Muito além da forma pura

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Por LUIZ RENATO MARTINS*

Posfácio do livro de Neil Davidson, Desenvolvimento Desigual e Combinado: Modernidade, Modernismo e Revolução Permanente.

Perguntas e respostas

Pode um país depauperado, dependente e fraturado repensar sua própria condição? Como reverter em perspectiva crítica a trôpega e truncada acumulação material, mental e reflexiva, vale dizer, a desvantagem histórica do atraso? Como extrair alguma força da situação de inferioridade para reverter a subordinação endêmica? Será que tais questões podem ser postas apenas a partir de um ponto de vista interno ou – por implicarem correlações internacionais – requerem sínteses que abranjam perspectiva externa e totalização sistêmica?

Sabe-se que perguntas, respostas e variantes desse naipe já pertencem à tradição brasileira. Pode, porém, a teoria crítica do desenvolvimento desigual e combinado renová-las? Qual é o aporte de Desenvolvimento Desigual e Combinado: Modernidade, Modernismo e Revolução Permanente (São Paulo, Editora Unifesp/ Ideias Baratas, 2020) de Neil Davidson (1957-2020) a esse respeito? É o que este posfácio tratará de discutir, principalmente quanto ao anexo final do livro de Davidson, que vincula o modernismo ao desenvolvimento desigual e combinado.

Descolonizar

Rapidamente, para relembrar: na esteira das mudanças trazidas pela revolução de 1930[i], Gilberto Freyre, Caio Prado e Sérgio Buarque de Holanda se lançaram ao exame das sequelas da colonização, incluindo o trato social extraído da propriedade escravista-fundiária – fio condutor, na trama interna do despotismo local, da incivilidade que é a marca das classes proprietárias brasileiras. A seguir, por distintas vias, a pesquisa e o debate da formação foram conduzidos em diversas áreas e por várias gerações de pensadores e artistas, com o teor de um programa de estudos sobre a descolonização. O debate subsequente especificou traços e peculiaridades da história brasileira, discrepante dos padrões e parâmetros mentais emulados dos países adiantados.

A diretriz de articular criticamente a peculiaridade dos problemas brasileiros à dinâmica internacional já estava implicada no exame das sequelas da colonização. Porém, ela ganhou ênfase nova na expansão capitalista do pós-guerra, com a elaboração da categoria do subdesenvolvimento pela equipe de pesquisadores da Cepal, com decisiva participação brasileira[ii]. Seguiram-se novos debates em torno da noção de dependência, posta após o golpe civil-militar de 1964 num crescendo dramático de confrontos políticos e ideológicos[iii]. Para leitores que têm presente tal roteiro de ideias e discussões, o livro de Davidson falará de perto e imediatamente. Mas não só a esses.

Conexões

De fato, dentre os méritos do livro – cuja fluência evoca a situação de quem discorre e narra didática e politicamente, para esclarecer – está o de adotar termos correntes e fontes acessíveis. Logo, para quem se inicia na “selva escura” da pesquisa sistematizada, o livro também tem muito a dizer e a ensinar prontamente. A apresentação histórica por Davidson da lei do desenvolvimento desigual e combinado, bem como do seu debate recente, oferece uma via pedagógica para o iniciante refletir organizada, histórica e dialeticamente acerca das tentativas – sucessivas e malogradas – de modernização não só do Brasil, como também de outros países.

Com efeito, trocando em miúdos e discutindo comparativamente processos de modernização tardia e acelerada em diversos países – sem esquecer o caráter primordial e, portanto, de exceção da modernização inglesa, com seu ritmo precursor e singular –, Davidson estabelece uma plataforma concreta. Desde aí o leitor jovem poderá recompor – em perspectiva histórica – as linhas mestras e as problemáticas que permearam os diferentes ciclos dos debates sobre a modernização, entrecruzando e comparando os traços próprios do malogro brasileiro com os de outras modernizações. Por sinal, dado o foco do livro na atualidade, o núcleo mais recente do debate aberto pela formação – a crítica do “desmanche”[iv] ou do colapso da modernização e da dependência entronizada (anos Collor, FHC e seguintes) – também pode entrar na série histórica dos temas em revista, para pesquisa posterior pelo interessado.

Mas como – irromperá, surpreendido e com certa razão algum leitor que concluiu há pouco a leitura dos capítulos de Davidson e acha-se com este posfácio em mãos –, se o livro só menciona de passagem o manguebeat – e olhe lá? Certo, mas quem, como este colaborador editorial, subitamente toma contato com os comentários de Trotsky datados de 1912, citados por Davidson – tendo já lido e discutido muitas vezes em sala de aula os prefácios da primeira (1957) e da segunda edição (1962) de Formação da Literatura Brasileira, de Antonio Candido[v] –, não tem como deixar de reconhecer nos comentários de Candido a similitude de preocupações e a aparência de resposta direta às observações de Trotsky. Será mesmo?

Elos perdidos, elos achados

Como estabelecer a razão de tal convergência? O fato é que as peças se encaixam, a convergência avulta e convida a pensar. Impõe-se uma evidência: estamos diante de dois juízos históricos, apartados cronológica e geograficamente, mas possivelmente provocados por estruturas congêneres ou similares. Afinal, o que viram de modo coincidente Trotsky e Antonio Candido?

Nos idos de 1912, como correspondente de guerra, Trotsky cobriu a guerra dos Bálcãs para o jornal ucraniano Kievskaya Mysl. Para além da raiz empírica e das circunstâncias das anotações, traçou então um diagnóstico da dependência crônica das culturas periféricas. É de se calcular que tal comentário derive provavelmente do curso inconformado e impetuoso das reflexões do autor – desencadeadas após a derrota da revolução de 1905.

Com efeito, Trotsky traçou no ensaio Resultados e Perspectivas (1906)[vi], escrito na prisão, o primeiro esboço da noção do “desenvolvimento desigual e combinado” como modo sistêmico. Nele, esboçou também a noção correlata de “revolução permanente”, como teoria política crítica acerca da modernização das economias periféricas. Em sua análise do caso russo (como exemplo de valor abrangente), Trotsky contrapôs à debilidade crônica da burguesia subordinada, ou melhor, periférica e dependente, como dizemos – desprovida sempre, nota ele, de projeto político próprio –, a agilidade de conscientização da classe operária provocada pela dinâmica da modernização acelerada, ou seja, pelo processo de desenvolvimento desigual e combinado. Este, nos países periféricos e dependentes, queima ou pula etapas do desenvolvimento linear da cadeia produtiva, combinando-as, por sua vez, a modos e relações precedentes que remanescem. O choque de tempos e modos na mente operária, segundo Trotsky, fomenta a crítica ao capitalismo em ritmo distinto do verificado nas classes operárias antigas (leia-se inglesa).

Modo búlgaro de recepção: literatura emprestada

Em 1912, nos Bálcãs, Trotsky, ao descrever um sintoma crucial da dependência cultural – traço que interessa diretamente ao debate brasileiro –, anotou: “Como todos os países atrasados, a Bulgária é incapaz de criar novas formas culturais e políticas por meio do conflito livre de suas próprias forças internas: é obrigada a assimilar os produtos culturais já prontos que a civilização europeia desenvolveu no curso de sua história”. E prossegue adiante: “A literatura búlgara carece de tradição e foi incapaz de desenvolver sua própria continuidade interna. Teve, assim, que subordinar seu conteúdo não elaborado a formas modernas e contemporâneas criadas sob um zênite cultural muito diferente”[vii].

Vou poupar o leitor de um par de citações comparativas, com as respectivas notas, pois as ideias de Candido sintetizadas nos prefácios referidos já são bem conhecidas do leitor calejado. Já ao leitor a que me dirijo especialmente, não familiarizado com as teses do “clássico” de Candido, acerca da formação do sistema literário brasileiro, deixo a sugestão: vá direto ao imenso volume da Formação da Literatura Brasileira. Lá encontrará com facilidade, nos dois prefácios do autor e no movimento geral do livro, o paralelismo – com hiato de trinta para quarenta anos – dos diagnósticos de Trotsky e Candido da dependência cultural, incluindo a modernização sob influxos externos.

A formação: uma saga periférica

Concordância tardia à vista, o cotejo não deslustra o lado brasileiro, embora deixe patente o nosso atraso em despertar para a problemática – decerto por conta da ausência no Brasil de um ciclo de modernização oitocentista e de uma classe operária equiparável à russa em termos de organização. Já por outro ângulo, nem de longe a comparação é desfavorável ao crítico brasileiro no campo alegado por Trotsky – o da falta de continuidade interna da literatura búlgara – como prova de atraso.

Pois, de fato, partindo de constatação similar acerca da descontinuidade inerente às literaturas periféricas como sintoma de dependência, Candido chega à demonstração concreta de uma resposta histórica em contrário – e a examina detidamente. Na suma escrita de 1945 a 1957, estabelece ineditamente uma saga periférica: a da formação – não dada, mas progressivamente construída – de uma literatura jovem e arduamente armada sob influxos externos, num país periférico e dependente.

Nesse sentido, o esforço efetivamente acumulado, geração após geração, veio a erguer no Brasil um sistema literário do qual, segundo a indicação de Candido, a prova maior terá sido a obra madura de Machado de Assis[viii]. Ela exerceu a função de um fecho de abóbada, sintetizando as obras dos predecessores de modo a estabelecer a literatura propriamente como sistema ou nexo entre trabalhos que se implicam reciprocamente, perfazendo ao longo de um processo histórico uma reunião de obras dotada de uma causalidade interna sistêmica.

Assalto ao céu

Voltemos ao lado russo do paralelo. Como narra Davidson, Trotsky volveu dez anos depois, em 1922, à questão do contraste histórico-cultural entre “países adiantados” e “atrasados”, como dizia ele então. Dessa vez, contudo, em outro ângulo da abordagem e com prognóstico mais favorável. Deviam-se ambos, ângulo e prognóstico, provavelmente ao curso mais avançado, mesmo que ainda em processo, das reflexões de Trotsky sobre o desenvolvimento desigual e combinado e, em 1922, é claro, também às novas perspectivas abertas pela Revolução de Outubro, à primeira vista consolidada sob forma estatal após a vitória de 1921 na guerra civil contra os brancos.

Desse modo, a constatação de que era possível em certos casos aos “países atrasados” (leia-se Rússia) pular etapas, levou Trotsky a uma distinção crucial. A distinção, mesmo sem desenvolvimento ou prova, consta como um dos argumentos iniciais do ensaio intitulado “O Futurismo”, firmado em 8 de setembro de 1922. Prova de relevância: o ensaio foi incluído e referido com destaque nas introduções de Literatura e Revolução, tanto a de setembro de 1923 como a da segunda edição de julho de 1924.

