ao esgotamento da própria experiência republicana – não digo mais democrática – norte-americana, e à esclerose de seu tecido social, tomado por emoções de ódio e de desejo de fragmentação, em decorrência de preconceitos remanescentes, de violência explícita e de renovadas e inventivas discriminações.[v]

Para o nosso caso – latino-americano, sul-atlântico, ibérico, mediterrâneo (europeu/asiático/africano) -, sobretudo, afrodescendente e indígena (originário), esse modelo se mostra bastante contraditório, equívoco, se não equivocado. As críticas norte-americana e canadense ao sistema mexicano proposto e aprovado caminham nessa direção: só há justiça quando, afirmam de modo soberbo, “nós” reconhecemos o sistema como de justiça. Já fiz a crítica desse “constitucionalismo” e de seus requisitos arbitrários e preconceituosos, além de pressupostos altamente discriminatórios, assim nocivos para a própria concepção de justiça. [vi]

A crítica norte-americana e canadense, ecoada por brasileiros, volta-se contra um princípio importante do direito internacional – pelo qual o Brasil muito se bate – que é o da autodeterminação dos povos. Ela desdenha a capacidade de um povo de decidir seu próprio destino: escolher e imaginar estruturas e instituições para a realização de seus projetos comuns. Observa-se que, mesmo tendo consciência, por exemplo, que juízes e juízas norte-americanos são eleitos ou nomeados, que o sistema judicial norte-americano se baseia, em boa medida, numa constelação de júris, assim envolvendo participação popular inequívoca, mesmo que controlada, essa crítica interessada procura impedir que a mesma possibilidade de participação, no papel e na escolha de julgadores, ocorra em outros Países.

O temor, tudo indica, é de que a implantação de um modelo diferente do tradicional levaria os novos julgadores e julgadoras do modelo desenhado pelos norte-americanos, inclusive de educação jurídica, que tem sido, lamentavelmente, copiado – e mal copiado – nos Países que (se) consideram satélites, para que juízes e juízas formados naquele velho modelo esclerosado venham a se tornar (como já se fizeram, em larga medida)um subproduto, arremedo da formação e da atuação de juízes, juízas e juristas norte-americanos (e também dos europeus), que estariam sempre em posição de ensinar e exigir repetição.

É o modelo das universidades norte-americanas e seus cursos de direito e LLM – este, em verdade, assimilado aos cursos de especialização, cuja concepção e execução são de um treinamento intensivo e exigente para a adoção de um modelo cultural de pensar e agir, a partir da repetição automática de fórmulas, teses e práticas, sempre favoráveis aos agentes políticos e econômicos do sistema de interesse geopolítico e econômico europeu e norte-americano.[vii]

Aqui, quero vincular a proposta mexicana – que considero virtuosa e corajosa, malgrado imperfeita e mesmo tímida em um aspecto essencial – a novas possibilidades de um sistema judicial que se aproxime da justiça e seja digno desse nome.[viii]

Vamos, então, à análise crítica da Reforma constitucional e legal mexicana, a partir da perspectiva de suas Constituições e do texto mesmo da Reforma.

2.

A Constituição mexicana de 1857, decorrente da chamada Reforma Liberal, marcou a ampliação da concepção constitucional daquele País, por um lado, com o cuidado de institucionalização efetiva do estado federal, bem como pela incorporação de uma declaração de direitos humanos e de uma concepção tripartite de poderes, nos moldes do que, sem questionamento, presumiu-se ser natural numa sociedade que se pretendesse moderna, em um regime efetivamente republicano. Isso após tantos anos de instabilidade, sobretudo condicionada pelo longo conflito com os Estados Unidos da América, que se encerrara oito anos antes da promulgação da nova Constituição.

Por outro lado, determinou a adesão ao modelo de constitucionalismo moderno, a partir da influência da França – uma vez mais – e do expansionista vizinho setentrional. A Carta abriu espaço para as mudanças que culminariam com a atual Constituição de 1917, considerada como marco internacional da constitucionalização dos direitos sociais. Nas duas Constituições, contudo – a última em sua redação original, que perdurou até a reforma de 2001 –, a concepção de nacionalidade permaneceu indiferente, sem considerar, portanto, a evidente pluralidade de povos, o caráter multicultural do povo mexicano, e a presença majoritária dos povos originários. Tais caráter e presença destoavam radicalmente da incorporação da fórmula genérica da nacionalidade, de índole colonial, travestida, como em toda a América Latina, de moderna.

