Por MARIA RITA LOUREIRO*
Comentário sobre o livro recém-lançado de Gilberto Bercovici e José Augusto Fontoura Costa
O livro Nacionalização: necessidade e possibilidades pode parecer ultrapassado àqueles que se autodenominam modernos e defendem governantes que propõem tudo privatizar com a justificativa de que iniciativa privada salvará o país da “ineficiência” do Estado. Rejeitando a retórica privatista e a demonização do Estado, nestes tempos de barbárie neoliberal, este pequeno volume tem a ousadia de propor a necessidade da reestatização de setores ou atividades econômicas estratégicas como questão fundamental a ser enfrentada pelo debate público sobre projetos alternativos para o Brasil hoje.
Além de atualizar as análises dos males trazidos ao país pelas privatizações dos anos 1990, retomadas a partir do golpe de 2016, os autores do livro, Gilberto Bercovici e José Augusto Fontoura Costa, professores da Faculdade de Direito da USP, especialistas respectivamente em Direito Econômico e Direito Internacional, trazem uma contribuição nova ao debate, pelo menos para os que não são da área: eles indicam que há possibilidades jurídicas, tanto no Direito Internacional como no Direito Brasileiro, como se indicará a seguir, de contestar as privatizações e reverter este quadro.
Com isso, trazem certa dose de esperança na superação das políticas levadas a cabo por governos conservadores que, mesmo contrariando maiorias políticas, realizaram reformas para garantir “segurança jurídica” aos capitais financeiros que circulam livremente entre diferentes países. A despeito do contexto histórico denominado “de Estado de exceção econômica permanente em que se utilizam as medidas emergenciais a todo momento para salvar os mercados” (pg. 28), o texto aponta possibilidades de romper como processo de “blindagem da constituição financeira”que estabelece regras para impedir qualquer atuação estatal contrária aos interesses econômicos dominantes.
Com base em concepções teóricas críticas ao funcionamento do sistema capitalista internacional e de reflexões sobre a história econômica brasileira, os autores reiteram que a retomada da capacidade de planejar e promover o desenvolvimento por parte do Estado exige que ele recupere sua soberania econômica. Ou seja, sem romper sua subordinação a interesses externos e sem internalizar as decisões mais importantes de políticas econômicas, o país não poderá sair do quadro em que vive hoje de profundo e amplo retrocesso. Portanto, o debate sobre a nacionalização ou reestatização de atividades econômicas estratégicas implica questões decisivas. Envolve a soberania nacional, a necessidade urgente de reindustrialização da economia brasileira e de promoção de políticas urgentes para superar a pobreza e as desigualdades sociais.
Exemplo de decisão econômica soberana do Estado brasileiro e de seu impacto significativo sobre o país pode ser encontrado no marco regulatório do petróleo estabelecido em 2010, no governo Lula, que deu grande poder de decisão à Petrobrás, na exploração das enormes reservas petrolíferas descobertas nas costas brasileiras em 2006. Como se sabe, a descoberta do chamado pré-sal tornou o Brasil detentor de grandes reservas de óleo. E as leis promulgadas em 2010, mesmo contrariando fortes interesses geopolíticos externos e gerando críticas internas, permitiram que a Petrobrás, a maior empresa do país, assumisse posição de destaque entre as grandes petroleiras internacionais. Além disso, este marco regulatório criou também um fundo social para reverter parte das rendas minerais em investimentos na área de educação, saúde, combate à pobreza e em projetos ambientais, garantindo para as gerações futuras os frutos da exploração no presente de recursos finitos.
Infelizmente, tudo isso começou a ser desmontado a partir do governo Temer e a destruição continua a passos largos no governo atual, com as privatizações de refinarias, gasodutos e outros ativos que têm comprometido o papel histórico da Petrobrás de alavanca do desenvolvimento industrial e tecnológico do país. Os avanços regulatórios de 2010 estão sendo destruídos também com a desastrada política de paridade internacional dos preços internos de combustíveis e gás – visando remunerar os acionistas privados nacionais e estrangeiros da Petrobrás.
Cabe relembrar que em 1997, no governo Fernando Henrique Cardoso, a participação acionária da União foi reduzida a 51% e foi ainda autorizado a negociação de ações da Petrobrás na bolsa de Nova York, as chamadas ADRs, submetendo a empresa às regras do mercado de capitais norte-americano. Tais decisões estão ocorrendo em detrimento da massa dos consumidores brasileiros, porque são responsáveis pela retomada da inflação e, em grande parte, pelo trágico agravamento das condições sociais do país nos últimos tempos. Como estudiosos do tema denunciaram recentemente, os lucros de cerca 30 a 40 bilhões gerados pela Petrobrás a cada trimestre vão para o bolso dos acionistas às custas de preços exorbitantes impostos à população.
Relembrar um exemplo de política econômica soberana do Estado brasileiro, interrompida de forma tão nefasta, permite dar atualidade ao tema discutido neste estudo sobre a nacionalização no Brasil. A grande importância do livro está em enfatizar que as privatizações no Brasil foram feitas contrariando dispositivos constitucionais e legais. Ou seja, foram perpetradas com gravíssimas violações do Estado de Democrático de Direito. Por isso, poderão ser revertidas, do ponto de vista jurídico, desde que haja condições políticas para isso. Seus autores têm clareza de que as privatizações não foram realizadas por razões de eficiência técnica, como justificado pela retórica dos privatistas, mas por escolhas e decisões políticas orientadas por interesses econômicos internos e, sobretudo, externos.
