Por Jean-Pierre Chauvin*
Um convite à leitura da obra de Paulo Freire.
Vila de Piratininga, 17 de dezembro de 2019 da Era Cristã
Excelente (E)Leitora;
Valioso (E)Leitor,
Espero que esta missiva os encontre bem; embora guarde, cá, alguma dúvida, face à situação em que infravivemos, há coisa de cinco, seis anos. Por aqui, metrópole tecnocrática, bruta e abandonada, o clima (refiro-me ao atmosférico) anda mais coerente que os paulistanos – que pedem rodízio de poder, elegendo sempre os mesmos – os dias amanhecem quentes, mas alguma água costuma vir ao final da tarde. Nas ocasiões em que há jogo de futebol (o único esporte comentado com falsa profundidade), toda a libido represada e a rala possibilidade de contestação é convertida em fogos de artifício, tiros e gritos de gente que ficaria bem num hospício.
Suspeito que Vossas Mercês, gente instruída, honesta e de bem, estejam a acompanhar (e, porventura disseminar) os desditos diários do atual staff que invadiu a neocolônia, que leva o nome do pau de onde se tirava tinta cor de brasa, no século XVI.
Bem, se esta hipótese estiver correta, imagino que vejam o sociólogo e educador Paulo Freire com desconfiança, embora não saibam bem quem ele foi e provavelmente não tenham lido com atenção o monte de livros que deixou.
Data venia, queria lhes apresentar outra perspectiva: a de um leitor e educador que durante seis anos atuou voluntariamente em uma ONG, entre a região do Jabaquara e Aeroporto.
Funcionava mais ou menos assim: afora a contribuição com uma ou duas noites por semana na entidade, durante mais de um ano meus colegas e eu frequentamos os encontros (também semanais) do curso de formação Mova – incentivado financeiramente pela Prefeitura de São Paulo, que também cedia educadores experientes que compartilhavam conosco os conceitos e práticas desenvolvidas por Freire.
Se me permitem resumir o objetivo do curso, éramos estimulados a refletir sobre a prática educativa, levando em conta a condição socioeconômica e cultural dos educandos, com vistas a aprimorar continuamente nosso exercício em salas de alfabetização e/ou suplência.
Muitas vezes escutamos barbaridades em torno de Paulo Freire, quase sempre proferidas por quem julga conhecer as suas ideias e seu trabalho, ainda que de orelhada – algo bastante comum, num país em que a maior parte de seus cidadãos é de Pê-Jotas e empreendedores (a despeito de não haver capital, nem mercado consumidor).
Provavelmente foi essa ignorância sobre aquilo que ele escreveu e fez que irritou muita gente boa, especialmente os seres que se cansaram de testemunhar alguns avanços nas políticas voltadas para a promoção social.
A questão da terra, ou se preferirem, a questão do espaço, é tão grave neste país rifado aos Estados Unidos, quanto o desprezo pelo tempo e as disciplinas que tratam dele, como a História e a Literatura.
Mas, voltemos ao método freiriano, assunto dessa carta aberta. O (e)leitor, a (e)leitora, por acaso, terá lido Pedagogia do oprimido (Paz e Terra), editado em 1968 (e traduzido para o inglês, dois anos depois)? Creiam-me, não estou a tripudiar; mas, sabem o que é mais divertido? Constatar a persistência energúmena de cidadãos, tão zelosos de seus interesses e moral de araque, a compartilhar a falácia de que Paulo Freire era um doutrinador.
Digo isso porque, neste livro em particular, o educador defendia justamente o contrário: o professor não tinha por função doutrinar, mas estimular a liberdade, o espírito autônomo de seus educandos. Desde quando a liberdade passou a ser classificada como ideologia de esquerda?
Se Vossas Excelências, que falam como gente íntegra, imparcial e correta, nutrem alguma prevenção contra autores, filmes e compositores nacionais, embora desfilem com camisetas baratinhas da CBF, posso recomendar outro nome: o do francês Jacques Rancière, autor de um livro notável chamado O mestre ignorante (Autêntica),
Adivinhem, por favor, o que ele defende no continente de lá? O mesmo que Paulo Freire, com décadas de diferença. Para o filósofo de lá, o educador (ou professor, ou mestre, como ele o nomeia) teria como principal tarefa não a de instruir os seus educandos (ou alunos, ou discípulos, ou pupilos), mas de emancipá-los.
Qual o método mais coerente a ser adotado pelo mestre, nesse caso? Agir de acordo com o que diz. E isso, felizmente, também foi dito e demonstrado por Paulo Freire.
Bem sabemos que, em nosso país, parte dele orgulhosa refém dos Estados Unidos, e de quem mais botar dinheiro neste leilão a céu aberto (cercado por minas, madeireiras e templos que abençoam vassouras), a Educação, a Saúde e a Democracia valem muito menos que as fake news e o discurso moralista vociferado pelos sujeitos mais excludentes e egoístas; mais pervertidos e muito menos exemplares. Que o digam as centenas de casos diários de pedofilia, espancamento de mulheres, homossexuais, transsexuais, negros e índios.
Talvez isso explique o ódio gratuito, retroalimentado pelo discurso leviano do staff federal, a desinformação intencional e a rigorosa falácia dos embrutecidos. Mas, tudo bem. Não se pode exigir coerência de quem elegeu um ideólogo como bastião cultural. O que esperar de um postador de vídeos, alçado a mestre de sujeitos que disfarçam sua estatura (abaixo da mediocridade) com a arrogância de pseudofilosofias que estimulam a empreender com dignidade, ainda que cercados por misérias: social, emocional, cultural, mental, política etc., etc., etc.
Vossas Excelências me desculpem por insistir no lema da coerência. Mas, convenhamos: como pode faltar respeito ao professor que enfrenta dura realidade, dentro e fora das escolas e universidades onde atua, e sobrar reverência a um sujeito instalado com dinheiro público, a milhas de distância de nossa realidade, que não é pedagogo, que finge (re)pensar o mundo a partir do senso comum, e cujos “ensinamentos” são acompanhados de palavras de baixo calão, incitação a variadas formas de violência e ao entreguismo barato do país?
Haveria tanto a lhes dizer, mas não sou capaz de sintetizar em uma ou duas linhas o que representou, em minha carreira como aluno/educando; educador/professor e pesquisador, a convivência entre alunos de 15 comunidades carentes, atendidas pelo CIPS (a ONG a que me referi), ao longo de seis anos.
Talvez pudesse mencionar o emprego da letra bastão; explicar o recurso à leitura compartilhada com os educandos; traduzir o que se entende por tema gerador; ou, ainda, apresentar a palavra-chave ensinada por Paulo Freire, que consiste na “leitura de mundo” – conceito esmiuçado, por exemplo, num livro menos extenso que Pedagogia do oprimido,intitulado A importância do ato de ler em três artigos que se completam (Cortez), publicado em 1981.
Vossas Mercês vão me perdoar, ainda uma vez, pelo convite à leitura de Paulo Freire. É que ando cansado de lidar com a cobrança que muitos dentre os seus fazem sobre a necessidade de diálogo, tarefa supostamente imposta às gentes de esquerda. Ora, ora: não é do nosso lado que falta leitura e se amplia, dia e noite, a louvação do três oitão e a incapacidade para o diálogo.
Sinceramente, etc.
*Jean Pierre Chauvin é professor na Escola de Comunicação e Artes da USP