Assim, Trotsky afirmou, no segundo trecho alegado por Davidson no Anexo final: “[…] observamos um fenômeno repetido mais de uma vez na história; os países atrasados, mas com um certo nível de desenvolvimento cultural, refletem com maior claridade e força em suas ideologias as conquistas dos países adiantados. Assim, o pensamento alemão dos séculos XVIII e XIX refletiu as conquistas econômicas dos ingleses e as conquistas políticas dos franceses. Desse modo, o futurismo alcançou sua mais clara expressão não nos Estados Unidos ou na Alemanha, mas na Itália e na Rússia”.[ix]

Um salto crítico-reflexivo das culturas periféricas vem aí claramente assinalado. Contudo, como havia feito antes quanto à determinação da descontinuidade cultural interna dos países “atrasados”, Trotsky também não desdobrou a observação inicial, neste caso, a de que a síntese das formas avançadas apropriadas aos “países adiantados” pelos “países atrasados” tendia a trazer reflexões com “maior claridade e força” acerca das matérias em questão do que, segundo ele, no estado original.

Porém, mesmo abrupto – como cotejo feito a jato –, o paralelo proposto e a afirmação do salto crítico periférico encerram aspectos do maior interesse: um deles, só implícito mas crucial, diz respeito às razões, às condições e ao modo pelos quais a síntese elaborada nos países “atrasados” alcançava resultados superiores. Como e por quê? Se Trotsky ficou devendo, de fato, um desenvolvimento efetivo do insight, não obstante, uma dedução por analogia (referida à teoria da “revolução permanente”) talvez seja provisoriamente possível, no mínimo para não travar outras comparações, como veremos adiante.

Porém, tratemos, em primeiro lugar, do que veio dito com todas as letras na comparação proposta por Trotsky. E que, outra vez, encaixa-se diretamente no debate brasileiro como um elo histórico perdido: o juízo enfático, em chave de constatação, sobre o poder de esclarecimento superior das sínteses periféricas contrapostas àsconquistas dos países adiantados”. Em que isso tem a ver conosco e com a ordem cultural posterior?

Sem lapidação

De fato, a observação de 1922, tal como a de 1912, foi deixada por Trotsky em estado bruto. Além disso, Davidson assinala que Trotsky não veio a relacionar “explicitamente o modernismo como movimento geral com o desenvolvimento desigual e combinado”[x]. Dando um passo adiante, Davidson fez desse ponto o mote do seu Anexo. Voltaremos a esse fio de discussão, mas por ora detenhamo-nos no encaixe do prognóstico de Trotsky com o debate brasileiro: outra vez a conexão dá o que pensar.

O pulo do gato periférico

Com efeito, a observação de 1912 restaria como mera opinião ou prognóstico avulso e disperso, não fosse o trabalho de Roberto Schwarz de análise da obra de Machado de Assis. Decerto, sabe-se que Schwarz segue indicação lançada por Candido, acerca da consecução sintética por Machado da “continuidade interna” construída cumulativamente. Teve a observação de Trotsky de 1922 algo a ver com os rumos da pesquisa brasileira? Deixo de lado o dilema genealógico e a arbitragem das influências. Do ponto de vista histórico maior e do exame das formações sociais, vale mais estabelecer a similitude estrutural das questões objetivas implicadas – assim como focar na razão do curso paralelo das reflexões num caso e noutro –, do que situar o regime das influências de um autor sobre outro[xi].

Sob vários aspectos, o que é notável e intrigante à luz da questão aberta pelo livro de Davidson – na qualidade de síntese histórica e globalmente panorâmica do processo sistêmico de desenvolvimento desigual e combinado – é que foi só por meio da análise intensiva da forma estética tardia da obra de Machado, por Schwarz, que tanto a observação de 1922 de Trotsky como a indicação de 1957 de Candido ganharam comprovação e efetividade[xii].

Para resumir, as análises de Schwarz detalham, na matéria estética e nas operações do romancista brasileiro, modos paradigmáticos de abordagem do influxo externo, isto é, de apropriação e deslocamento de formas narrativas elaboradas nos países “adiantados” e reutilizadas de modo inovador – principalmente por conta da ironia de Machado. Assim, formas são recortadas, dissecadas, transferidas e encaixadas cuidadosamente, segundo mostra o mapeamento do processo narrativo de Machado feito por Schwarz. Tais operações, em síntese, de apropriação e deslocamento, servem para desvendar fatores e modo dos desajustes periféricos ante a ordem produtiva hegemônica – vale dizer, pontuam contrastes referentes à organização do trabalho e da acumulação – e aos padrões e valores civilizacionais dos “países adiantados”.

O resultado obtido pelos romances de Machado tem efeito de esclarecimento crítico em grau sistêmico, como demonstra Schwarz: revela deslocamentos e ingredientes subterrâneos e complementares do modo produtivo vigente nos países centrais, constituindo uma visão do todo – que inclui a reprodução do escravismo e outros traços de barbárie –, e vira pelo avesso aquele avistado mediante a ótica dos valores burgueses liberais. Um exemplo só, dentre inúmeros outros: a existência emblemática no Brasil oitocentista – insólita mas combinada sistemicamente – de um Império liberal-escravista, acrescido, como notaria o olhar clínico de Machado, do agravante do beija-mão à Casa de Habsburgo, algo bem diverso do que fizeram os mexicanos[xiii].

Machado apresenta inédita e concretamente o mal-estar histórico e a debilidade congênita de uma classe dominante subalterna e incapaz – como analisaria Trotsky no ensaio citado de 1906 – de construir um projeto político próprio, para não falar de uma nação. Nesse sentido, o teatro fictício do mando – um mero “fazer que manda” –, que encapsula a debilidade e a subserviência inerentes às classes dominantes periféricas, é representado e ao mesmo tempo desnudado pela corrosão da credibilidade da voz narrativa, meticulosamente posta para girar em falso por Machado, conforme a cartografia analítica desenhada por Schwarz.

Em suma, nos romances de Machado percorridos pela leitura de Schwarz, se desvendavam precursoramente, desde um ângulo em geral denegado – o da especificidade da perspectiva dependente e periférica –, as relações interativas de um modo de produção sistêmico. Resultava da articulação narrativa montada por Machado naquela altura uma síntese superior em termos de força e claridade, como Trotsky – sem se referir a Machado, mas a casos congêneres – posteriormente haveria de ressaltar agudamente, mesmo que de passagem. Por sua vez, no campo da filosofia política e da história a análise feita por Trotsky, desde 1906, da debilidade congênita da burguesia dependente teve sutileza e perspicácia de escritor e bem poderia beber fartamente de Machado, tivessem os livros deste desembarcado na Rússia como os romances em francês e inglês que Trotsky tanto apreciava[xiv].

Paralelismos objetivos

Para além do levantamento das coincidências ou tangências originárias com as notas de Trotsky, situam-se, de algum modo em paralelo a elas, os estudos tardios (se vistos desde o “ângulo russo”), mas incomparavelmente mais alentados e detalhados, de Candido e Schwarz acerca da matéria brasileira (estética e histórico-social) como questão dialética de dependência e formação, compreendendo pendências e impasses.

Nesse sentido, é possível deduzir que os quatro intérpretes considerados – a saber, Machado, Trotsky, Candido e Schwarz – examinaram estruturas histórico-sociais de teor objetivo análogo. Ou seja, indicativas do descompasso sistêmico e do processo dialético que envolve operações de imposição, e, doutro ângulo, de apropriação e deslocamento entre culturas periféricas e centrais[xv].

Eis, pois, compilado e elucidado um acervo objetivo de operações cognitivas e críticas, bem como um conjunto de conquistas estéticas consolidadas, envolvendo procedimentos próprios de uma literatura periférica dotada, no caso, de continuidade interna e projeto próprio – à diferença da vil heteronomia própria da burguesia caudatária.

Trocando em miúdos, para concluir o tópico, dada a natureza objetiva dos processos e a tensão imanente das estruturas histórico-sociais que desafiam as consciências a decifrá-las, é possível deduzir e distinguir que os quatro intérpretes, a despeito de separados cronológica e espacialmente, alcançaram resultados que apresentam paralelismo ou complementaridade. É claro que tal dedução só é possível segundo perspectiva dialética e histórico-materialista, dentro da qual o intérprete não labora absoluta e soberanamente no foro do seu logos, mas responde dialogicamente a desafios críticos objetivos, advindos com as formas histórico-sociais da matéria coletiva circundante.

Síntese provisória e mudança de ângulo

Resumindo, a lei do desenvolvimento desigual e combinado antecede e manifesta efeitos objetivos ainda quando não cogitada ou referida. Isso se dá tanto no plano da realidade econômica quanto no plano ideológico ou estritamente discursivo, quando a discussão dos traços que lhe são próprios polariza ou permeia os debates sobre a dependência, sem que o desenvolvimento desigual e combinado entre na pauta (Davidson, aliás, insiste nesse aspecto reiteradamente, citando inclusive autores bem conhecidos como Fredric Jameson e Perry Anderson, para ressaltar que os efeitos do processo são em geral notados, ainda quando se desconheça a lei que os rege).

Como se sabe, a formulação original da lei por Trotsky obteve desenvolvimento explícito só no âmbito da filosofia política, mediante a doutrina ou teoria da “revolução permanente”[xvi]. Esta, recordemos, enfatiza a função e o valor decisivo do protagonismo político da classe operária nos “países atrasados” para a superação das petrificações seculares. Explicou-se assim o fenômeno da Revolução de Outubro (num “país atrasado”), rompendo linearidades atribuídas a Marx[xvii].

Já as observações instigantes acerca da dependência cultural, à luz do processo histórico russo e no bojo das reflexões sobre o desenvolvimento desigual e combinado, restaram meramente em estado bruto. De todo modo, o livro de Davidson enfoca ambos os aspectos e fornece ao leitor brasileiro – caso este estenda sua leitura por conta própria nos termos aqui propostos – uma perspectiva para situar o alcance e o valor estratégico do debate brasileiro sobre a formação, principalmente nos campos da literatura e da reflexão estética.

Arqueologia

Como vimos, a compilação de tais “elos perdidos” aparentemente se ajusta à perfeição ao debate brasileiro e perfaz um novo todo, ora visível graças às portas abertas por Davidson. Nesse sentido, avançando pela senda da articulação do debate brasileiro sobre a formação, com os diagnósticos de Trotsky acerca da dependência cultural, deixemos para trás a questão da origem e do desenvolvimento da reflexão local sobre as peculiaridades da defasagem brasileira ante as economias e as culturas ditas avançadas – a fim de considerar, de outro ângulo, o novo corpo crítico-reflexivo, recém-admitido como um todo dialético.

Entretanto, segundo uma perspectiva mundial ou sistêmica, capaz de abranger reflexivamente o sistema capitalista em conjunto, as observações de passagem feitas por Trotsky sobre a dialética cultural entre periferia e centro – embora com a fragilidade de embriões – inoculam tensões no conjunto de categorias e questões do debate brasileiro. Do novo ângulo, propiciado pela junção dos materiais russos aos brasileiros, nota-se que os dados trazidos pelo livro de Davidson, para além de anteciparem e se encaixarem de pronto a certas formas do debate brasileiro, trazem consigo, no fim das contas, também o “teorema” do desenvolvimento desigual e combinado, cujas consequências críticas saltam à vista, interpelando o leitor.

