Neil Davidson

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Por RAQUEL VARELA*

Palestra em homenagem ao historiador escocês

1.

É uma honra estar aqui, nesta homenagem a Neil Davidson. Estamos num momento muito especial, na luta contra o genocídio em Gaza. No ano passado, em 11 de novembro, tivemos a oportunidade de estar naquela manifestação maravilhosa em Londres, junto a 800 mil pessoas, de todas as idades, de origens religiosas, ateus, e de diferentes partidos e sindicatos. Foi inspirador. E isso tem muito a ver com o que estamos a fazer hoje aqui, nesta homenagem a Neil Davidson.

Provavelmente todos vocês o conhecem como um brilhante historiador marxista, socialista, militante e organizador. Foi também um escritor profundamente erudito: nos seus livros tenta analisar, de uma forma honesta, as hipóteses para explicar o capitalismo, e a transformação das sociedades em direção ao socialismo (ou não). A forma como escreve é a de um intelectual comprometido em tornar os debates compreensíveis para um grande público.

Neil Davidson manejou muito bem não apenas a história social clássica, mas também as suas relações com as artes, com a cultura, etc. Ele inspira-se enormemente no marxismo clássico, em Marx e Engels, em Trotsky, em Rosa Luxemburgo, em Gramsci, sublinharei também em Walter Benjamin e em Lukács. Ele pertence a esse grupo de intelectuais marxistas e socialistas que tentam compreender e explicar com a sociedade como um todo e de uma forma não dogmática.

2.

Quero falar-vos hoje de um livro que foi publicado em português no Brasil, onde Neil Davidson deu um curso sobre desenvolvimento desigual e combinado, que resultaram na edição que hoje vos trago aqui. Luís Renato Martins reuniu essas reflexões de Neil numa coleção chamada Desenvolvimento Desigual e Combinado: Modernidade, Modernismo e Revolução Permanente. Ricardo Antunes escreveu o prefácio do livro, Roberto della Santa, meu marido e parceiro intelectual, apresentou-me este livro.

A teoria do desenvolvimento desigual e combinado foi desenvolvida pela primeira geração de marxistas. Eles sempre trataram da questão dos diferentes desenvolvimentos entre os países, e de como os socialistas lidariam com isso. Trotsky, preocupado com a situação russa, sublinhou a questão do desenvolvimento combinado. Não apenas o desenvolvimento desigual, mas o desenvolvimento combinado. A ideia principal, se me permitem ser muito simples, talvez demasiado simples, era que os países que não fossem tão desenvolvidos como os países centrais do capitalismo não precisariam de passar pelas mesmas fases de desenvolvimento que os países capitalistas centrais para atingirem determinada fase onde a revolução socialista seria possível. Então, a ideia principal é que o mercado mundial e o capitalismo traziam para os países atrasados elementos extremamente desenvolvidos nos países mais periféricos.

Posso dar-vos um exemplo concreto da relação entre Portugal, de onde venho, e Inglaterra. Portugal sempre foi uma país semiperiférico, uma espécie de protetorado da Grã-Bretanha no que diz respeito à economia. A transição ao capitalismo em Portugal é um produto inglês – bancos, investimento, máquinas e saber da Inglaterra. A famosa teoria de David Ricardo – das vantagens comparativas – foi elaborada a partir do intercâmbio desigual entre Portugal e Inglaterra no que diz respeito ao comércio de panos/têxteis e ao vinho.

