Por JEAN MARC VON DER WEID*
É fundamental discutir a afirmação da abundância de petróleo nas próximas décadas, se ela é crível ou não
Estou seriamente preocupado com a inacreditável falta de noção de economistas, especialistas em petróleo e políticos, evidenciada por declarações nos últimos dias, defendendo a exploração de petróleo nas águas territoriais do Amapá. Segundo todos eles, o petróleo ainda vai ser dominante na matriz energética mundial nos próximos 40 a 50 anos e que temos que aproveitar esta riqueza sem restrições “para financiar o desenvolvimento do Brasil e garantir a superação da pobreza”.
Não vale a pena discutir se esta riqueza, se existir e for explorada, terá este papel declarado. O mais importante é discutir a afirmação da abundância de petróleo nas próximas décadas. E porque um eventual (que eu e meio mundo acreditamos ser certo) esgotamento na oferta de petróleo terá um efeito catastrófico para a nossa (e do mundo) economia e população.
Já que a desinformação vem predominando entre os que afirmam que as reservas mundiais garantem a oferta de petróleo por 40 ou 50 anos, vou documentar a minha posição, citando uns quantos personagens profundamente envolvidos nesta indústria.
Em 2003, a Agência Internacional de Energia (AIE) fez esta afirmação agora repetida por muitos aqui no Brasil: não vai faltar petróleo nos próximos 40 anos. Mas o cálculo não levava em conta a crescente demanda por petróleo e, se esta continuasse na média da década anterior, o balanço de oferta e demanda se romperia em 25 anos. Não vou nem discutir que o cálculo também não levava em conta o fato de que as reservas não são exploráveis até a última gota.
Mesmo com altos investimentos e moderníssimas técnicas de extração, 40 a 50 % de retirada da reserva de qualquer poço é um limite físico, econômico e energético. Apenas constato que a previsão, feita em 2003, nos levaria a um pico de produção de petróleo (convencional e não convencional) para o ano de 2028.
Este cálculo não podia levar em conta algo que estava ainda por acontecer: a aumento da produção de petróleo a partir das areias betuminosas (Canadá) e, sobretudo, a explosão da extração a partir de rochas fraturadas para obter o que se chama de petróleo de xisto (EUA). Estas duas novas fontes, somadas a um pouco mais de petróleo obtido no pré-sal, na produção de biocombustíveis e na substituição de gasolina ou diesel por eletricidade em novos modelos de automóveis, adiaram a crise por 10 anos. A produção de petróleo convencional, muito mais barata do que a obtida em águas profundas ou do petróleo não convencional, ficou estancada no seu pico de produção, e começando a cair, de leve, mas regularmente, desde 2008. A demanda crescente de combustíveis foi coberta pelo petróleo não convencional.
Em 2018, a AIE advertiu que os novos poços previstos para entrar em operação representariam a metade do necessário para equilibrar o mercado. Advertiu ainda que era pouco provável que o petróleo de xisto compensasse o déficit, apesar de prever uma oferta dobrada deste último até 2025.
A realidade provou ser pior do que previsto: a produção de petróleo de xisto estagnou em 2019. Em 2020, a AIE, o governo americano e a OPEP apostavam em um crescimento lento da oferta deste tipo de petróleo e uma estabilização em 2025. Em outras palavras, se eram necessários 30 Mb/d de petróleo de xisto para equilibrar o mercado, a oferta deve chegar a um platô de 15 Mb/d.
A demanda em 2025 deverá chegar a 105 Mb/d, ou seja, o déficit de oferta vai ser nada menos de que 14,3%, mas deixemos para discutir mais adiante o que este déficit significará para a economia mundial e a nossa.
Em 2020, a AIE anunciou no seu relatório anual: “é provável que os petroleiros percam seu apetite pelo petróleo mais rapidamente que os consumidores de todo o mundo” e “veremos, em breve, novos ciclos de preços e riscos na segurança energética”.