A reforma do primeiro ano do presente século trouxe, finalmente – após séculos de luta, que culminariam, em 1994, com o levantamiento armado do Ejército Zapatista de Liberación Nacional –, o reconhecimento pluricultural e dos direitos à libre determinación e à autonomia para, entre outras questões, decidir sus formas internas de convivencia y organización social, económica, política y cultural; e aplicar sus propios sistemas normativos en la regulación y solución de sus conflictos internos, desde que submetidos aos principios generales da Constitución, e que respeitassem as garantías individuales, los derechos humanos y, de manera relevante, la dignidad e integridad de las mujeres.

Entretanto, tomada ainda como insuficiente, está em trâmite, já aprovada pela Câmara de Deputados, Emenda Constitucional, vinculada às Reformas propostas pelo atual Governo, inclusive à Judicial, que aprofunda não apenas o reconhecimento de pessoas, grupos e povos originários e afrodescendentes, mas igualmente de seu direito à autodeterminação e participação na vida pública e política do País.

Ao lograr tal reconhecimento, a Constituição fez prever a necessidade de leis que regulamentassem a estrutura constitucional autônoma dos povos originários, incluindo, para o que nos interessa aqui, uma lei que estabelecesse os casos y procedimientos de validación por los jueces o tribunales correspondientes das. decisões emanadas dessa autodeterminação plural normativa.

Essa determinação é particularmente relevante para o tema da Reforma judicial, uma vez que ela já apontava a necessidade de uma readequação da concepção do próprio Poder Judicial, que estava conformado ao modelo norte-americano, muito embora com algumas adaptações. A Constituição, com efeito, previa que o judiciário seria composto pela Suprema Corte de Justicia e por Tribunales de Circuito y de Distrito, sendo os ministros e ministras daquela escolhidos pelo Congresso, em votação secreta, segundo determinados requisitos, e os demais juízes e juízas nomeados pela Suprema Corte, também de acordo com determinadas regras.

3.

Penso ser muito estranho que ninguém tenha contestado o fato inusitado de juízes e juízas, incluindo os da Suprema Corte, serem nomeados sem a participação popular, num País de tantas revoluções, e que afirmava – numa Constituição virtuosa, que inaugurava seu texto com uma extensa declaração de direitos individuais e sociais – que a soberanía nacional reside esencial y originariamente en el pueblo, e, sobretudo, que todo poder público dimana del pueblo, que, inclusive teria o direito inalienável de, a qualquer tempo, alterar o modificar la forma de su gobierno.

Ora, se a democracia é representativa e o poder pertence ao povo, seria evidente que lhe coubesse a escolha de todos os seus representantes, nos vários poderes, inclusive o Judicial. Entretanto, não houve esse questionamento, de meu ponto de vista inafastável. E o Judiciário mexicano permaneceu moldado segundo uma estrutura elitista e oligárquica, separado da ordem constitucional e do princípio da soberania popular e da representação.

Pode-se afirmar que a estrutura do Poder Judicial assim concebida como apartada, protegida da democracia mesma, decorreria de uma tentativa de forjar uma nacionalidade universal e unitária, contra a evidência da pluralidade de povos. Negar, portanto, a capacidade de autodeterminação e o reconhecimento de que outras ordens culturais e jurídicas estavam presentes no território mexicano. Um Poder Judicial oligárquico e elitista teria a função de impor a todos os povos as normas criadas pela minoria que se entendia titular das decisões relativas ao destino do País, inserido no concerto das Nações por meio de um sistema jurídico, imposto pelo Judiciário, reconhecível aos Países dominantes dessa sociedade internacional que se reunia mais como um club privado, que convida seus membros ao bel prazer dos que o dirigem, do que como um pub, um verdadeiro espaço público aberto à participação e às contribuições de todos os seus membros.

De fato, o poder judicial é o mais permeável essa influência de uma ordem internacional – quando verdadeiramente internacional, quando traz contribuições extremamente positivas, como a inserção de uma cultura de direitos humanos e de adesão e respeito a Tratados internacionais relativos a essa matéria, que abrange temas cada vez mais amplos e de reforma profunda de estruturas tradicionais de discriminação e preconceito -, ou mais comumente estrangeira, que faz impor seu modo de ser, suas normas, valores e cultura, por meio de um processo de convencimento ou persuasão alheio ao controle da soberania e da democracia.

Esse processo inicia-se na educação jurídica, que apenas reproduz fórmulas e não confere agência ao povo, mera referência desprezada, tristemente, pelos juristas em sua formação. É o que ocorre em todos os Países, claro, mas é sobretudo o modelo nos que foram colônias, em que o cuidado de preservação dos laços pretensamente civilizacionais com a metrópole e o universo cultural que representa são maiores.