Em suma, à luz de tal junção, volta como matéria de urgência crítica a questão do destino da formação brasileira em novos termos, a saber: uma vez aceita a razoabilidade dialética e histórica da lei do desenvolvimento desigual e combinado – hoje em moda nos debates do mundo anglo-saxão (possivelmente devido ao desafio chinês) –, como recusar o seu corolário político? Segundo ele, recorde-se, não haverá nos países periféricos reforma ou “revolução burguesa” – ou, por outra, modernização efetiva em toda a escala das formas –, sem o protagonismo político da classe trabalhadora liderando o processo, uma vez que a burguesia subalterna e dependente, atavicamente subordinada a capitais e poderes externos, não tem e não terá nem programa democrático nem projeto próprio.

“E agora, José?”

Enfim, semelhante acoplamento submete o léxico das ideias em circulação no Brasil a lapsos e tensões senão novos, há muito esquecidos. Testes se impõem. O contraste interno entre os materiais correntes no Brasil avistados à luz do desenvolvimento desigual e combinado requer revisão urgente do relegado ou arquivado debate brasileiro. Noutras palavras, impulsionado pela leitura do livro de Davidson, o leitor jovem tomará o primeiro contato com o debate brasileiro da formação, assim como o leitor calejado a ele retornará – mas ambos o farão com novos olhos, em função do cotejo com os materiais russos.

Mas, como pergunta a conhecida poesia de 1942 – “e agora…?” Tenha o leitor, mesmo aquele versado em poesia, a bondade de reler o poema em questão de Carlos Drummond de Andrade, que parece aprontado ipsis litteris para os dias atuais, da pós-debacle da “transição” e da political-science-fiction da dita democracia local[xviii].

Rangidos e sussurros

Como vimos, no âmbito da crítica da dependência cultural e da reflexão sobre a forma estética, os materiais brasileiros saem com viço e brio da prova posta pelos recém-incorporados materiais russos, retomados por Davidson. Com efeito, são os estudos de Candido e Schwarz que garantem a marca de descortino, longevidade e fecundidade das intuições de Trotsky, resgatadas por Davidson, as quais de meros prognósticos de passagem chegam a tomar o ar em ambiente brasileiro de proposições de estudo em germe, embora deixadas ao léu diante doutras sabidas urgências (que não vêm ao caso).

Inversamente, no plano das formas histórico-sociais elaboradas como constructos críticos para o exame das peculiaridades brasileiras, por sua vez, as checagens feitas desde a perspectiva internacional mostram resultados adversos para os consensos brasileiros correntes: falhas, fendas, rangidos e pontos cegos de várias ordens – aliás, alguns dos quais fenômenos apontados, no Brasil, pela própria literatura crítica recente do debate. Com efeito, principalmente desde a consolidação do ajuste neoliberal da economia brasileira, são inúmeros os textos do último ciclo – por exemplo, de Francisco de Oliveira, Roberto Schwarz, José Luiz Fiori, Otília e Paulo Arantes, para citar só os mais emblemáticos – que dissecam criticamente o fim do ciclo da formação e o colapso do projeto, várias vezes repaginado, da modernização brasileira. Em suma, a formação deu em desmanche, como está à vista. Logo, a revisão crítica dos termos originais e subsequentes desse debate põe um desafio incontornável para o debate brasileiro, sob pena deste virar avestruz.

Esfinge e avestruz: habitat e hábitos

Com efeito, os exames à luz da crítica do desenvolvimento desigual e combinado – sempre muito atenta à dinâmica própria de cada classe – logo distinguem ausências, afasias e obsessões mudas do avestruz. De fato, a intelectualidade radicalizada “de classe média” (a observação aguda é de Antonio Candido) priorizou notoriamente como objetos críticos, no plano das ciências econômicas e sociais, a análise dos unilateralismos do comércio internacional e dos fluxos financeiros; dos entraves internacionais à industrialização e à acumulação local de capitais[xix]; das inconsistências das instituições nacionais recém-formadas; e assim por diante. Em contrapartida, no âmbito da economia, da sociologia, da historiografia, entre outros campos, os debates sobre a formação, o subdesenvolvimento, a dependência etc. trouxeram menor grau de considerações sobre a alteridade operário-camponesa (salvo no caso da corrente crítica marxista que atuou no exílio, Marini e outros) e a opacidade da miséria; de modo análogo, pouco se ouviu das vozes do trabalho braçal, de éthos basicamente afro e feminino. Estas se manifestaram de modo marcante na MPB, mas raramente nos debates das ciências humanas.

Em suma, no âmbito da economia, das ciências sociais e políticas e, para resumir, dos parâmetros da interpretação histórica e crítica, tratou-se preferencialmente daquilo que concernia aos leitmotiven dos proprietários, entre médios e grandes. Já, em contrapartida, foi dada atenção rarefeita ou intermitente aos moldes de extorsão da força de trabalho no Brasil, sem falar no esquecimento da persistência dos vestígios do escravismo, ora reatualizado na “legalização” pelo Congresso das empresas “negreiras” do mercado de trabalho terceirizado e no trabalho informal – cujas cenas são perturbadoramente próximas das de Debret relativas à escravidão no Brasil pós Independência[xx]. Exceção – não isolada, mas emblemática na matéria –, foi o estudo de Jacob Gorender que deixou claro, de saída, o esforço de rumar na contracorrente[xxi].

Repensando o modernismo com Trotsky e Davidson

Deixando para trás a questão relativa aos impasses nacionais – enxertada como elo possível com o debate brasileiro –, voltemos ao ponto de partida para a tese do Anexo final de Davidson, isto é: ao comentário de Trotsky de 1922. Dele, Davidson recolheu a substância histórica viva da qual elaborou a tese da correlação entre o modernismo e o desenvolvimento desigual e combinado.

Acha-se na matéria viva do comentário de Trotsky um ponto obscuro, mas de interesse latente: a necessidade ou força histórica – pois é isso que Trotsky deixa subentendido – que leva a que as sínteses periféricas resultem, como diz, “com maior claridade e força”, frente às formas originais apropriadas aos “países adiantados”[xxii]. Posto como dado ou quadro inicial da questão, consta aí o descompasso entre países “adiantados” e “atrasados”. Mas além disso subjaz também, como ingrediente à primeira vista incógnito, a intuição muda do autor (posta a esta altura como enigma para o leitor), envolvendo a questão do modo de apropriação e deslocamento, segundo se deduz, das formas “avançadas”.

Se, ao evocar indiretamente a necessidade ou força histórica manifesta na formação das sínteses periféricas, que seriam potencialmente mais fortes, Trotsky não explicou o que tinha em mente, pode-se, entretanto, com a licença do leitor, ora suprir a explicação mediante um desenvolvimento paralelo do comentário via o exemplo de um vetor histórico congênere. Este, de fato, foi estudado por Trotsky, ainda que noutro âmbito. Salvo lapso, sigo os passos de Davidson, que completou Trotsky, com a tese do Anexo.

Desde logo, trata-se de avançar ou conceber uma hipótese de trabalho operatória, para fazer transparecer um nervo decisivo do comentário de Trotsky sobre o curso histórico das relações de dependência cultural.

Assim, ao esboçar o comentário acerca do descompasso cultural e de sua reelaboração num patamar superior mediante a apropriação de formas avançadas, Trotsky provavelmente tivesse em mente a tese histórico-política que já esboçara desde o ensaio de 1906, sobre o desenvolvimento desigual mas sistêmico e mundial do capitalismo, com impactos peculiares nas modernizações tardias da periferia.

Davidson volta a essa tese recorrentemente ao longo do livro. Recordemos, resumidamente: nas economias periféricas a contração do tempo histórico – ditada pela combinação de formas sociais arcaicas e tecnologia avançada trazida de fora para modernização da produção – torna propícia a tomada de consciência e a organização das classes trabalhadoras em escala mais rápida e aguda do que aquela verificada junto às frações mais antigas da classe operária, próprias às economias centrais. (Desnecessário detalhar, a propósito, os laços historicamente orgânicos do sindicalismo inglês com o gradualismo da doutrina fabianista desde o embrião do aparelho político do Labour Party).

Traduzindo e abreviando, como hipótese de trabalho, o esquema intuído por Trotsky, possivelmente com base em suas reflexões sobre a revolução permanente, poderia ser o seguinte: uma vanguarda cultural periférica à imagem da vanguarda política operária poderia operar sínteses ou transformações nas formas apropriadas às culturas avançadas, que reverteriam num choque as relações históricas de dependência. Que o digam Hegel e Marx, oriundos eles próprios de um tal processo – segundo se deduz da observação de Trotsky no ensaio de 1922 sobre o futurismo.

Necessidade histórica

Dois ingredientes embutidos no esquema e ainda não mencionados são decisivos para o entendimento do aproveitamento que Davidson deu à intuição subjacente ao comentário de Trotsky. O primeiro deles diz respeito ao teor do processo de reversão da dependência reflexiva, obtido pela transformação na periferia das formas apropriadas às “culturas adiantadas”.

Tal movimento teria, para Trotsky, o teor de uma necessidade ou força histórica. É o que poderá ser clarificado com uma comparação do comentário de Trotsky com outras assertivas e manobras, visando de certo modo objetivo análogo, qual seja, o de reversão das relações de dependência cultural; porém, no caso, segundo expedientes de exceção ou limitados a atos autorais.

Descolonização de exceção

No ensaio “O Escritor Argentino e a Tradição” (1953), Jorge Luis Borges afirmou: “Creio que os argentinos, os sul-americanos em geral, estamos em uma situação análoga [à de judeus e irlandeses]: podemos manejar todos os temas europeus, manejá-los sem superstições, com uma irreverência que pode ter, e já tem, consequências afortunadas”.[xxiii] Comentário sucinto sobre as mesmas matérias foi feito pelo crítico de cinema Paulo Emilio Sales Gomes, quando este se referiu à “nossa incapacidade criativa de copiar”[xxiv].

Depreende-se do cotejo do comentário de Trotsky com os dois juízos espirituosos de Borges e Paulo Emilio que os últimos buscam explicar ou garimpar a “vantagem comparativa” cultural sul-americana de olho na esfera individual do artista e mediante o curso de acontecimentos acidentais, consubstanciados, no caso de Borges, numa licença para a irreverência e, no caso de Paulo Emilio, em achados felizes no curso de imitações deficientes etc. Desse modo, para estes últimos seria a posição marginal do artista sul-americano ante o veio principal da tradição europeia a lhe outorgar liberdade e, de um modo ou de outro, originalidade ante a tradição maior.

