Por JOSÉ GERALDO COUTO*
Comentário sobre o filme, vencedor do Oscar, dirigido por Chloé Zhao.
A saga da cinquentona Fern (Frances McDormand), que transforma sua van em residência rodante depois que sua cidade literalmente desaparece do mapa, tem o dom de unir duas coisas: um olhar sobre a América contemporânea, com sua crise social, de emprego e moradia, e uma revisão crítica da mitologia do desbravamento, da busca incessante de uma liberdade sem cercas e sem fronteiras. Aliás, três coisas, porque há também, e principalmente, uma reflexão sobre a passagem do tempo e seus efeitos sobre os indivíduos.
Quem viu os filmes anteriores de Chloé Zhao (As canções que meu irmão me ensinou e Domando o destino) sabe como é cara à diretora de origem chinesa a paisagem do Oeste, com suas pradarias, vales, desertos, horizontes sem fim. Mas é uma contemplação tingida de melancolia e lastreada por uma visão crítica da história que se desenvolveu em torno desses locais.
Num diálogo crucial em que parentes questionam a vida nômade de Fern, a irmã da protagonista tenta dourar um pouco a amarga pílula: “O que ela faz não é diferente do que os pioneiros faziam. Acho que Fern é parte de uma tradição americana”.
Só que os desbravadores de dois séculos atrás estavam em busca de um novo mundo pleno de potencialidades, partiam em caravanas para fundar a terra prometida, e as legiões atuais de nômades em suas vans, trailers e motor-homes já não esperam nem sonham com mais nada, só querem viver um dia depois do outro, perto da natureza e longe das dívidas, violências e opressões da vida urbana. É significativo que esses novos nômades morem em seus carros. Sem emprego, sem casa, sem dinheiro e sem família, o que restou foi o automóvel. É o denominador comum, o ponto zero da América.
Claro que isso é uma generalização defeituosa, mas baseada em grande parte no recorte apresentado pelo filme. A maioria dos indivíduos com quem Fern cruza em seu caminho são idosos ou de meia-idade, em geral desempregados, aposentados ou vivendo de empregos temporários, como ela própria, que trabalha de empacotadora, garçonete, balconista, zeladora de acampamento, etc.
Temas contemporâneos e urgentes, como a precarização do emprego, a ausência de um sistema público de previdência e saúde, as dificuldades de moradia e o poder opressivo dos bancos estão presentes com toda a clareza, mas não parece ser essa a única nem a principal motivação da diretora. Seu foco está nos personagens, em especial na protagonista, claro, de quem a câmera não se distancia nem por um momento.
Lacônica, prática, firme, oscilando entre a dureza e o afeto, Fern carrega em si o peso dos anos de batalha, dos sonhos desfeitos, das pedras e perdas do caminho. Seu rosto é um inventário de dores e, em menor grau, de alegrias. Difícil imaginar uma atriz mais talhada para o papel que Frances McDormand.
Em dois dos raros momentos em que se permite baixar a guarda, a personagem deixa que Shakespeare fale por ela: quando encontra uma menina que foi sua aluna e confere que ela ainda se lembra de uma fala poderosa de Macbeth (“Out, out, brief candle…”) e quando cita de cor o célebre soneto 18 (“Shall I compare thee to a summer’s day?”) para que um rapaz mochileiro o transcreva numa carta à namorada. Em ambos os casos, trata-se de reflexões sobre a brevidade da vida. Todo o esforço da protagonista é para que o que foi vivido não se perca, que seja preservado na memória. “Aquilo que é lembrado vive”, diz ela a certa altura.
Os personagens à sua volta são igualmente ricos dessa densidade de existência vivida, com destaque para a solitária Swankie (Charlene Swankie), que aos 75 anos, com uma doença terminal, recusa-se a ir a um hospital, preferindo seguir na estrada, buscando a cada dia junto à natureza momentos de plenitude como os que viveu num penhasco à beira de um lago, onde centenas de andorinhas faziam seus ninhos. A vida é bela para quem está aqui de passagem – e quem não está?
Há um certo espírito de comunidade hippie revivido por esses veteranos da estrada e reforçado pela presença de um líder, Bob Wells (personagem real fazendo seu próprio papel). Com sua longa barba branca e sua expressão carismática, Wells parece um profeta ou um guru, mas um profeta ou guru de pés no chão, sem promessas de redenção e transcendência que não sejam a fraternidade ativa e a vida de cada dia.
É significativo que, em meio a essas estradas desertas, cidades fantasmas, acampamentos empoeirados e horizontes sem fim, vejamos de repente um gigantesco galpão da Amazon, em que Fern e dezenas de outros anônimos empacotam maquinalmente milhares de produtos por dia. É como um pesadelo kafkiano que resume a alienação e desumanização do capitalismo pós-industrial de nossa época. O consumo remoto corporificado em espaço físico.
Chloé Zhao tem a aguda percepção dos espaços e de seu significado ao mesmo tempo humano e cósmico. A paisagem – seja ela um deserto, uma montanha, um labirinto de rochas calcárias ou uma falésia à beira-mar – nunca é mero pano de fundo, mas parece interagir com o estado de espírito dos personagens, falar com eles, e por tabela conosco também. Um plano sintetiza, de certa forma, a sua forma de encarar a natureza. É aquele em que Fern contempla a paisagem através do buraco de uma pedra que lhe foi dada pelo amigo Dave (David Strathairn): o mundo natural emoldurado pelo gesto humano.
Chega a ser surpreendente que essa moça tenha vindo do outro lado do planeta para redescobrir a América (suas contradições, sua história trágica e bela) e revelá-la aos próprios americanos. Mas foi isso, nem mais, nem menos, que Chloé Zhao aprontou.
*José Geraldo Couto é crítico de cinema. Autor, entre outros livros, de André Breton (Brasiliense).
Publicado originalmente no BLOG DO CINEMA
Referência
Nomadland
Estados Unidos, 2020, 108 minutos.
Direção e roteiro: Chloé Zhao.
Elenco: Frances McDormand, Patricia Grier, Gay DeForest, David Strathairn, Melissa Smith.