No Brasil por exemplo, o ensino permanece largamente europeizado, tendo migrado paulatinamente para a influência ( e mesmo a simples cópia) norte-americana, em áreas bastante sensíveis e decisivas para a concepção de soberania e de democracia – sempre as contrariando –, sem jamais perquirir o que seus povos compreendiam e definiam como jurídico, a partir de experiências e culturas originárias e afrodescendentes, numa palavra, autênticas.[ix]

Como tenho afirmado, o direito e o constitucionalismo modernos são, em verdade, o resultado de uma imposição de modelos forjados no espaço europeu, que, em seu processo (anti)político de construção do Estado buscou estabelecer a hegemonia da produção do direito nas mãos da autoridade que representava a minoria no poder. Isso quer dizer que não há propriamente uma monarquia como regime de governo, mas uma relação, entre pactual e contratual,[x] que cria a imagem do governante único, para justificar formas de domínio político, social, econômico, cultural. O Estado é, assim o tenho definido, uma forma de alienação da capacidade política.[xi]

Isso significa que essa estrutura tende continuamente a desapossar a capacidade de as pessoas, grupos e povos de sua autonomia para conceber projetos político-jurídicos de convivência, decidirem seu destino, na forma de uma organização baseada na igualdade, na liberdade, que se expressariam, verdadeiramente, na criação, ocupação de espaços-tempos político-jurídicos autênticos, isto é, democráticos. Não é à toa que essa forma que invade e usurpa o espaço-tempo da política, por meio da dominação de uma minoria (oligarquia), desde logo estabelece alianças com interesses soais, econômicos, culturais de minorias, que impõem seu poder por meio das estruturas de violência que o Estado lhes confere ou, mais comumente, de seus próprios meios de violência, reconhecidos pelo Estado.

O Estado não detém propriamente o monopólio do uso legítimo da violência, mas da capacidade de autorizar o uso da violência, real ou simbólica, de certos grupos sobre outros ou sobre a maioria. O Estado, portanto, inaugura o processo de alienação que a economia, como ciência e como prática, faz empreender, naquilo que se chamou de apossamento, apropriação ou acumulação, que não são primitivos, isto é, inaugurais de um sistema econômico, mas derivados da alienação político-jurídica que o estado representa. Não são, igualmente, primitivos porque não se esgotam na fundação desse sistema de exploração e opressão, mas são condutas que se perpetuam, na construção e reconstrução permanentes de uma antipolítica de exclusão, de afastamento, de discriminação, de estrangeirização, de periferização do povo, como um todo.[xii]

Os dois fenômenos sociais vinculados a essa forma de dominação, opressão, exploração[xiii] são, originalmente, território e violência, objeto e ato de estipulação de uma ordem jurídico-política de exclusividade e exclusão. Território e violência, ao, paulatinamente, desmaterializarem-se, tornando-se cada vez mais abstratos, fazem-se mecanismos de construção de um direito anticivilizacional e de uma antipolítica, que vai desfazendo as características dos povos sobre os quais passam a incidir, de tal sorte que forjam a ideia de unidade ou universo, buscando fazer o igual a regra, um igual que é apenas a imagem de quem domina.

Depois de iniciarem esse processo de universalização em espaço-tempo europeu, numa atividade de autocolonização, prosseguem e aprofundam a identidade desse percurso destrutivo nos espaços-tempos que vão colonizando, desapossando e violentando os povos, culturas, direitos, políticas, sociedades que encontram. É a acumulação permanente, a alienação constante das capacidades da diferença, da alteridade. Pode-se compreender perfeitamente a crítica que é feita à iniciativa mexicana – feita claramente de uma perspectiva colonizadora – como simples consequência lógica e histórica do seguimento desse processo de alienação da capacidade política, que é o modelo ou forma Estado.

Essa forma, que se realiza no sistema que se fez hegemônico, por meio dela, no ambiente internacional não quer que haja pluralidade no âmbito nacional – numa concepção de um racionalismo menor ou positivismo – e não aceita que mesmo os sujeitos tradicionais de direito internacional, os Estados nacionais, apresentem-se com sistemas jurídicos diversos, no ambiente mundial. Quero insistir que essa crítica que faço se estabelece a partir do ponto de vista da democracia e dos direitos humanos – e não contra os direitos humanos, como comumente se tem interpretado, equivocada ou maldosamente, qualquer iniciativa de abordar o tema a universalização.[xiv]

4.

A Reforma Judicial implantou-se após mais de quatro anos de debate,[xv] com participação – e resistência – inclusive do próprio Poder Judicial, a partir da iniciativa do Poder Executivo federal mexicano, com a aprovação do Poder Legislativo federal e o encaminhamento para a manifestação Estados que compõem a federação dos Estados Unidos Mexicanos, no processo de adoção da Emenda Constitucional. São muitas as mudanças. Vou analisar as que considero mais importantes, inclusive tendo em vista a possibilidade de seu aproveitamento crítico e construtivo numa reforma desejável no Brasil.