Em síntese, nessa ordem de cogitação, predicados, atributos e qualidades distintivas da arte periférica, ou, para resumir, sua força de invenção, advêm feito acidente de percurso e fenômeno cultural de exceção. Decerto, a inferência pode soar sumária ante o pensamento de Paulo Emilio, pois ele apresentou colocações políticas muito mais abrangentes e articuladas, por exemplo, em “Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento”[xxv]. Não obstante, a posição do crítico brasileiro, embora mais ampla e complexa, não descarta, para o melhor e para o pior, o recurso a um quê de primitivismo e de menoridade subjacentes à boutade citada. (Já no melhor dos casos, compreende certamente a generosidade contagiante que os seus alunos conhecemos, e a empatia com o vigor da anarquia que lhe conferiu a condição de intérprete, por excelência, do cinema libertário de Jean Vigo[xxvi].)

Acidente ou tendência?

Em síntese, cotejado às duas colocações – referidas ora à esfera de ação autoral, ora a acidentes de percurso –, o comentário de Trotsky deixa entrever outro teor e fundamento: é explicitamente político e organicamente derivado de um processo histórico e coletivo. Dotado da envergadura de um juízo histórico, subsume episódios já verificados de reversão da dependência cultural (nomeadamente, o pensamento alemão dos séculos 18 e 19, e os futurismos italiano e russo) num processo maior, com o teor mencionado de força ou necessidade histórica.

Insisto, para precisar: para Trotsky, as sínteses elaboradas nos países periféricos, desde que postas com base em certa acumulação econômica e cultural e segundo perspectiva sistêmica e crítica, possivelmente de vanguarda, tendem – não por acidente, mas em geral – à superação das formas originais das culturas “adiantadas”, constituindo ganhos de clareza e força.

Mas como e por quê? A proceder a analogia proposta com a formação da consciência operária, segundo Trotsky, a força superior das sínteses culturais periféricas explicar-se-ia como inerente à experiência crítica do processo de desenvolvimento desigual e combinado, dada, segundo a analogia, por tensões, choques e desafios cognitivos; enfim, pela contração do tempo histórico elaborada autonomamente ou independentemente de esquemas e objetivos mentais importados e reproduzidos tal e qual por convenção ou subordinação.

Em conclusão, trata-se, no caso, segundo os termos postos ainda que elipticamente por Trotsky, não de uma “vantagem comparativa” autoral ou de licença poética eventualmente acessível àqueles em situação de menoridade, mas de uma força histórica expressa coletivamente e necessariamente vinculada à experiência crítica do desenvolvimento desigual e combinado. Daí o bote e, de par, o mote de Davidson.

Certa ou errada tal dedução, note o leitor que foi precisamente esse o caminho do nosso livro, sem acréscimo. Foi a matéria viva da intuição de Trotsky que Davidson colheu para dar o seu passo adiante e afirmar explicitamente o que Trotsky apenas subentendia, mas não chegou a afirmar com todas as letras: que o modernismo, leia-se a “arte moderna” (como dizemos, à francesa), apresenta correlação intrínseca (segundo afirma o Anexo final) com o desenvolvimento desigual e combinado.

A outra face da intuição de Trotsky

Sem delongas, quero pedir a atenção do leitor para outro ângulo da questão. Desta vez, atinente a mais um ingrediente intuitivo, premissa ou blefe, como se queira, atuante no eixo da assertiva de Trotsky e sem o que esta não se sustentaria. Foi precisamente a tensão ou esforço dessa face da questão, feito viga ou carta escondida (à primeira vista oculta, mas ora já nem tanto), que Davidson mediu, anotou e utilizou a fim de dar o seu passo, estabelecendo o que quero chamar de “formação histórica” do modernismo.

Valendo-se da mesma sustentação que o comentário de Trotsky, a proposição de Davidson efetua um salto adiante quanto às concepções correntes do modernismo nos países centrais. Por ora, a questão a ultrapassar é: em que consiste a funcionalidade da premissa muda ou, querendo o leitor, da carta na manga de Trotsky? Ou, por outra, qual é o ingrediente embutido no comentário de Trotsky, ao lado da dita necessidade ou força histórica, enfim, o valor de face da carta, falsa ou não, a fundar seu argumento que prognosticava a força ímpar das sínteses periféricas?

Nada menos nada mais que a carta curinga que lhe permitia a transição ou passagem – não imediata nem evidente – entre universos heterogêneos, a saber, no caso, uma conexão sintética entre as formas estéticas e as formas histórico-sociais. Daí, por conta dessa interação – seja mediante ex-voto, mistura ou negociação –, ocorrida no caso em pauta em meio às tensões internas ou cognitivas inerentes ao desenvolvimento desigual e combinado, floresciam as sínteses nascidas na periferia (numa perspectiva crítica sistêmica e de vanguarda, a valer o paralelo acima evocado com a vanguarda operária); sínteses que Trotsky julgou comparativamente superiores, quanto à clareza e à força, ante as formas mentais e estéticas originárias dos países “adiantados”.

Frente e verso da intuição

Assim, uma vez destilado o teor de tal intuição, desnuda-se o cerne da questão decisiva para a tese do Anexo final. Noutras palavras, foi tal carta curinga ou voucher – a saber, o meio ou o modo da conexão sintética entre as formas estéticas e as histórico-sociais, apto a ser condensado como material crítico estético e cognitivo (hipótese na face oculta da intuição que integra e viabiliza o comentário de Trotsky) – que igualmente levou Davidson a deduzir a conexão, passível de subsunção na anterior, entre o modernismo e o desenvolvimento desigual e combinado[xxvii].

Em síntese, como duas faces de uma mesma moeda, a tese de Davidson traz frente e verso indissociáveis, tal e qual a observação de Trotsky em 1922 da qual derivou, isto é: o vínculo entre o modernismo e o desenvolvimento desigual e combinado, de um lado; e de outro, a carta curinga da conexão sintética entre as formas estéticas e as histórico-sociais. É essa chave ou carta dúbia, se assim quiser o leitor cético, que convém examinar e discutir devido à sua valia decisiva no debate brasileiro, como se verá.

Modernismo e desenvolvimento desigual e combinado

Sendo ou não corretas as deduções acima, tanto quanto o achado acerca do nexo entre o modernismo e o desenvolvimento desigual e combinado, o passo de Davidson traz duas implicações.

Primeira: no fim das contas, além de completar o percurso inconcluso de Trotsky nessas matérias, a tese de Davidson implica numa totalização crítica e reflexiva envolvendo domínios heterogêneos, a saber, elementos estéticos e não estéticos, conforme argumentado. Isso por si já constitui coisa rara, que chama a atenção nos dias atuais, de entronização de perspectivas parciais e fragmentadas em que o mesmo busca o mesmo.

Segunda: a tese de Davidson – segundo a qual o modernismo, como forma específica de arte e pensamento, responde dialeticamente às tensões do desenvolvimento desigual e combinado – instala a discussão sobre a arte em novo patamar histórico, ainda mais evidente se contrastado com aquele que vigorou nos últimos quarenta anos mais ou menos, a datar da ascensão do dito “pensamento único”, resumido na fórmula: “there is no alternative”. Concretamente, deixa para trás a dualidade, desde sempre presente no âmago da história e da crítica da arte, que contrapunha universalismos e cosmopolitismos versus localismos e particularismos.

Muita tinta correu – tinta suficiente para tingir um rio caudaloso –, no fio das discussões que separavam aparentemente em duas margens opostas os partidários de uma e outra perspectiva. A polarização em questão moldou, recorde-se, não só o debate entre pós-modernistas e modernistas, mas, bem antes disso, entre Herder e Winckelmann, no idealismo alemão.

Ambas as vertentes assentavam num solo comum, segundo o qual a forma estética seria matéria exclusiva de deliberação do artista, encastelado, segundo se pensava, no feudo de sua hipotética autonomia.

Já a tese de Davidson, em contraposição à ideia da forma pura – suposta como fenômeno unicamente mental e livre tal o cogito –, instala a discussão da arte num outro campo, concretamente adensado pela materialidade do processo histórico-social. Neste, dá-se e observa-se – para além do cogito e do corpo do autor ou, em resumo, da instância autoral – a correspondência dialética entre as formas estéticas e as formas histórico-sociais. A premissa vale nos termos postos por Davidson para a arte modernista, mas não se restringe a ela no quadro do desenvolvimento desigual e combinado, abrindo lugar, pois, à consideração da chamada “arte contemporânea” em termos análogos.

Carta-chave

Sobressai aqui a importância decisiva do verso ou da segunda face da intuição de Trotsky. Vale dizer, sem pressupor a carta curinga da conexão entre as formas estéticas e as histórico-sociais, não haveria como aventar a elaboração noutras bases, isto é, a transformação das formas apropriadas aos países “adiantados”, nem haveria tampouco como Davidson arguir a vinculação do modernismo com o processo de desenvolvimento desigual e combinado.

Resta que, se Trotsky não explicitou tal conexão, Davidson tampouco o faz. Similar ao legado pela intuição de Trotsky, o enigma reside, portanto, na tese de que o modernismo apareceu vinculado ao desenvolvimento desigual e combinado, via as tensões mentais dele derivadas. Entretanto, como e de que modo isso se deu? O livro presente, de fato, não traz a resposta. Não obstante, note-se, o enigma pontual não desvaloriza a visada e o teor instigantes do estudo de Davidson. Ao contrário, equipa e instiga o interessado a avançar por si. É o que o leitor brasileiro pode e tem, de fato, a fazer, e para tanto se destinam as próximas páginas, empenhadas em apurar: tratava-se de um blefe estratégico de Trotsky, ou não? Tinha ele, de fato, uma carta válida na mão? O que o curso histórico posterior mostrou?

Linha pontilhada: cenas e traços de continuidade

Para recapitular e resumir o trajeto feito até aqui, convém recorrer a uma imagem-síntese: a de uma linha pontilhada. Vislumbrada sem dúvida devido à perspectiva aberta pelo livro de Davidson, uma linha pontilhada imaginária une a intuição de Trotsky na observação de 1922 (que contém, como vimos, a premissa muda de um elo entre formas estéticas e não estéticas) a uma incógnita oculta. Incógnita agora manifesta enquanto tal, uma vez aflorada à consciência do leitor que, póstero, pode, graças à sua posição e à perspectiva atual, destrinchar a condição de possibilidade da assertiva de Trotsky. Trata-se de uma hipótese afirmativa acerca da possibilidade de tal ligação – entre formas estéticas e sociais –, viabilizada por um meio de ligação. Mas como se daria tal ligação? Qual o valor de face alegado pelo meio indutor da ligação? Qual o seu teor ou natureza, enfim?

Ponhamos noutras palavras, a bem da precisão e para fixar o processo de afloramento da intuição em representação consciente: intuição, premissa muda ou carta curinga, seja como for, retomada como um todo na tese de Davidson, redunda, de fato, numa pergunta ou dúvida ora aberta. Esta nos chegou legada pela intuição de Trotsky em estado bruto e até segunda ordem inconsequente, mas ora ressurge avivada mediante a tese de Davidson no Anexo – aquela da vinculação entre o modernismo e o desenvolvimento desigual e combinado.