A ideia era que Portugal se especializasse na exportação de vinho porque o faz mais barato, e em troca comprariam têxteis de Inglaterra. Esta teoria da vantagem comparativas é uma teoria imperialista, não tem nenhuma racionalidade económica além da rentabilidade dos países centrais, e tem as consequências mais terríveis: 40 milhões de pessoas passam hoje fome no Brasil, que é o maior exportador de soja que alimenta a carne consumida nos países centrais. A terra não está a produzir o que as pessoas precisam, está a produzir o que é mais rentável (lucrativo) para os investidores que dominam o mercado mundial.
Mas, e as vantagens do atraso…? Portugal em 1870 iniciou a organização das classes trabalhadoras, influenciadas pela Comuna de Paris, e com líderes operários portugueses que passaram por Paris, como recordamos no nosso livro Breve História de Portugal (Bertrand). Eles viveram e experimentaram, diretamente ou por influência, as revoluções de 1830 e 1848, a fundação da Primeira Internacional em 1864 e depois a Comuna de Paris. Assim, em Portugal, que era um país extremamente atrasado, com a maioria da população rural trabalhando como camponesa, mais de 80 por cento da população da época era analfabeta.

Os trabalhadores operários, artesãos e urbanos inspiraram-se imediatamente na Comuna de Paris e criaram uma filial da Primeira Internacional, a Fraternidade Operária, que teve um enorme impacto na organização dos trabalhadores, e contribui para Portugal tornar-se num dos principais países do final do século XIX no campo sindicalismo revolucionário, juntamente com a França, com a Espanha, também os EUA.

Há exemplos que são mais conhecidos mundialmente e que o Neil Davidson desenvolve – é o exemplo da Rússia, que do ponto de vista do Estado era um dos países atrasados, era o império mais “oriental” na Europa. É muito interessante dizê-lo agora porque parece que a Rússia já não pertence à Europa, do ponto de vista da União Europeia e da OTAN, o que é obviamente muito ridículo de todos os pontos de vista, seja geográfico, político ou qualquer outro. Mas era claro, na altura, que a Rússia fazia e faz parte da Europa, mas tinha uma espécie de Estado oriental. Um estado repressivo czarista brutal.

Ao mesmo tempo, tinha um dos proletariados mais concentrados e desenvolvidos do mundo, com a produção industrial altamente concentrada em São Petersburgo, Moscovo e na região dos Urais. Então, como tudo isto se combina para fazer a primeira revolução social depois da Comuna de Paris, que toma com sucesso o poder, em 1917? A dialética de como fatos avançados e atrasados, qualidades distintas, se combinam num país vai ser usada por Neil Davidson para nos levar a uma hipótese analítica contemporânea da revolução, com destaque para o papel do proletariado chinês. Como podemos pensar hoje em dia sobre o desenvolvimento desigual e combinado? E especialmente no que diz respeito a um país: o que se passa na China e como pode a China ajudar-nos a compreender se isto faz sentido ou não? São estas perguntas essenciais do seu livro.

Digamos que Neil Davidson debate com diferentes hipóteses de desenvolvimento desigual e combinado e sublinha a ideia de que a questão do desenvolvimento desigual e combinado não é um método de análise específico ou característico da modernidade (e há um debate no livro sobre a questão do se pudemos equiparar modernidade e capitalismo – na sua opinião, não).

Quando ainda existem partes do pré-capitalismo no capitalismo, quando existem formas de desenvolvimento atrasado dentro das sociedades mais avançadas, encontramos abertas as contradições que permitem uma revolução socialista, que não depende diretamente do desenvolvimento desigual e combinado – esta é uma condição de análise. A revolução socialista depende sobretudo de factores subjectivos da organização da classe trabalhadora, da qualidade da direcção, etc.

3.

Assim, são extremamente interessantes as suas observações sobre a China onde defende que, em primeiro lugar, a China tem o maior proletariado do mundo e viveu uma transformação dramática e drástica dos camponeses em trabalhadores no processo de migração do campo para a cidade e para as fábricas. A segunda nota são as formas de resistência desses trabalhadores. Assim, inspirado em muitas obras contemporâneas sobre a conflitualidade social na China, ele sublinha o nível das lutas da classe trabalhadora na China.