A Reforma possui inúmeros dispositivos constitucionais e infraconstitucionais. O que chamou a atenção da crítica diz respeito a apenas uma parcela do que se modificou efetivamente.

Muitos dos dispositivos referem a solução de problemas semelhantes aos vividos em outros países, o Brasil entre eles (que intentou uma reforma em 2004, pela Emenda Constitucional 45, mas não foi tão longe e, de certo modo, frustrou expectativas de efetiva democratização e controle popular), tais como a desigualdade de acesso às carreiras jurídicas públicas – no caso do México, a Reforma toca nas carreiras da judicatura (juízes e juízas), nas de funcionários públicos ligados ao judiciário e na defensoria pública.

O texto da exposição de motivos refere um aspecto muito sensível, porque fundamental para a constituição de um poder judicial legítimo e confiável, a imparcialidade dajustiça: “la impartición de justicia federal en nuestro país enfrenta grandes retos. Los jueces federales no siempre se conducen con la ética, profesionalismo, independencia e imparcialidad que deberían observar en sus funciones. Muchas veces sucumben ante intereses mezquinos. Los cargos que deberían ocuparse por méritos se otorgan a familiares y amigos en un afán por exprimir los recursos públicos antes que servir a la justicia. El sistema de carrera judicial no ha sido exitoso para asegurar que quienes lleguen a ser juzgadores sean las personas más honestas y mejor preparadas. Tampoco se ha podido desterrar la corrupción, sino que, por el contrario, la endogamia y el amiguismo han producido redes clientelares muy arraigadas, en las que se trafica con plazas, se intercambian favores, o peor aún se pone precio a la justicia.

É um diagnóstico gravíssimo, que não foi contestado nem mesmo pelos críticos da Reforma no México. A Reforma entende que, de imensa gravidade é a geração de desigualdade, de tal sorte que haveria incapacidade de aproximação e sensibilidade com os problemas do próprio povo, a par da desconexão com o princípio do império do direito: “todo ello genera desigualdades en el sistema de judicial, dificulta que los más pobres puedan ser escuchados y que sus reclamos sean atendidos, lastima a la sociedad, y genera desconfianza en los jueces y en la justicia, lo cual, en su conjunto, impide el establecimiento de un verdadero gobierno de leyes.

Ao lado disso, a Reforma busca um caminho de racionalização do exercício da função de julgar, assim empreendendo uma mudança na competência jurisdicional da Suprema Corte, que perde suas Câmaras voltadas a julgar casos de direito civil, penal, administrativo e trabalhista (um órgão jurisdicional fica responsável por solucionar os conflitos entre o judiciário e seus funcionários), passando a conhecer e a apreciar somente questões constitucionais (com ampliação dos legitimados a questionar a constitucionalidade de atos, mas, paradoxalmente, com a inserção de um procedimento de notificação da autoridade responsável pelo ato considerado inconstitucional, para que possa corrigir o defeito, em determinado prazo, para, somente depois, a Corte poder suprir a inconstitucionalidade) – nesse aspecto, a Suprema Corte julgará também questões de inconstitucionalidade por omissão, não se limitando, portanto, a apenas apreciar se um ato normativo, administrativo (casos do chamado amparo indirecto) ou judicial (caso do amparo directo) específicos contrariam a Constituição – e de direitos humanos – relativas não apenas àqueles previstos na Constituição, mas, igualmente, aos previstos em Tratados Internacionais de que o México faça parte.

Os direitos humanos passam a ter importância crucial no trabalho da justiça, com a criação de órgão específico para que questões relativas a eles sejam apreciadas com eficácia. A Defensoria Pública passa a ter um estatuto mais digno, tendente a torná-la uma função essencial na audição e representação dos interesses e direitos populares.

Há igualmente questões de ordem técnica e administrativa, como o de autorregulação da Poder Judicial, por meio de uma lei específica, orgânica da magistratura, além da reestruturação da carreira judicial – essa lei específica passa a tratar das questões administrativas relativas a concursos para ingresso e promoção nas carreiras vinculadas à judicatura, com a fiscalização de desempenho, garantindo a regulação da inamovibilidade de julgadores e julgadoras, após determinado tempo de exercício da função, além de um conselho judicial, para fiscalização das atividades de juízes e juízas, e um órgão central de administração judicial – e dos defensores e defensoras, a instituição da colegialidade nos julgamentos de recursos, bem como de instância voltada a resolver as contradições entre decisões.