Assim, a premissa calada de Trotsky, antes meramente latente no comentário de 1922, ao se objetivar, agora se transmuta numa pergunta posta pelo leitor de Trotsky, via Davidson. A pergunta resultante do trajeto feito e que é possível escandir e buscar esmiuçar é: como se dá tal conexão sintética, unindo os domínios heterogêneos das formas estéticas e não estéticas?

Contrato social

Tão importante quanto o livro de Davidson – para se vislumbrar a linha pontilhada e traduzir em pergunta explícita o legado mudo, pondo na mesa a carta escondida da intuição de Trotsky –, no trajeto feito até aqui, foi a noção de “forma objetiva” (para dar nome ao boi), desenvolvida no debate brasileiro. A noção de “forma objetiva” responde, desdobra e completa o que a observação de Trotsky intuiu sem dizer. Oferece assim o ponto de vista retrospectivo de onde se distingue explicitamente o gesto de Trotsky – fosse blefe ou achado estratégico, de todo modo, lance que intuiu sem dizer naquela altura: 1922.

A linha pontilhada, portanto, ao levar para além do ponto da pergunta referida, traz – numa reta intermitente, mas de sentido inequivocamente progressivo e ora visível –, com um salto a mais, a observação de 1922 à noção de “forma objetiva”, construída na periferia. Esta foi configurada como conceito de modo tão acabado, demonstrado e relevante que pode funcionar como um divisor de águas no debate estético global, para os que dela tomam conhecimento, diante do horizonte geral que o Anexo de Davidson ora permite distinguir. Nesse quadro, e alinhada segundo uma perspectiva histórica dentre outras proposições estéticas postas, digamos, de 1968 para cá (para tomar um marco histórico), a forma objetiva aparece, em síntese, com a função e o valor de referência de um contrato social da forma estética.

Forma objetiva: definição e preliminares

Com efeito, Schwarz situou a forma objetiva como forma dotada de uma “substância prático-histórica” (1991)[xxviii]; ou ainda como “nervo social da forma artística” (1997)[xxix]. Mais recentemente, em 2003, no curso de um movimento retrospectivo de descortino das bases do seu constructo referido à “noção materialista de forma literária”, de Antonio Candido, da qual a “forma objetiva” explicitamente deriva, Schwarz assim apresentou a noção de Candido:

“Em vez de opor a invenção formal à apreensão histórica, segregando essas faculdades e os respectivos domínios, ele [Candido] buscou sua articulação. A forma – que não é evidente e cabe à crítica identificar e estudar – seria um princípio ordenador individual, que tanto regula um universo imaginário como um aspecto da realidade exterior. Em proporções variáveis, ela combina a fabricação artística e a intuição de ritmos sociais preexistentes. De outro ângulo, tratava-se de explicar como configurações externas, pertencentes à vida extra-artística, podiam passar para dentro da fantasia, onde se tornavam forças de estruturação e mostravam algo de si que não estivera à vista. Tratava-se também de explicar como a crítica podia refazer esse percurso por sua vez e chegar a um âmbito através do outro, com ganho de conhecimento em relação a ambos. O vaivém exige uma descrição estruturada dos dois campos, tanto da obra como da realidade social, cujas ligações são matéria de reflexão[xxx]”.

Deixo ao leitor interessado a tarefa de detalhamentos ulteriores. Antes, o propósito de rememorar aqui a noção de “forma objetiva”, bem como seus antecedentes ligados a uma “noção materialista de forma” – ambas correspondendo, à revelia ou não (pouco importa), à intuição de Trotsky em 1922 –, visa à demonstração de que se delineou no Brasil, em meados dos anos 1960 e especialmente em resposta ao golpe civil-militar de 1964, um vetor reflexivo e de ensaísmo crítico, digamos, um sistema crítico estético-cultural dotado de continuidade interna e em ligação com a ampliação e  a radicalização da democracia pelas lutas sociais.

A configuração objetivada de tal vetor basta para indicar que a problemática brasileira é de tipologia diversa daquela observada por Trotsky nos Bálcãs em 1912, ao apontar o empréstimo emblemático de formas literárias, sem outra perspectiva além da dívida e do vazio. Configuravam-se assim nos Bálcãs, à vista de Trotsky, segundo anotou em 1912, recorde-se, sinais sintomáticos de dependência.

Decerto há sinais de dependência crônica nas relações brasileiras ante as economias e culturas hegemônicas. Mas esse quadro coexiste com episódios de ordem distinta, tal como os referidos noutra chave por Trotsky no comentário de 1922 sobre os movimentos futuristas, ao apontar a ocorrência e a possibilidade aberta de sínteses periféricas cuja claridade e força eram e podem ser superiores às das formas originais provindas das culturas hegemônicas.

Mal-estar histórico

Define-se, pois, um quadro distinto, o de dependência com algum acúmulo interno, que veio compreender eventualmente a formação de um sistema cultural[xxxi], apto inclusive a enunciar sua própria crise ou ciclo terminal, consoante o núcleo de debates sobre o desmanche, antes referido.

O sistema em questão repousa por sua vez, segundo se supõe, posta sua continuidade interna, não exclusivamente em dívidas contratadas segundo convenções acatadas, mas – dada sua dinâmica própria, ainda que entrecortada e intermitente – nalgum tipo diverso de recurso às formas das culturas “adiantadas” – como ocorreu no caso de Machado na transição do século XIX para o XX, segundo demonstrado por Schwarz.

Constituem diferenças postas ante o quadro búlgaro, de todo modo marcantes, no tocante à dinâmica histórica e ao modo de relação com as culturas hegemônicas – diferenças que é preciso estabelecer e cuja significação cumpre precisar, pois a etiologia do mal-estar histórico no Brasil é diversa. Daí a prioridade, aqui, para a distinção diacrônica do vetor crítico formado e desenvolvido no debate brasileiro.

Cenas de um processo crítico

Schwarz é claro e preciso ao apontar a “noção materialista da forma” de Candido, como origem e raiz do seu próprio constructo. Nesse sentido, a “forma objetiva” de Schwarz deriva especificamente de um ensaio de Candido publicado em 1970: “Dialética da Malandragem” (1970)[xxxii]. Nele, o autor tratou de estabelecer a forma estética como redução estrutural e condensação formal de ritmos sociais, observados analiticamente no processo de desenvolvimento interno da forma artística. Entretanto, de onde veio o achado de Candido?

Decerto seu constructo não teve moldes de epifania súbita e raiz extraterrena, alegados pelo “estalo de Vieira”. Bem ao contrário, para um pensador dialético e atento à história como Candido, as ideias atendem a debates e são material e socialmente induzidas, segundo termos coletivos e cumulativos. No caso, o ensaio de Candido se contrapôs frontalmente à voga resultante da convergência entre o dito “linguistic turn”, hegemônico naquela altura nos campi anglo-americanos, e o seu similar oriundo das universidades francesas: estruturalismo e ciências da linguagem a ele associadas (semiologia, semiótica e derivados).

O influxo externo montante e que arrebatava adeptos em muitos departamentos de Letras e Ciências Humanas de países periféricos difundia o axioma do momento nas culturas hegemônicas: o do divórcio e da segregação que aparta as formas estéticas, manejadas laboratorialmente como se fossem puras, daquelas de extração não estética, de espúria origem – leia-se econômica e histórico-social –, atiradas ao mar do esquecimento pela mania generalizada de denegar a força própria da realidade.

A virada

Mas, contra adversários de tal porte, em que bases materiais assentava-se a esgrima de Candido? Se, segundo Schwarz, “como sempre, há uma preparação para as revelações”[xxxiii], qual era ela, no caso? Ou, por outra, como foram preparadas, naquele contexto de descrédito das encíclicas luckacsianas, a estratégia de resistência e a contraofensiva em favor da “noção materialista de forma”?

Que processo histórico-social induziu Candido e Schwarz a não retroceder à posição já tradicional da forma heterônoma – para propor o estabelecimento da complexidade da forma na imanência própria da obra – permeada, porém, pelo processo histórico-social? Qual o regime de tal permeabilidade? Que ordem de reciprocidade podia se estabelecer entre a forma estética e a configuração do processo histórico-social? E este último, por sua vez, em que se diferenciava do esquema linear-etapista (para o qual aparecia como efeito de causas históricas genéricas)? Nesse sentido, em que termos o processo histórico-social podia aparecer como problema aberto, à diferença das famigeradas ladainhas da III Internacional (de que devem se recordar os mais velhos)? Como as formulações de Candido e Schwarz podiam escapar a tais ladainhas, segundo as quais a forma heterônoma, sujeita a generalidades abstratas e normativas de classe, devia veicular – e ai dela se não o fizesse! – a lógica de uma suposta linearidade histórica universal?

Mas voltemos ao ponto decisivo a destrinchar na trama de ideias que precedeu à formulação de um contrato social da forma estética: que espécie de acumulação crítica e reflexiva precedeu e constituiu a tendência da qual a reflexão de Candido na transição do pós-1968 foi, naquela altura, o carro-chefe, advogando a condensação estética dos ritmos sociais?

Vamos por partes. Por um lado, parte da resposta reside com toda probabilidade num ensaio de Schwarz de 1970 (ver adiante), o qual não se refere ao ensaio de Candido, porém cuja elaboração, em paralelo e simultânea, desvenda – sem mencionar diretamente as ligações – o contexto histórico em meio ao qual se preparou a contraofensiva de Candido à Santa Aliança da forma pura.

Por outro lado, Candido, com efeito, não era um franco-atirador, mas um pensador sempre de olho em tendências histórico-sociais e um fundador de escola, preocupado em atuar historicamente, organizando ideias e representações coletivas, inclusive. Tomemos, primeiro, a parte de Candido na acumulação crítica. Assim, relata Schwarz, nos anos 1970 Candido “animava um seminário de pós-graduação em que se repassavam as teorias críticas modernas”[xxxiv]. Pela providência programática, a discussão vinha naturalmente projetada vários passos adiante do dilema de Borges e Paulo Emilio. Deste modo, esquivava-se da dualidade pendular entre ser ou não ser para, ao invés, levar à preparação de uma perspectiva crítica coletiva e independente dos esquemas teóricos dominantes.

Foi entremeada a esses debates do seminário que se cristalizou a reflexão paradigmática de Candido sobre a dialética histórica entre forma literária e subdesenvolvimento econômico, e, em particular, sobre a “noção materialista da forma” (cujo esboço iniciara-se após o golpe de 1964). Delineou-se nessa nova plataforma judicativa, experimentada nos ensaios de Candido, um esquema crítico básico a partir do qual os parâmetros da tradição ocidental, pelos quais até então se media a matéria periférica, passaram a ser justamente medidos segundo esta última. A virada de perspectiva assim obtida foi um feito crítico notável, mapeado e historicizado por Schwarz[xxxv]. Com efeito, mediante o roteiro crítico exemplar delineado nos ensaios de Candido, cumpria não só se obter a distinção daquilo que não éramos, mas antes confrontar-se – desde a experiência periférica própria – com termos, conceitos e formas das tradições hegemônicas e, desdobrando a crítica da dependência, estabelecer as vicissitudes peculiares da descolonização como tarefa permanente ou em aberto[xxxvi]. Conjugar o método de ver pelo avesso as formas dominantes e combinar achados estéticos e sociais, na esteira de Candido, é o que fariam doravante outros estudos, a começar pelos de Schwarz.