No caso da Petrobrás, com a lei aprovada em novembro de 2016, logo no início do governo Temer, várias de suas refinarias e gasodutos começaram a ser vendidos, contrariando o próprio objetivo declarado de redução do endividamento elevando à desestruturação de sua cadeia produtiva, em prejuízo igualmente do objetivo declarado de geração de caixa futura. Além disso, tais vendas ocorreram sem a devida licitação, como exige a lei, e com preços inferiores ao valor de mercado, configurando situação que, segundo os autores, pode ser equiparada ao crime de receptação.
Mais grave ainda, a venda destes ativos da Petrobrás é inconstitucional porque fere artigo 173 parágrafo 4 da Constituição Federal de 1988. Tal processo de venda está levando à formação de monopólios privados, especialmente na área de gasodutos e de sua infraestrutura, o que contraria o fundamento dessa regra constitucional que garante a defesa da concorrência no Brasil. Várias ações judiciais contrárias às decisões já tiveram reconhecidas tais violações, inclusive por parte do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Contas da União, mas infelizmente, sem desfecho definitivo.
Também as privatizações efetuadas no governo de Fernando Henrique Cardoso, em particular, a da Companhia Vale do Rio Doce, têm sido objeto de ações que ainda correm na Justiça brasileira, contestando a legalidade de sua venda. Isso, sem mencionar aquelas movidas pelas vítimas da tragédia humana que levou à morte de dezenas de pessoas em Brumadinho e Mariana, em Minas Gerais, e dos grandes desastres ambientais produzidos pela empresa depois de sua privatização, quando ela passa a se pautar pela lógica da exclusiva maximização do lucro e assim, produzindo tais desastres. Aliás, é preciso ressaltar, quando a empresa era estatal, nunca ocorreram tragédias de tamanhas proporções.
O mais espantoso na questão da ilegalidade e inconstitucionalidade das privatizações, é que o tema não é devidamente divulgado no país, assim como as ações judiciais que as contestam não são noticiadas com destaque nos meios de comunicação. Tampouco os efeitos nefastos das privatizações são debatidos nos espaços públicos, como se esperaria em uma sociedade democrática, com imprensa efetivamente plural, disposta a dar espaço em igualdade de condições aos atores políticos e aos argumentos contraditórios. São poucos os que conhecem, por exemplo, a publicação de 2016 da Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados ou artigos de revistas cientificas que analisam com detalhes as irregularidades jurídicas da venda dos ativos da Petrobrás. Informações estas que estão disponíveis no presente volume.
Por fim, cabe apontar duas lacunas que, uma vez preenchidas, poderiam reforçar as contribuições que os autores trazem à luta política pela reestatização das atividades estatais em setores estratégicos da economia brasileira.
A primeira, de caráter mais estritamente jurídico, refere-se à ausência de dados referentes aos processos que ainda correm nos tribunais do país contra as privatizações, inclusive as ocorridas na década de1990 e à avaliação das perspectivas dos possíveis desdobramentos jurídicos destas ações e de seus potenciais impactos na luta política. O segundo e mais importante aspecto que poderia enriquecer o presente estudo exigiria, eventualmente, a colaboração de outros especialistas. Ele implicaria examinar o peso das forças políticas comprometidas com a luta pela reestatização das atividades econômicas estratégicas, bandeira vista como condição necessária ao desenvolvimento e redução das desigualdades sociais.
Como os próprios autores reconhecem, a contestação judicial das privatizações e a consequente reestatização dependerão do poder de futuros governos democráticos, apoiados por partidos populares fortes, para enfrentar a coalizão dominante hoje, formada por grupos financeiros, empresariais e grande mídia que conta com o apoio decisivo de segmentos da alta burocracia estatal – as elites do sistema de justiça e os militares. Coalizão essa a quem a questão da soberania econômica do Estado brasileiro, infelizmente, não constitui valor a defender nem objetivo político a almejar. Ao contrário, como várias pesquisas têm mostrado, todos esses grupos se alinham incondicionalmente à hegemonia dos Estados Unidos e aos seus interesses geopolíticos, mesmo que em detrimento dos interesses nacionais. Portanto, será uma batalha muito difícil e a dinâmica destas forças é um grande desafio analítico, mas também político.
Obviamente, tais lacunas não comprometem o valor do livro, porque emergiram justamente da análise ora apresentada. Seu grande mérito está justamente em recolocar no debate público a questão da soberania econômica do Estado brasileiro e assim suscitar a necessária reflexão sobre as condições políticas para sua viabilidade.
Maria Rita Loureiro, socióloga, é professora aposentada da FEA-USP e da FGV-SP.
Referência
Gilberto Bercovici & José Augusto Fontoura Costa. Nacionalização: necessidade e possibilidades. São Paulo, Contracorrente, 2021, 100 págs.