Nesse caso, a Reforma estabelece, também, o sistema de respeito a precedentes da Suprema Corte – que passaria a ter não mais onze, mas nove ministros –, para que as questões constitucionais e a interpretação levada a cabo por esse tribunal tenham ressonância em toda a jurisdição nacional. Existe uma preocupação de que igualdade e real mérito sejam efetivamente respeitados, a par da previsão de paridade de gênero na carreira judicial. Há regulação, também, dos funcionários voltados a auxiliar a realização das funções jurisdicionais, e a criação de uma escola nacional da magistratura.

No que diz respeito a se findar com o poder que a Suprema Corte hoje possui, de suspender atos suspeitos de invalidade constitucional, parece interessante ponderar que o que se estabelece é a possibilidade de o poder ou autoridade responsável pelo ato inconstitucional possa revoga-lo ou aperfeiçoá-lo, em determinado prazo, mediante notificação, antes que efetivamente o judiciário venha a suprimir o ato ou determinar o modo como deve ser interpretado e aplicado. É uma inovação, claro que discutível, uma vez que permite que a inconstitucionalidade persista mais tempo, gerando efeitos nocivos à ordem jurídica, mas que consagra a ideia de que o poder judicial tem a função apenas de controle dos demais poderes e não de os substituir, ao se deparar com uma ação invalida ou com uma omissão.

É interessante que essa contenção de poder da Suprema Corte se dê mesmo diante da implementação do princípio democrático, com a eleição de seus membros.

Com relação à inconstitucionalidade por omissão, não devemos esquecer que a nossa Constituição, em sua redação original, influenciada pelos momentos europeus de redemocratização, na Península Ibérica, e pela evolução do sistema alemão de controle de constitucionalidade, estava bastante vinculada a coibir e suprir as omissões dos legisladores, que silenciavam diante da necessidade de regulamentar direitos, deveres e políticas públicas postas pela Constituição, gerando, assim, uma ineficácia considerada inconstitucional.

A Constituição brasileira, portanto, já prevê o mecanismo da ação de inconstitucionalidade por omissão e de mandado de injunção, ao lado de tantos outros mecanismos que foram penados, criados e implantados para dar força ao projeto constitucional de 1988, em alguns casos, ou modular esse ímpeto constitucional, em outros casos, confirmando assim uma ambiguidade muito típica do velho e sempre novo conservadorismo jurídico e judicial brasileiro.

Ora, em que seriam essas preocupações e as soluções encontradas passíveis de crítica sincera? Em que estariam distanciadas de preocupações e soluções levadas a cabo em inúmeros outros países?

É bom lembrar que esse processo reformador, iniciado há mais de quatro anos, no México, tem índole, estrutura e contexto democráticos, e nada tem a ver, nem sequer po se comparado – como alguns críticos de má-fé têm feito –, com a tentativa de golpe jurídico-político levado a cabo pelo governo ilegítimo e despótico-militar implementado em Israel por seu primeiro-ministro.

5.

O objeto das críticas à Reforma, contudo, está em seu ponto mais relevante e inovador, que é o de dar eficácia, na escolha de juízes e juízas, ao princípio democrático: a partir de 2025, serão feitas eleições para tais cargos, com o estabelecimento de mandatos para a magistratura federal (mais de mil e quinhentos cargos, incluindo os de ministros e ministras da Suprema Corte), sendo estabelecido prazo para a adequação das Justiças dos Estados, após o que serão realizadas eleições, igualmente, para mais de cinco mil cargos de juízes e juízas estaduais.

As críticas falam de inutilidade das eleições, que não trariam segurança, po si sós, de mudança de perfil da magistratura, isto é, de que juízes e juízas eleitos seriam diferentes, em sua formação ou conduta, ou teriam uma cultura diversa dos que já ocupam essas funções; de possibilidade de influência política na justiça, de cartéis e do crime organizado, nas escolhas, significando, afinal, sérios riscos à independência do judiciário. A Reforma, porém, traz critérios para que as pessoas possam se apresentar à eleição, relativos a formação jurídica, tempo de exercício ou de experiência na atividade jurídica, bem como vedação de candidaturas dos que já exerçam função pública.

Claro está que há necessidade de tomada de cautelas para que o processo eleitoral seja legítimo, isto é, que efetivamente reflita a conformação do vínculo que deve haver entre eleitorado e candidatos, entre cidadania e representação. Nisso se inclui o indeferimento de candidaturas que se mostrem, mediante análise cuidadosa, ligadas a cartéis e a organizações criminosas. São, aliás, questões e medidas importantes em qualquer processo eleitoral, tendo em vista a importância crucial desse vínculo de legitimidade da representação.