Em 2018, o banco americano Goldman Sachs anunciou: “haverá, ao longo do decênio 2020/2030, uma evidente falta física de petróleo”.
Em 2018, o PDG da empresa petroleira francesa Total declarou: “depois de 2020 correremos o risco de faltar petróleo”. Em 2020, o mesmo personagem anunciou a previsão de um déficit de 10 Mb/d em 2025. Em 2022, a empresa de inteligência econômica mais respeitada pelos meios industriais, Wood Mackenzie, constatou: “o mundo se dirige para a penúria de abastecimento como um sonâmbulo”. Em 2021, o banco americano JP Morgan anunciou em relatório aos acionistas: “um déficit severo no abastecimento de petróleo se perfila no horizonte, mais rápido do que se imagina”.
O jornal Washington Post publicou em 28 de setembro de 2022 um relatório da agência Bloomberg, apontando para um pico de produção de todos os combustíveis líquidos (petróleo convencional, de areias betuminosas, de xisto, de águas profundas, biocombustíveis, ultra pesados) de 103,2 Mb/d. A produção no final do ano de 2022 alcançou 101,6 Mb/d. ou seja, estamos apenas a 1,6Mb/d de distância do pico, pouco mais de 1,5% da produção mundial atual. E não há sinais de redução da demanda no plano internacional, puxada por Índia, China e Rússia e outros países em desenvolvimento. No mesmo relatório cita-se uma declaração da empresa petroleira inglesa BP, indicando que o pico geral ocorrerá entre 2025 e 2035, o que o próprio artigo qualifica como sendo exageradamente otimista.
Resumindo o citado acima: empresas petroleiras, agências internacionais, empresas especializadas em análise e informação sobre o setor energético (Rystad Energy), governos (EUA, Rússia e até Arábia Saudita) e imprensa estão martelando que o fim da era do petróleo está com os (poucos) dias contados. Os mais otimistas se limitam a dizer que os dias do petróleo barato acabou. Os realistas dizem que é pior do que isso, alcançamos os limites físicos de produção.
A meu ver a discussão sobre o estancamento da produção e a sua data é inútil frente à unanimidade das opiniões apontando para um novo quadro econômico definido por preços de petróleo instáveis e crescentes, tendendo a rapidamente alcançar o patamar crítico dos 150,00 dólares por barril, o nível que lançou a crise de 2008. Os déficits entre oferta e demanda de petróleo, anunciados acima, com previsões de ocorrerem no ano de 2025 (como maior probabilidade) exacerbarão um aumento de preços que tende a começar antes deste acontecimento.
Com este quadro, o que esperar da economia mundial?
Uma profunda recessão combinada com uma brutal inflação. Isto tem a ver com o fato de que o petróleo é o “motor” do crescimento da economia capitalista, desde o início do século passado. Não só 95% do transporte de pessoas e cargas é feito usando derivados do petróleo, como quase todos os setores da indústria dependem deste recurso: o agroalimentar, o de plásticos, a petroquímica, o vestuário, o farmacêutico, a informática, o siderúrgico, … a lista continua e é longa. Tudo que consumimos vai ficar mais caro, não só porque depende do petróleo para ser produzido como depende dele para ser transportado.
Frente a ameaça de preços muito mais altos em curto prazo e de esgotamento da oferta em um prazo apenas um pouco mais largo, a discussão sobre nos afundarmos mais ainda na dependência dos combustíveis fósseis é patética. Deveríamos estar discutindo como substituir gasolina e diesel como matriz energética dos transportes e como poupar o petróleo disponível para uso nas inúmeras indústrias que dele dependem. E discutindo como ir substituindo, onde possível, o petróleo como insumo básico para estas indústrias.
E o que está em jogo, tanto para a Petrobras como para o governo (e oposição), é investir em mais petróleo sabendo-se que é um investimento pesado, bilhões de dólares, com um prazo para entrega, se ela ocorrer, em dez anos, no mínimo.