Entretanto, por maior que fosse o salto crítico de Candido, não se afere, de um ponto de vista histórico maior, o porte, a potência e o teor de um processo por um único autor ou resultado intelectual contingente. De fato, se fosse só por um, como explicar e habilitar outros resultados? Enfim, em nada valeria o fundo de verdade histórica crítica coletiva – vale dizer, no caso em questão, extração, modo e razão de ser, na longa duração, de confronto com a dependência. Para além das contingências, cumpre antes estabelecer de onde nascera ou proviera – de fato, em que chão e ambiente fincara raízes? – o empenho crítico coletivo prolongado, do qual Candido fora fautor, mas, também, apenas uma das vozes.

Consideremos então o outro lado. Com efeito, é errôneo em termos históricos tomar um fato apenas por si ou isolado. Circundando a elaboração do trabalho, a um só tempo coletivo e autoral, que resultou na noção da forma materialista, havia de fato um vigoroso movimento de ideias cujos ecos certamente o alcançavam e impulsionavam. Tanto quanto o estudo de Schwarz, “Cultura e política, 1964-69”[xxxvii], não faz menção ao texto de Candido, este tampouco – voltado a um romance do século XIX – menciona o caldo fervilhante, mormente de origem não acadêmica, que circundava a feitura de seu ensaio sobre uma obra de Manuel Antonio de Almeida, Memórias de um Sargento de Milícias (1852).

Discrição e silêncio, no caso, tinham um pé nas circunstâncias. Porém, vistos retrospectivamente os dois ensaios de 1970, saltam à vista elos de correlação e complementaridade – assim como a ligação de ambos com os debates à volta e dos anos precedentes, enfocados no ensaio de Schwarz. Desse modo, o último destaca a organicidade e o amplo espectro de um movimento cultural em resposta ao golpe civil-militar de 1964, que abarcou, num mesmo curso de vigor crítico sistemicamente desenvolvido, obras de música, cinema, teatro, arquitetura, artes visuais, jornalismo, ciências sociais e humanas, sem falar nas manifestações nas ruas de protesto contra a ditadura.

Quem tiver interesse, vá ao texto original de Schwarz. Lá, haverá, ademais, de dar com as razões pelas quais as artes e a reflexão estética brasileiras nos idos dos anos 1960 e 1970 efetuaram uma virada e um salto muito adiante, superando produções similares realizadas naquela altura nos países centrais. Como e por quê?

O esquema básico de resposta, como tese e demonstração, está posto nos ensaios de Candido, formulados sem alarde[xxxviii] e referidos às moradias e vida dos “de baixo” em meados do XIX, numa capital territorial recém-saída da condição colonial por operação que seguiu, sem dúvida, o andamento geral de desmanche da antiga ordem colonial (porém andamento que também compreendeu, no caso específico brasileiro, um tanto de urdidura em círculos monárquicos, tornando o Império escravista brasileiro exceção e mancha distintas no novo mapa das nações das três Américas).

Regressão no avanço

O salto adiante da produção artística e ensaística não só brasileira, mas de vários focos periféricos nos anos 1960 e 1970, exerceu impacto nas culturas centrais. Isso porque, com todo o avanço verificado àquela altura no tocante à elaboração analítica das formas nas culturas hegemônicas, sua volumosa produção teórica e artística surgia relativamente rebaixada ante à periférica, pela aceitação a priori do seu confinamento crítico-reflexivo em uma esfera restrita e setorial. Só em raros e excepcionais casos a arte analiticamente avançada dos países hegemônicos dispunha-se então a pensar o todo. (Não me refiro aqui ao caso do então vigoroso e plural cinema europeu que escapou e resistiu de modos variados, por razões que não cabe aqui discutir, ao diktat visual da forma pura, triunfante nas artes plásticas e nas letras.)

Em contrapartida, obras de arte periféricas dos anos 1960-70, a contrapelo da tendência analítica dominante nas culturas hegemônicas, mas sem descurar dos procedimentos analíticos desenvolvidos nos países centrais, sintetizavam e totalizavam reflexivamente as práticas analíticas formais, apropriadas às experiências estéticas dos países centrais, combinando-as à reflexão sobre o processo histórico-social em curso na periferia. Naquela quadra histórica, como se sabe, somava-se ao descompasso crônico das economias periféricas a disseminação de ditaduras civis-militares na América Latina. Em consequência, a arte latino-americana, além de ambicionar ser reflexivamente totalizante e, por conta disso, de operar em paralelo com a ensaística e as pesquisas nas ciências humanas, tornou-se então, na clandestinidade ou no exílio[xxxix], aberta e explicitamente combativa[xl].

“Arte negativa” e “projetos abertos”

Em suma, a vinculação intrínseca da forma estética às formas histórico-sociais, como mostrou o ensaio de Schwarz sobre o período 1964-69, teve nas artes brasileiras uma história preliminar, que atestava uma tendência, então em curso, à reconstrução do realismo. Esse vetor antecedeu e preparou, mesmo que de modo transversal, a acumulação cujo saldo crítico ensejou as investidas reflexivas de Candido e Schwarz.

À primeira vista, tratava-se de tendência majoritariamente artística, mais do que ensaística, no que se refere à quantidade e às características das ocorrências. Não obstante, tal primazia do artístico não a privava do modo reflexivo, pois à época muitos artistas, além de operarem em seus campos de expressão, conceituavam e escreviam com frequência, desenvolvendo e debatendo regularmente suas próprias ideias.

Um ponto marcante na trajetória de tal vetor foi dado pela noção de open project (projeto aberto), desenvolvida por Hélio Oiticica e Antonio Dias, num texto escrito a 4 mãos em agosto de 1969 em Londres, onde Oiticica se instalara[xli]. Assim, Project-book – 10 Plans for open projects (Livro-projeto – 10 Planos para projetos abertos)[xlii] estabeleceu um programa que, ao longo de 10 proposições para a realização de trabalhos segundo estruturas abertas, especificadas e nomeadas, supunha o princípio de uma porosidade constante do trabalho de arte à realidade circundante – mas não só, pois estruturas históricas menos tangíveis no espaço da intervenção artística eram designadas por legendas ou títulos, o mais das vezes irônicos.

Nesse sentido, o projeto de ambos previa a possibilidade de uma ligação direta entre formas artísticas e histórico-sociais, em linha com as noções de Oiticica de “arte ambiental” e de arte “suprassensorial”, assentadas na ideia de forma estética aberta ao entorno, a começar ou findar pela intervenção do público. Mesmo quando a conceptualização ou denominação verbal enquanto tal provinha expressamente de Oiticica, ela, de fato, respondia a um elã e a um processo de pensamento e debate coletivo nas artes. Desse modo, termos e ideias de Oiticica foram adotados tal e qual, inclusive, por uma reflexão crítica com o gume daquela exercida por Mário Pedrosa[xliii].

Assim também, por sua vez, o Project-book e, antes dele, o ensaio “Esquema geral da Nova Objetividade” (1967)[xliv], escrito por Oiticica – que coloca explicitamente em termos historiográficos e críticos uma plataforma de reconstrução do realismo nas artes visuais brasileiras –, trazem ambos a marca visual decisiva do trabalho de Dias. Como atos orgânicos de um desenvolvimento em curso, tudo isso provém da perspectiva de reconstrução do realismo, presente na obra de Dias e Oiticica desde a mostra Opinião 65 (MAM-Rio, 1965), quando despontou a tendência de superação do abstracionismo geométrico pré-1964[xlv].

No caso de Dias, principalmente, o empenho em favor da reconstrução de um discurso realista na pintura ia de par com a estratégia de mover confronto direto e agudo com discursos artísticos em voga nos países centrais. A estratégia de Dias era abertamente agonística, invectivando sem receio ou timidez as festejadas e criticamente bem-sucedidas correntes adversárias[xlvi]. Assim, numa anotação datada possivelmente de 1967, no início de seu Notebook 1967 – 69, Dias formulou as noções de “arte negativa” e de “pintura como crítica de arte”[xlvii]. Ambas as noções apareciam nos trabalhos de Dias desde logo como funcionais, pois se aplicavam diretamente às operações de apropriação e deslocamento mediante ironia das formas capturadas dos discursos pictóricos então globalmente dominantes: “arte conceitual” e “arte minimal”, ambas na chave do “linguistic turn”.

Operações dessa ordem constituíram uma constante da obra de Dias, que saltou para o primeiro plano aos 21 anos na mostra inaugural da corrente da Nova Figuração (Opinião 65, MAM-RJ), ao se apropriar de clichês típicos da Pop-Art não só para denunciar a política imperialista e belicista norte-americana e o governo ditatorial brasileiro apoiado pelos Estados Unidos, mas para superar a afasia das tendências (arte concreta e neoconcreta) oriundas da abstração geométrica ante a nova situação nacional posta pelo golpe civil-militar de 1964[xlviii].

Tais manobras não traziam de fato qualquer traço direto de dívida visível com o comentário de Trotsky de 1922. Porém, sem dúvida, deviam muito – diria provavelmente Davidson, se tivesse sob os olhos as obras da Nova Figuração e da Nova Objetividade Brasileira – às tensões inerentes ao desenvolvimento desigual e combinado.

Virando a esquina

Note o leitor, para concluir, que o livro de Davidson dá a impressão de ter sido feito sob medida para o debate brasileiro. No entanto, foi feito na Escócia, em Glasgow. Davidson, por sua vez, ao enviar estes textos em outubro de 2018 para serem publicados no Brasil, nunca havia estado na América do Sul[xlix].

A razão desse prodígio aparente não é senão a envergadura reflexiva da lei do desenvolvimento desigual e combinado. Ela prepara e aproxima uma perspectiva crítica elaborada na Escócia – e à revelia de qualquer discussão brasileira – de termos e linhas engendrados no debate brasileiro, como espero ter conseguido mostrar. Em resumo, para a reflexão, a potência de proposição da lei do desenvolvimento desigual e combinado abrange e sintetiza, para além de peculiaridades e localismos, a unidade – na desigualdade – dos aspectos do processo de desenvolvimento capitalista periférico. Assim, aspectos experimentados na Escócia permitem à reflexão, que compreende a unidade dialética de desiguais num mesmo arco, efetuar a síntese com aspectos distintos verificados no Brasil.