Não se pode, contudo, dizer que todo o processo eleitoral estará maculado, tendo em vista a simples possibilidade de manipulação ilegal. Se essa ficar evidenciada, há mecanismos para anular a escolha daquelas pessoas que se apresentaram para desvirtuar a relação de representação legítima, ou, preventivamente, indeferir a participação dessas pessoas. Também podem ser postos em ação mecanismos para preservar essa legitimidade da atuação de grupos antidemocráticos e antijurídicos em determinadas regiões de influência nefasta de organizações criminosas. Cogitar de antemão de ilegitimidade de qualquer processo eleitoral seria, nesse caso, como em qualquer outro, advogar contra as eleições e contra a própria ideia de uma democracia representativa, ou seja, estabelecer uma postura antijurídico-política, anticonstitucional.

Além disso, a ampliação da capacidade de se apresentar para o exercício da judicatura, a se candidatar à eleição popular, já indica uma mudança cultural, abrindo-se o acesso a pessoas que não teriam como chegar a exercer tal função, porque alheias ao tradicional jogo oligárquico ou ao clube elitista de indicação de juízes e juízas, inclusive da Suprema Corte – um dos motivos da Reforma é a presença de nepotismo, amiguismo e mesmo corrupção na designação de juízes e juízas, isto é, na ausiencia de critérios legítimos. Vai-se de uma situação, como a atual, em que há imprecisão de critérios de escolha, para outra em que os critérios são fixados na Constituição e na lei e se subordinam ao princípio democrático.

Estabelecido o mandato, um tempo certo de exercício da função, evita-se, ainda, que julgadores e julgadoras se perpetuem no poder, por um lado, ou sejam afastados do exercício da função ao bel prazer dos que, com exclusividade e sem legitimidade constitucional, têm tido nas mãos o controle do acesso à magistratura. Trata-se de mudança cultural bastante relevante.

Mais importante é, não apenas por fazer cumprir o princípio democrático constitucional – o poder pertence ao povo, que tem o direito e o dever de escolher seus representantes, por meio de eleições periódicas -, mas por despertar a noção de que o exercício de qualquer função pública, sobretudo as que se estabelecem como de titularidade dos poderes constitucionais, depende de legitimidade da escolha popular. Empoderamento do povo, constituinte e eleitor, por um lado, e geração de noção de dever e responsabilidade, por outro, de eleitos e constituídos, de honrar a representação. Essa representação efetiva-se, no caso da eleição de juízes e juízas, pela plena consciência de que sua função é fazer interpretar e aplicar normas constitucionais, internacionais e infraconstitucionais escolhidas pelo povo, por meio de representantes escolhidos para o exercício de outras funções, especificamente as atinentes ao processo legislativo e de constituição de vigência das normas internacionais.[xvi] É interessante que isso concretiza de maneira mais fiel o princípio da separação de poderes – que os críticos, sem qualquer justificativa plausível, afirmam estar sendo violado.

Nesse aspecto, é um equívoco invocar-se a chamada independência judicial contra o princípio democrático, um sinal de elitismo e de concepção oligárquica de agentes e titulares de um poder que deveria estar posto e disposto para servir ao que o povo constituinte decidiu. Da mesma forma, como já fiz criticar,[xvii] o invocar-se um pretenso “poder contramajoritário” (sic) do Judiciário, a rigor inexistente e anticonstitucional. Quando o poder judicial decide pela efetividade de direitos humanos não decide contra a maioria, mas a favor dela, uma vez que foi o povo que decidiu pelo rol de direitos presentes na Constituição e pela adoção de Tratados internacionais relativos a tal matéria.

6.

Não posso deixar de referir, como conclusão à breve análise que empreendi, que, muito embora ousada e coerente a Reforma, foi tímida precisamente em seu cerne, no aspecto fundamental da efetivação do princípio democrático.

Ao pensar tão-somente no princípio da representação, olvidou-se que a justiça mexicana – assim como em muitos Países latino-americanos, inclusive o Brasil, carece sobretudo de atenção ao princípio da participação.

Sobre o significado da participação e sobre um projeto mais integral de democratização da justiça remeto a leitora e o leitor a outro texto, de publicação recente.[xviii]

Aqui, gostaria apenas de deixar claro que a busca de estabelecer laços mais concretos entre a cidadania e o poder de julgar é sempre salutar, porque dota o povo da capacidade de decidir seu destino, tomando em suas mãos instrumentos e técnicas de resolver conflitos e de lidar com a interpretação e a aplicação das leis e textos internacionais que escolhe – por meios indiretos, na maior parte, até aqui – para servirem como meio em que se desenvolve a vida comum, o espaço-tempo da política e do direito.

No caso dos povos dos vários Continentes, claro, mas, para o nosso caso latino-americano, permite que se entre em contato com modos culturais diversos de realizar a justiça, a partir de práticas e doutrinas de origem africana e indígena. É a razão pela qual iniciei o presente texto com a discussão do destino de nossos povos, o destino de nós mesmos, que temos como componente fundamental de nosso espaço-tempo comum a alteridade – e não a identidade.