Por outro lado, o governo se esforça para baixar os preços dos combustíveis, o que significa aumentar o seu emprego, justo quando deveríamos estar limitando o seu uso o mais rápido possível. Para completar o desastre, o governo se propõe a incentivar o uso de carros usando estes mesmos combustíveis em vias de desaparecerem.
Dá para errar mais? Os jornais da semana passada apontam para dados indicando que, nos últimos dois anos, os subsídios para a indústria automotora e seus combustíveis foram três vezes maiores do que os empregados no aumento dos transportes públicos, que trariam uma diminuição da demanda de combustíveis, embora sem os eliminar. Não se trata de um fenômeno recente, mas de uma política sistemática totalmente defasada com a realidade da iminente crise energética, que já vinha sendo apontada como certa, desde o ano 2000 pelos mais avisados.
O Brasil vive um negacionismo absurdo ao não enfrentar a crise desde já. Na verdade, mesmo se adotarmos políticas radicais de substituição dos combustíveis fósseis, ainda seriamos apanhados pela penúria energética nos próximos anos. Se mantivermos a postura que os gringos chamam de “business as usual”, o desastre vai ser ainda maior.
Qual é o impacto mais grave desta postura?
Há vários cenários possíveis, dependendo do que fizer o governo.
Se for adotada uma política de segurar as exportações de petróleo para garantir o transporte interno e mais o uso industrial, poderíamos prolongar a agonia por menos de uma década, já que a Petrobras estima que o pico da nossa produção seria alcançado até 2029, e a produção no nível do pico poderia durar mais alguns anos antes de um esgotamento acelerado.
O problema para adotar esta posição é que a Petrobras não é uma empresa estatal plena. Ela tem ações nas bolsas brasileira e internacionais e a legislação garante os direitos dos acionistas, dos quais perto de 40% são estrangeiros. Por outro lado, uma parte importante da nossa produção nacional é resultado de investimentos de grandes empresas multinacionais ou nacionais (China), que compraram autorgas no pré-sal que vão querer manter o fluxo das exportações.
Se o governo mantiver as coisas como estão o petróleo em território nacional acabará mais rápido e os preços do petróleo vão disparar, lançando uma crise inflacionária pesada que vai ser sentida nos custos de transporte e no custo da alimentação.
O impacto na alimentação será gigantesco. Segundo pesquisas de vários estudiosos de vários países, o agronegócio não é outra coisa do que “petróleo na forma de alimentos”. Estes estudos apontam para um custo energético de 10 calorias de petróleo para cada caloria de alimentos. O petróleo entra nos custos de fertilizantes, de agrotóxicos, do movimento das máquinas agrícolas, do transporte de alimentos e de seu processamento.
Comer vai ser ainda mais dramático para a população do que na situação atual (que já é calamitosa) e não vai haver Bolsa Família que dê conta do estrago. Pelas mesmas razões (o custo elevado dos derivados do petróleo), os preços dos alimentos no mercado internacional estarão nas alturas e o reflexo dos governos de reter as exportações para garantir os mercados internos, já visto em 2008, tornará difícil importar aquilo que não produzimos.
Já toquei no tema das medidas de curto e médio prazo para iniciar o “desmame” da nossa economia da dependência do petróleo em outros artigos. O que quero ressaltar agora é a necessidade de nos prepararmos para a crise alimentar que vai chegar em breve. Já vivemos uma crise atualmente, fruto da natureza da nossa agricultura exportadora, dos custos crescentes da produção interna de alimentos e da insuficiência do abastecimento alimentar da população. Tudo isto vai ficar mais dramático com a crise do petróleo ou da falta de petróleo. A transição para a agroecologia e para a agricultura familiar passa a ser uma imposição no curto prazo.
*Jean Marc von der Weid é ex-presidente da UNE (1969-71). Fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA).
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