Recordo algo que aconteceu após a sua trágica morte, ele não estava aqui para vivenciar, que durante o último confinamento na China, e no último Natal, os trabalhadores da Foxcon numa greve auto-organizada numa semana, e protestos, centenas de milhares, fizeram cair o confinamento imposto durante a Covid 19 durante três anos. Eles perceberam que estavam confinados porque havia uma grande demanda por iPhones no mercado mundial, e o confinamento era uma desculpa para obrigá-los a permanecer na fábrica e trabalhar noite e dia, noite e dia. Houve uma revolta na Foxconn, que se espalhou para outras fábricas na China, e estas medidas bonapartistas – que alegadamente foram usadas como medida de saúde pública –, mas estavam de facto a ser usadas para reprimir a organização dos trabalhadores na China, caíram.

O governo chinês foi obrigado a pôr fim às restrições de confinamento, e tudo isto começou numa greve massiva organizada principalmente por trabalhadores precários. Portanto, não se tratava dos trabalhadores permanentes da Foxconn, mas dos trabalhadores que foram recrutados para atender às altas demandas de venda de iPhones de Natal. Este é apenas um exemplo. Depois disso o governo chinês nunca mais utilizou os confinamentos para proibir greves ou obrigar os trabalhadores a ficar nas fábricas.
Isto é apenas um exemplo de como o movimento de resistência na China pode atingir níveis enormes que nem sequer conhecemos. Entre 2008 e 2010, a China foi o país em todo o mundo com mais greves e, depois destas greves, os salários aumentaram cerca de 25 por cento. Isto teve impacto nos países europeus e ocidentais, porque toda a reestruturação laboral na década de 1970, e especialmente após a derrota da greve dos mineiros e outras greves na Europa na década de 1980, baseou-se na ideia de que o fornecimento dos bens que reproduzir as classes trabalhadoras seria feita com trabalhadores extremamente baratos da China.

Então, as roupas que a classe trabalhadora usa na Europa, os utensílios de cozinha ou mesmo a simples máquina de lavar doméstica, todo esse tipo de coisas que são o consumo das classes trabalhadoras – porque as classes trabalhadoras consomem estes bens, não mais, as classes trabalhadoras gastam a maior parte do seu dinheiro em habitação, alimentação e neste tipo de produtos essenciais à reprodução da força de trabalho. É claro que o preço destes bens aumentou na Europa com o aumento do salário na China, o que contribuiu para a pauperização das classes trabalhadoras na Europa.

Apenas para mostrar como a socialização da produção mundial que existe hoje, que tem a enorme contradição da apropriação privada desta socialização, faz com que todos os trabalhadores do mundo se enredem de certa forma. Emaranhamento é uma boa palavra, é como se o que acontece na China tivesse impacto aqui imediatamente, o que acontece aqui tivesse impacto na China. Vivemos num mundo onde a produção just-in-time e a deslocalização tornaram as empresas, em princípio, muito fortes – porque podem explorar a migração e os refugiados para reduzir salários –, mas ao mesmo tempo tem um enorme potencial, se a classe trabalhadora se organizar mundialmente, são aquilo que chamo os “pontos francos do capitalismo forte”. Só na aparência é forte, o seu estado moribundo não se releva só nas guerras, mas na fragilidade das suas cadeiras de produção e na força dos trabalhadores do mundo, em potência (dependendo claro da sua capacidade de organização e coordenação internacionais).

4.

Há alguns anos houve uma greve no Brasil que parou a produção de uma parte da indústria automobilística nos EUA, porque havia um pedacinho da cadeia que era construído no Brasil; e hoje em dia, de facto, isto está a acontecer em todo o mundo e o maior problema, claro, é que não existe nenhuma organização da classe trabalhadora capaz de organizar isto. Na verdade, existem organizações de trabalhadores e organizações sindicais que têm um poder enorme, mas são sindicatos altamente burocráticos, e usam a sua organização para fazer caridade, para fazer todo o tipo de assistência, mas não para organizar os trabalhadores em todo o mundo no sentido da luta. Portanto, o problema não é apenas que não temos organização, os sindicatos de hoje em dia, como a ITF, que é a Federação Internacional dos Trabalhadores dos Transportes, poderiam fazer isso muito facilmente a qualquer momento.