Essa alteridade determina um respeito e uma perquirição constantes para saber o que significa e quais são as mensagens que nos passa o povo, constantemente, isto é, aquilo que comunicamos a nós mesmos, no dia a dia difícil de um regime altamente opressor, que busca pôr na invisibilidade exatamente essa contribuição original e rica popular. Essa mensagem passa por uma linguagem mais arguta do que aquela que nos quer impor um regime repressivo, posto pela forma Estado. Por ser mais inteligente, diante das dificuldades de expressão populares, determinadas pela oposição da força das várias formas de dominação, essa linguagem é lúdica, poética, mais bela, apesar de carregar tanta dor.

Democratizar a justiça é abrir espaço para as formas da justiça que encaminham a uma sociedade mais justa: “o samba ainda vai nascer/ o samba ainda não chegou/ o samba não vai morrer/ veja, o dia ainda não raiou/ o samba é o pai do prazer/ o samba é o filho da dor/ o grande poder transformador”.

Transformemos nossa justiça, nós, aqui, agora, juntos, também.

Alfredo Attié é desembargador na Justiça paulista. Autor, entre outros livros, de Direito constitucional e direitos constitucionais comparados (Tirant Brasil). [https://amzn.to/4bisQTW]

Notas


[i] Veja-se, à guisa de exemplo, o que disseram o embaixador Rubens Barbosa, no artigo que publicou no jornal O Estado de S. Paulo, disponível em https://www.estadao.com.br/opiniao/rubens-barbosa/reforma-do-judiciario-no-mexico/, bem como o desembargador Vladimir Passos de Freitas, no texto publicado no periódico virtual jurídico Conjur, disponível em https://www.conjur.com.br/2024-set-15/reforma-judicial-no-mexico-e-riscos-no-brasil/. A grande imprensa corporativa brasileira tem sido francamente contrária à Reforma Judicial dos Estados Unidos Mexicanos, falando, do mesmo modo tratado nos artigos aqui referidos, em “riscos para o Brasil”, “fim da separação de poderes”, “passo para uma ditadura”, “captura da justiça pelo crime organizado,” entre outras fórmulas preconceituosas, destituídas de informação, justificação e fundamentação. Essa mídia prossegue, ainda, refratária ao debate público, que poderia muito enriquecer o patrimônio de seus comentaristas de sempre, além de ajuda-la a prestar o serviço e a realizar a função inerentes à constituição de uma imprensa verdadeiramente digna desse nome.

[ii] ATTIÉ, Alfredo. “Prefácioin DeSousa Fº, Alípio. O menosprezo ao Brasil Mestiço e Popular. Santos: Intermeios, 2024, p. 7-14.

[iii] ATTIÉ, Alfredo. “Anticonstitucionalidade e Antipolíticain Democracia e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Instituto Novos Paradigmas, nº 7 (Agosto, 2021), disponível em https://direitosfundamentais.org.br/anticonstitucionalidade-e-antipolitica/.

[iv] ATTIÉ, Alfredo. “Prefácio: Sentimento da História e da Justiça no Horizonte do Brasilin SCWARTZ, Rosana M.P.B et al. 22 e seus Desdobramentos Territoriais. São Paulo: Editora LiberArs, 2022, p. 11-22.

[v] O atual Presidente do Supremo Tribunal Federal brasileiro, em seu heterônomo constitucionalista, tem feito sintomático embaralhamento – equivocado dos pontos de vista lógico e diacrônico – de conceitos. Pensa estar diante de dois modelos, um norte-americano e outro europeu, postos pretensamente lado a lado, como que a fazer deles duas opções à escolha livre de um imaginário constituinte. Desconsidera o fato de que o sistema europeu decorreu do norte-americano, mas que se atualizou, no desenho e realização de cortes constitucionais mais adequadas ao empreendimento constitucional contemporâneo. Em relação a essa e a outras concepções do ministro e professor Luís Roberto Barroso realizei críticas no livro ATTIÉ, Alfredo. Brasil em Tempo Acelerado: Direito e Política. São Paulo: Tirant, 2021.

[vi] ATTIÉ, Alfredo. Brasil em Tempo Acelerado: Direito e Política. São Paulo: Tirant, 2021.

[vii] ATTIÉ, Alfredo. Brasil em Tempo Acelerado: Direito e Política. São Paulo: Tirant, 2021.