Em consequência, mediante tal síntese o leitor brasileiro adquire a possibilidade de revisitar a história dos sucessivos ciclos de modernização aqui ocorridos como momentos da história mundial. História esta, que, antes de ser do Brasil e demais países, é na verdade história das classes, pois o prisma posto pela lei do desenvolvimento desigual e combinado especifica claramente o que é próprio e característico à dinâmica de cada uma das classes fundamentais. Analogamente, permite integrar segmentos próprios ao curso histórico de cada uma delas, em diferentes regiões do mundo – inclusive os ciclos de debates e da arte brasileira aqui rememorados –, à história mundial da produção sistêmica de mercadorias, posta como história das classes que trazem interesses opostos.

Noutras palavras, tem-se a ocasião, em grande medida graças à amplitude e atualidade dos dados, bem como à clareza da análise histórica e das contradições recentes, reunidos na obra de Davidson, de distinguir em ato e exercício do que tratava a XIVa das teses Sobre o Conceito de História, de Walter Benjamin, quando aludia ao tigre em cujo dorso e “sob o céu livre da história” podia-se fazer a experiência do salto dialético “em direção ao passado”. Salto esse que, ao fazer “explodir o contínuo da história”, leva ao coração da atualidade como “tempo-de-agora”[l].

Para concluir, o livro de Davidson faz pensar que tal espécie de tigres (não asiáticos, mas dialéticos), ao contrário do que é voz corrente, não esteja em extinção. Coisa outra ou outra coisa, diversa e ulterior, é a mutação ou passagem – sem linha pontilhada –, do pulo do gato periférico para o salto do tigre em questão[li].

* Luiz Renato Martins é professor-orientador dos PPG em História Econômica (FFLCH-USP) e Artes Visuais (ECA-USP); autor, entre outros livros, de The Long Roots of Formalism in Brazil (Chicago, Haymarket/HMBS, 2019)

Referência

Neil Davidson, Desenvolvimento Desigual e Combinado: Modernidade, Modernismo e Revolução Permanente. Organização e revisão crítica: Luiz Renato Martins. Apresentação: Steve Edwards. Prefácio: Ricardo Antunes. Tradução: Pedro Rocha de Oliveira. São Paulo, Editora Unifesp/ Ideias Baratas, 2020.

Notas

[i] Ver Antonio Candido, “O Significado de Raízes do Brasil” [1967], em Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil [1936], São Paulo, Companhia das Letras, 1995, pp. 9-24; ver também idem, “A Revolução de 1930 e a Cultura”, em A Educação pela Noite & Outros Ensaios, São Paulo, Ática, 1987, pp. 181-198.

[ii] Ver Francisco de Oliveira, A Navegação Venturosa: Ensaios sobre Celso Furtado, São Paulo, Boitempo, 2003.

[iii] Para documentos do confronto direto em torno da questão da dependência, ver Fernando Henrique Cardoso & José Serra, “Las Desventuras de la Dialéctica de la Dependencia”, Revista Mexicana de Sociología, v. 40, número extraordinário, Cidade do México, Unam, 1978, pp. 9-55. Para a resposta de Ruy Mauro Marini, ver R. M. Marini, “Las Razones del Neodesarrollismo (Respuesta a F. H. Cardoso y J. Serra)”, Revista Mexicana de Sociología, v. 40, número extraordinário, Cidade do México, Unam, 1978, pp. 57-106, disponível em: <http://www.marini-escritos.unam.mx/056_neodesarro llismo.html>. Para um resumo atual da questão, ver Claudio Katz, La Teoría de la Dependencia, Cincuenta Años Después, Buenos Aires, Batalla de Ideas, 2018.

[iv] Ver, por exemplo, Roberto Schwarz [1994], “Fim de Século”, em Sequências Brasileiras: Ensaios, São Paulo, Companhia das Letras, 1999, pp. 155-62; Francisco de Oliveira [2003], “Política numa Era de Indeterminação: Opacidade e Reencantamento”, em A Era da Indeterminação, São Paulo, Boitempo, 2007, pp. 17-45.

[v] Ver Antonio Candido [1957/1962], “Prefácio da 1ª Edição” e “Prefácio da 2ª Edição”, em Formação da Literatura Brasileira: Momentos Decisivos 1750-1880, Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul, 2009, respectivamente, pp. 11-15; 17-20; ver também nota 6, adiante.

[vi] Ver Leon Trotsky [1906], Results and Prospects, em The Permanent Revolution and Results and Prospects, intr. de Michael Löwy, Londres, Socialist Resistance/IMG Publications, 2007, pp. 15-100.

[vii]  Cf. Leon Trotsky [1912], “In a backward country” [“Num país atrasado”], em George Weissman & Duncan Williams (eds.), The Balkan Wars, 1912-13: The War Correspondence of Leon Trotsky, trad. Brian Pearce, New York, Monad Press, 1980, p. 49. Grifo meu.

[viii] Sobre o papel histórico de Machado nesse sentido, ver Candido, Formação da Literatura Brasileira, pp. 436-7; sobre a noção de sistema literário e a articulação básica das obras entre si, ver “Introdução”, em ibidem, pp. 25-39.

[ix] Cf. Leon Trotsky [1922], “El Futurismo”, em Literatura y Revolución, nota preliminar, seleção de textos, tradução e notas de Alejandro Ariel González, introdução de Rosana López Rodriguez e Eduardo Sartelli, Buenos Aires, Ediciones Razón y Revolución, 2015, p. 285. A citação feita por Davidson no Anexo vem referida pela nota 10, p. 269. Para abreviar o trecho, o autor substitui parte do texto de Trotsky por uma paráfrase. Porém, aqui, devido ao interesse estratégico do trecho, citei-o por inteiro com base na edição mais recente, que é também a mais completa.

[x] Cf. Neil Davidson, “Anexo”, in Desenvolvimento Desigual e Combinado, op. cit., p. 268.

[xi] Entretanto, sobre a trajetória de Candido e sua apreciação de Trotsky, pode-se consultar Roberto Schwarz, “Antonio Candido (1918-2017)”, em Seja como For: Entrevistas, Retratos, Documentos, São Paulo, Livraria Duas Cidades/Editora 34, 2019, pp. 410, 414.

[xii] Ver Roberto Schwarz, Ao Vencedor as Batatas [1977], São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, 2000; idem, “Complexo, Moderno, Nacional e Negativo” [1981], em Que Horas São?, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, pp. 115-125; idem, Um Mestre na Periferia do Capitalismo, São Paulo, Duas Cidades, 1990; idem, “A Poesia Envenenada de Dom Casmurro”, em Duas Meninas, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pp. 7-41; idem, “Leituras em Competição” [2006] e “A Viravolta Machadiana” [2003], em Martinha versus Lucrécia: Ensaios e Entrevistas, São Paulo, Companhia das Letras, 2012, respectivamente pp. 9-43, 247-79.

[xiii] Sobre a série de crônicas de Machado que causaram desconforto nos círculos monárquicos brasileiros à época do fuzilamento do príncipe austríaco Maximiliano pelo exército republicano mexicano, ver Luiz Renato Martins, “The returns of regicide”, em The Conspiracy of Modern Art, ed. Steve Edwards, trad. Renato Rezende, Chicago, Haymarket, 2018, p. 104. Agradeço a Iná Camargo Costa pela indicação das crônicas de Machado.

[xiv] A fim de melhor precisar a função histórica atribuída à literatura na matéria em questão, conceda o leitor que segue o fio destas páginas um momento de atenção à tocante declaração de amor pela literatura e pelas artes plásticas, escrita por Trotsky em meio às turbulências de 1939: “É bom que no mundo exista não só a política, mas também a arte. É bom que a arte seja inesgotável em suas possibilidades, como a própria vida. Num certo sentido, a arte é mais rica do que a vida, já que pode aumentar e diminuir, aplicar cores brilhantes ou, ao contrário, limitar-se a um lápis cinza, pode apresentar um mesmo objeto de diferentes ângulos e iluminá-lo com diferentes luzes. Napoleão houve um só. Mas suas representações artísticas são inumeráveis./ A fortaleza de Pedro e Paulo e outras prisões czaristas me puseram em contato tão íntimo com os clássicos franceses que durante mais de três décadas estive seguindo mais ou menos regularmente as novidades destacadas da literatura francesa. Até nos anos da guerra civil eu costumava ter no vagão de meu trem militar alguma novela francesa recente”. Cf. Leon Trotsky, “Un Nuevo Gran Escritor/Jean Malaquais, Les Javanais, Novela, Éditions Denoel, Paris, 1939”, em Literatura y Revolución, p. 852.

[xv] Para um levantamento histórico e o detalhamento analítico de processos estruturalmente congêneres verificados no período colonial da América portuguesa, mesmo que menos agudos do ponto de vista da maestria autoral e das qualidades literárias das obras envolvidas, realizadas no contexto colonial, leia-se, por exemplo, de Antonio Candido, “Literatura e Subdesenvolvimento” [1970], em A Educação pela Noite, pp. 140-162.

[xvi] Ver Leon Trotsky, La Teoría de la Revolución Permanente/ Compilación, apres. Gabriela Liszt y Marcelo Scoppa, trad. Mario Larrea et al., Buenos Aires, Ceip León Trotsky, 2005; ver também Michael Löwy, The Politics of Combined and Uneven Development: The Theory of Permanent Revolution [1981], Chicago, Haymarket, 2010 (ed. bras. A Política do Desenvolvimento Desigual e Combinado: A Teoria da Revolução Permanente, trad. Luiz Gustavo Soares, São Paulo, Sundermann, 2015).

[xvii] Ver Leon Trotsky, “Appendix 1-2-3”, em History of the Russian Revolution [1930], trad. Max Eastman, Nova York, Pathfinder, 2012, pp. 1401-1504.

[xviii] Para detalhes sobre a debacle da transição, ver Luiz Renato Martins, “El Colapso Político del PT y la Guerra Civil Declarada”, Herramienta Web, n. 26, ago. 2019, disponível em: <https://herramienta.com.ar/articulo.php?id=3060>. Publicado em português como “A Guerra Civil Declarada” e “A Guerra Continua”, A Terra É Redonda, 21 e 26 maio 2020, respectivamente, disponíveis em: <https://aterraeredonda.com.br/a-guerra-civil-declarada/> e <https://aterraeredonda.com.br/aviso-de-incendio/>.

[xix] Ver Roberto Schwarz, “Um Seminário de Marx”, em Sequências Brasileiras, pp. 86-105.

[xx] Ver Rodrigo Naves, “Debret, o Neoclassicismo e a Escravidão”, em A Forma Difícil: Ensaios sobre Arte Brasileira, São Paulo, Ática, 1996, pp. 40-129.

[xxi] Ver Jacob Gorender, O Escravismo Colonial, São Paulo, Editora Ática, 1988.

[xxii] Ver, acima, nota 9.

[xxiii] Cf. Jorge Luis Borges, “O Escritor Argentino e a Tradição”, em Obras Completas, Volume I: 1923-1949, trad. Josely Vianna Baptista, São Paulo, Globo, 1998, p. 295. Segundo nota à p. 288, “o texto constitui a versão taquigráfica de uma aula proferida no Colegio Libre de Estudios Superiores (1953)”.