Uma vez estive envolvida numa greve de estivadores onde os estivadores na Dinamarca, entre outros, bloquearam os contentores carregados pelo trabalho precário em Lisboa e isso foi suficiente para os trabalhadores portugueses ganharem a greve, apenas por causa de um bloqueio na Dinamarca e outros países da Europa – apenas duas horas de bloqueio. Portanto, as portencialidades são enormes, por isso é tão importante estudar as desigualdades no desenvolvimento combinado, não apenas por causa da diferença entre os países, mas pela relação entre os países. E Neil Davidson fez isso na sua vida de estudo e militância.

Sublinharei também a última observação sobre a China feita por Neil, que abre a possibilidade de uma situação revolucionária na China – é o nível de repressão estatal. Então, por um lado temos um proletariado enorme, por outro temos lutas muito importantes e por outro temos uma repressão enorme. Temos um Estado que basicamente reprime os trabalhadores. Nessas contradições, Neil vê, mais uma vez não é uma conclusão dogmática, possibilidades concretas de uma revolução social.

Quero também dizer algo que considero muito importante, uma coisa que considero fascinante. Neil Davidson, no estudo sobre as revoluções burguesas, defende que as contrarrevoluções na Rússia (com Stalin) e na China terminaram o que as revoluções burguesas não conseguiram, a transição ao capitalismo.
Quase por último, quero salientar o seguinte. A noção de desenvolvimento desigual e combinado que é assinalada com mais frequência faz uma abordagem linear ao desenvolvimento desigual e combinado que diz: vejam, os países atrasados podem ter as ferramentas mais desenvolvidas dos países avançados para fazer a revolução. É sempre de uma forma positiva.

Quero sublinhar o lado negativo, que é o facto de não ter sido apenas a derrota da Revolução alemã que tornou possível a Stalin conquistar o poder. Quando Estaline chegou ao poder, o atraso da União Soviética também teve impacto nos países ocidentais. Então, normalmente, sublinhamos o quão importante foi a derrota da Revolução Alemã para a derrota do socialismo e dos bolcheviques na Rússia, e esquecemos não apenas como o atraso pode ter o melhor do desenvolvimento, esquecemos que às vezes a história joga muito com nós.

Os países mais desenvolvidos também respiram o atraso: o impacto do estalinismo nos partidos comunistas e na organização dos trabalhadores nos países mais desenvolvidos foi devastador. O movimento não foi apenas um movimento em direção ao desenvolvimento, foi um movimento em direção à regressão, e acho que isso é algo que deveríamos explorar mais quando pensamos nas sociedades de hoje. A contribuição de Neil Davidson é absolutamente essencial e é incrivelmente viva e não dogmática.

5.

Vou terminar do seguinte modo, resgatando o melhor que a nossa tradição da Oposição de Esquerda (não deveríamos hoje estar todos unidos, em debate aberto, sem acordos, mas debaixo desta bandeira Oposição de Esquerda?). A noção de revolução permanente, não é apenas a revolução democrática que se transforma em revolução social, é a revolução nacional que se transforma em revolução internacional, e é – muito esquecida esta terceira dimensão – uma revolução total no modo de vida.

Trotsky foi muito fiel à ideia de que o socialismo não é apenas mudar a produção ou a propriedade, trata-se de mudar todo um modo de vida. E eu acho que onde Neil Davidson é inspirado por Rosa Luxemburgo, por György Lukács e por Antonio Gramsci, ele também está trazendo a melhor tradição do marxismo mais crítico de Trotsky ou do marxismo revolucionário, que é quando falamos sobre revolução, falamos sobre toda a transformação do género humano, incluindo a nossa subjetividade.

*Raquel Varela é professora de história na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Autora, entre outros livros, de Breve história da Europa (Bertrand). [https://amzn.to/3I1EOFs]


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