[viii] O modelo mexicano segue muitos dos valores, princípios, temas e propostas que engendrei, no final da década de 1980 e no início da década seguinte, para uma justiça participativa. Consultem-se os artigos ATTIÉ, Alfredo. “Justiça para as Cidades” in A Terra é Redonda, 28 de junho de 2024, disponível em https://aterraeredonda.com.br/justica-para-as-cidades/; e ATTIÉ, Alfredo. “Eleições em São Paulo: uma Contribuição ao Debatein Brasil 247, 13 de agosto de 2024, disponível em https://www.brasil247.com/blog/eleicoes-em-sao-paulo-uma-contribuicao-ao-debate.

[ix] Sobre o que seja autêntico, veja-se ATTIÉ, Alfredo. “Anticonstitucionalidade e Antipolíticain Democracia e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Instituto Novos Paradigmas, nº 7 (Agosto, 2021), disponível em https://direitosfundamentais.org.br/anticonstitucionalidade-e-antipolitica/; sobre a necessidade de atenção a concepções constitucionais diferentes das ate aqui hegemônicas, veja-se ATTIÉ, Alfredo. Direito Constitucional e Direitos Constitucionais Comparados. São Paulo: Tirant, 2023, e ATTIÉ, Alfredo. Constituições Africanas. São Paulo: Tirant, 2024, no prelo.

[x] ATTIÉ, Alfredo. Direito Constitucional e Direitos Constitucionais Comparados. São Paulo: Tirant, 2023

[xi] ATTIÉ, Alfredo. A Reconstrução do Direito: Existência, Liberdade, Diversidade. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2003; ATTIÉ, Alfredo. Sobre a Alteridade: para uma Crítica da Antropologia do Direito. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1987; ATTIÉ, Alfredo. Direito Constitucional e Direitos Constitucionais Comparados. São Paulo: Tirant, 2023.

[xii] Consulte-se ATTIÉ, Alfredo. Direito e Economia: Ponto e Contraponto Civilizatórios. São Paulo: Tirant, 2024, no prelo. Sobre essa assimilação do estrangeiro ao periférico como fundante da concepção de cidadania moderna, veja-se ATTIÉ, Alfredo. Direito Constitucional e Direitos Constitucionais Comparados. São Paulo: Tirant, 2023.

[xiii] E ilusão, julgamento e representação. Confira-se em [xiii] ATTIÉ, Alfredo. A Reconstrução do Direito: Existência, Liberdade, Diversidade. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2003; ATTIÉ, Alfredo. Sobre a Alteridade: para uma Crítica da Antropologia do Direito. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1987

[xiv] Quando disse, portanto, que o judiciário é permeável à influência internacional, não quis estabelecer uma valoração apriorística apenas negativa. Uma das funções do poder judicial é realizar essa ligação, do ponto de vista positivo, com a ordem internacional dos direitos humanos. Veja-se ATTIÉ, Alfredo. “Poder da Ausênciain ARAGÃO, Eugênio et al. Vontade Popular e Democracia. Bauru: Canal 6, 2018, p. 35-44; ATTIÉ Jr, Alfredo. “A magistraturain LEMOS Fº, Arnaldo et al. Sociologia Geral e do Direito. Campinas: Alínea Editora, 6ª. Edição, 2014, p. 412-432.

[xv] Inaugurou-se essa discussão, em sessão solene no Senado, em outubro de 2019.

[xvi] ATTIÉ, Alfredo. “Poder da Ausênciain ARAGÃO, Eugênio et al. Vontade Popular e Democracia. Bauru: Canal 6, 2018, p. 35-44; ATTIÉ Jr, Alfredo. “A magistraturain LEMOS Fº, Arnaldo et al. Sociologia Geral e do Direito. Campinas: Alínea Editora, 6ª. Edição, 2014, p. 412-432; ATTIÉ, Alfredo. “Montesquieu: Políticas da P:aixão ou o Legado do Barãoin LYRA, Rubens P. (org.) Teoria Política dos Clássicos à Contemporaneidade. João Pessoa: Editora do CCTA Universidade Federal da Paraíba, 2022, p. 137-165.

[xvii] ATTIÉ, Alfredo. Brasil em Tempo Acelerado: Política e Direito. São Paulo: Tirant, 2021.

[xviii] ATTIÉ, Alfredo “Justiça para as Cidadesin A Terra É Redonda, 28 de junho de 2024, acessível em https://aterraeredonda.com.br/justica-para-as-cidades/; ATTIÉ, Alfredo. “Justiça Forr:ó” um Projeto Democrático para a Justiça Cidadãin Democracia e Direitos Fundamentais, 10 de maio de 2024, acessível em https://direitosfundamentais.org.br/justica-forro/; ATTÉ, Alfredo. “Justiça para as Cidadesin Brasil 247, em 28 de junho de 2024, acessível em https://www.brasil247.com/blog/justica-para-as-cidades.


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