[xxiv] Utilizo aqui o encadeamento proposto por Roberto Schwarz, ao citar tal passagem de Borges e, logo em seguida, as palavras de Paulo Emilio. Ver Schwarz, “Antonio Candido (1918-2017)”, pp. 409-10.

[xxv] Ver Paulo Emilio Sales Gomes, “Cinema: Trajetória no Subdesenvolvimento”, Argumento – Revista Mensal de Cultura, n. 1, Rio de Janeiro, 1973, pp. 54-67.

[xxvi] Ver idem, Jean Vigo e Vigo, Vulgo Almereyda, São Paulo, Cosac Naify/Sesc, 2009.

[xxvii] Desde logo, para céticos e sequiosos de casos concretos, vale a pena consultar a noção de “modernismo alternativo”, proposta pelo historiador norte-americano David Craven em bases semelhantes: a lei do desenvolvimento desigual e combinado e obras elaboradas a partir de experiências periféricas. Ver David Craven, “As Origens Latino-Americanas do Modernismo Alternativo”, Crítica Marxista, n. 37, Campinas, Cemarx-IFCH/ Unicamp, 2013, pp. 137-54; ver também a nota introdutória: Luiz Renato Martins, “Uma Crítica Dialética nas Artes Visuais”, ibidem, pp. 133-35; e, mais detalhadamente, idem, “Notes on Modernisation, from the Periphery: On David Craven’s Alternative Modernism”, em The Long Roots of Formalism in Brazil, ed. Juan Grigera, intr. Alex Potts, trad. Renato Rezende, Chicago, Haymarket, 2019, pp. 221-31.

[xxviii] Cf. Roberto Schwarz [1991/1992/1999], “Adequação Nacional e Originalidade Crítica”, em Sequências Brasileiras, p. 31. Para os dados das duas publicações iniciais, em 1991 e 1992, que antecedem a publicação em livro em 1999, ver idem, p. 247.

[xxix] Cf. Schwarz, Duas Meninas, p. 62.

[xxx] Cf. Schwarz, “Sobre Adorno (Entrevista)”, em Martinha versus Lucrécia, p. 48.

[xxxi] Ver Schwarz, “Os Sete Fôlegos de um Livro”, em Sequências Brasileiras, pp. 46-58.

[xxxii] Ver Antonio Candido, “Dialética da Malandragem” [1970], em O Discurso e a Cidade, Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul, 2004, pp. 17-46. Ver também, para desdobramentos das ideias pelo próprio autor [1973/1991], “De Cortiço a Cortiço”, ibidem, pp. 105-29. Sobre as versões em extrato deste ensaio – que data originalmente de 1973 (portanto em continuidade direta de preocupações com o ensaio precedente, de 1970), mas que só obteve publicação na forma integral original em 1991 –, ver Candido, “Nota sobre os Ensaios (Item 4)”, ibidem, p. 282.

[xxxiii] Cf. Schwarz, “Sobre Adorno (Entrevista)”, p. 48.

[xxxiv] “Os seminários discutiam, entre outros, textos do formalismo russo, dos estruturalistas, de Adorno, o Literatura e Revolução, de Trotsky”, narra Schwarz. Para detalhes e a inversão de perspectiva crítica programática e coletivamente estimulada por Candido, ver Schwarz, “Antonio Candido (1918-2017)”, pp. 408-13.

[xxxv] “Notem aqui a inversão contra-hegemônica […]. Agora a tradição ocidental tanto mede a matéria brasileira como é medida por ela, à qual presta contas, o que é novo”. Cf. ibidem, p. 412.

[xxxvi] Ver, por exemplo, o especialmente ilustrativo confronto estabelecido em Roberto Schwarz, “Braço de Ferro sobre Lukács”, em Seja como For, pp. 117-54.

[xxxvii] Devido à ditadura, o ensaio foi publicado originalmente no número de julho de 1970, de Les Temps Modernes. Ver Roberto Schwarz, “Remarques sur la culture et la politique au Brésil, 1964-1969”, Les Temps Modernes, n. 288, Paris, Presses d’Aujourd’hui, jul. 1970, pp. 37-73. Republicado como “Cultura e Política: 1964-1969: Alguns Esquemas”, em O Pai de Família e Outros Estudos, São Paulo, Paz e Terra, 1992, pp. 61-92. Por sinal, o leitor pode ter acesso hoje a um documento de ofício, dos porões do Estado ditatorial, ora publicado sob o título irônico de “Os Bastidores”, por iniciativa do próprio Schwarz. Trata-se do fichamento do ensaio de Les Temps Modernes, realizado em 1972 por um colaborador da polícia política. Ver Schwarz, Seja como For, pp. 11-14.

[xxxviii] Ver, acima, nota 32.

[xxxix] Para não restringir o debate ao caso brasileiro, um exemplo marcante, tanto no âmbito das conquistas formais quanto no da totalização reflexiva, do consórcio com as investigações das ciências sociais e políticas e, por último, do empenho combativo, foi o documentário argentino La Hora de los Hornos (1968), de Fernando E. Solanas e Octavio Getino, realizado na clandestinidade e premiado no IV Festival del Nuovo Cinema, Pesaro, 1968.

[xl] Outro exemplo argentino, contemporâneo e complementar, originado da experiência das artes plásticas e que inclusive interagiu com La Hora de los Hornos, foi a série coletiva e multimídia de intervenções intitulada Tucumán Arde – realizada de agosto a novembro de 1968 por um grupo de cerca de vinte artistas associados a sociólogos do Centro de Investigaciones en Ciencias Sociales e a uma dissidência sindical combativa (CGT de los Argentinos). O processo culminou em duas exposições realizadas nas sedes sindicais de Rosario (3 a 17 de novembro de 1968) e Buenos Aires (fechada abruptamente pelo regime logo após a inauguração, em 25 de novembro de 1968). Para um balanço, detalhes e documentação acerca do projeto Tucumán Arde, ver Ana Longoni & Mariano Mestman, Del Di Tella a “Tucumán Arde”, Buenos Aires, Eudeba, 2010, pp. 178-236; ver também Ana Longoni, Vanguardia y Revolución / Arte e Izquierdas en la Argentina de los Sesenta-setenta, Buenos Aires, Ariel, 2014 [GM]. Agradeço a Gustavo Motta pela sugestão e incorporação, muito oportuna, desta referência ao trabalho.

[xli] Sobre detalhes do projeto a quatro mãos, ver Gustavo Motta, No Fio da Navalha – Diagramas da Arte Brasileira: do ‘Programa Ambiental’ à Economia do Modelo, dissertação de mestrado, São Paulo, Programa de Pós-graduação em Artes Visuais, Escola de Comunicações e Artes (ECA), Universidade de São Paulo (USP), 2011, pp. 169-81, disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27160/tde-13032013-143600/pt-br.php>.

[xlii] Ver Hélio Oiticica, “Special for Antonio Dias’ Project-Book” (6-12/aug./1969 – London) e A. Dias, “Project-Book – 10 Plans for Open Projects”, notas para o álbum Trama (de Antonio Dias), em Antonio Dias, Antonio Dias, textos de Achille Bonito Oliva e Paulo Sergio Duarte, São Paulo, Cosac Naify/APC, 2015, pp. 94-7.

[xliii] Leia-se, nesta chave, o texto de Pedrosa, datado de 1966, “Arte Ambiental, Arte Pós-Moderna, Hélio Oiticica”. Insuflado, sem dúvida, pela desenvoltura épica e de radicalidade experimental com que então se trabalhava nas artes brasileiras, Pedrosa afirmou: “Hoje, em que chegamos ao fim do que se chamou de ‘arte moderna’ (inagurada pelas Demoiselles d´Avignon […]), os critérios de juízo para a apreciação já não são os mesmos […]. Estamos agora em outro ciclo […]. A esse novo ciclo de vocação anti-arte […] (De passagem, digamos aqui que desta vez o Brasil participa dele não como modesto seguidor, mas como precursor. […])”. Cf. Mário Pedrosa, “Arte Ambiental, Arte Pós-Moderna, Hélio Oiticica”, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 26 jun. 1966, republicado em Aracy Amaral (org.), Dos Murais de Portinari aos Espaços de Brasília, São Paulo, Perspectiva, 1981, p. 205; e em Otília Arantes (org.), Acadêmicos e Modernos: Textos Escolhidos, vol. III, São Paulo, Edusp, 1995, p. 355. Ver também Otília Arantes, Mário Pedrosa: Itinerário Crítico, São Paulo, Cosac Naify, 2004.

[xliv] Ver Hélio Oiticica, “Esquema Geral da Nova Objetividade”, Nova Objetividade Brasileira, Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna, de 6 a 30 de abril de 1967, prefácio de Mario Barata, Rio de Janeiro, Gráfica A. Cruz, 1967, p. s.n. Para a republicação desse texto, bem como sobre os escritos de Oiticica relativos às noções de “arte ambiental” e de arte “suprassensorial”, ver idem, Hélio Oiticica/ Museu é o Mundo, org. César Oiticica, catálogo, Rio de Janeiro, Beco do Azougue, 2011.

[xlv] Ver Luiz Renato Martins, “A Nova Figuração como Negação”, Ars, São Paulo, v. 4, n. 8, 2006, pp. 62-71, disponível em: <https://www.revistas.usp.br/ars/article/view/2973/3663>.

[xlvi] Para detalhes sobre as ofensivas de Dias, uma vez instalado na Europa, ver Luiz Renato Martins, “Art Against the Grain”, em The Long Roots of Formalism in Brazil, pp. 73-113.

[xlvii] Ver Antonio Dias, Caderno [Notebook], 1967-69. Para a reprodução em fac-símile das páginas do caderno, com as anotações sobre “arte negativa” e “pintura como crítica de arte”, ver Paulo Miyada (org.), AI-5 50 Anos: Ainda Não Terminou de Acabar, catálogo de mostra homônima, São Paulo, Instituto Tomie Ohtake, 2019, pp. 24-7.

[xlviii] Sobre o movimento de construção de um novo realismo, em resposta ao golpe de 1964, ver Luiz Renato Martins, “Trees of Brazil”, em The Long Roots of Formalism in Brazil, pp. 73-113.

[xlix] Em dezembro de 2018, Davidson veio a São Paulo para ministrar um minicurso no congresso dos estudantes do Programa de Pós-Graduação em História Econômica, na Universidade de São Paulo (USP), no qual resumiu em três palestras os capítulos deste livro.

[l] Ver Walter Benjamin, Tese XIV de “Sobre o Conceito de História”, em Michael Löwy, Walter Benjamin: Aviso de Incêndio, trad. Wanda N. C. Brandt, trad. das teses Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz Müller, São Paulo, Boitempo, 2005, p. 119.

[li] Agradeço muito à revisão afiada de Gustavo Motta.

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