Novo mundo: metamorfoses da colonização

LEDA CATUNDA, Copafamily, 2020, acrílica s/ tecido e veludo, 88 x 252 cm
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Por JOÃO QUARTIM DE MORAES & LIGIA OSORIO SILVA*

Introdução dos autores ao livro recém-lançado.

Procuramos neste livro desenvolver um recorte inovador sobre a conquista e a colonização europeia do Novo Mundo, consideradas na pluralidade de seus aspectos e suas dimensões, bem como no complexo de suas consequências históricas. Sem pretender temerariamente ter levado em conta tudo o que importava na vastíssima bibliografia internacional que se acumulou em torno das questões centrais de que tratamos (o esforço de síntese é sempre aproximativo), apresentamos novos dados e pontos de vista complementares que poderão contribuir para aprofundar a compreensão concreta e abrangente da densa trama dos fatos formadores das sociedades de nosso continente e das construções ideológicas que sobre eles incidiram.

A qualidade do estudo histórico das ideias e doutrinas depende não somente da relevância das fontes identificadas, mas também do acesso direto a elas. Por isso, aplicamos o critério de ler e analisar os textos no original; quando excepcionalmente servimo-nos de traduções, indicamos em nota. A interpretação dessas fontes exige um difícil equilíbrio entre a objetividade histórica e a avaliação de seu significado intelectual, cultural e moral, que envolve inevitavelmente juízos de valor. O exemplo mais evidente é a escravidão. Não é possível ficar neutro no debate opondo os que a defendiam e os que a condenavam. Mas cairíamos num moralismo anacrônico se condenássemos “in limine” aqueles que no século XVI a aceitaram como inelutável, buscando somente atenuar seus males. Somente nas últimas décadas do século XVIII se afirmou na Inglaterra um movimento de opinião organizado na Anti-Slavery Society, que desenvolveu persistente propaganda, conseguindo fazer o Parlamento proibir o tráfico de africanos em 1807.

O horizonte histórico dos estudos aqui reunidos se estende do século XV (primeiras grandes navegações pela costa africana) até o XIX (colonização moderna nos Estados Unidos e no Brasil). Os temas centrais dos três primeiros capítulos inscrevem-se num arco de tempo que recobre as primeiras décadas do século XVI. Os dois últimos capítulos estudam as questões da colonização e da apropriação da terra tais como se configuraram com a concepção burguesa da propriedade, teorizada por John Locke no final do século XVII e concretizada nos dois séculos seguintes, principalmente nos Estados Unidos.

Embora distintas, essas perspectivas são convergentes e complementares. Elas descortinam momentos decisivos da colonização do Novo Mundo, articulando-os, em cada situação histórica concreta, às imagens contraditórias do indígena na cultura europeia. Na metrópole espanhola, os debates sobre os indígenas suscitaram longas e ásperas controvérsias teológicas, jurídicas e políticas. Além dos célebres relatos de Bartolomeu de Las Casas denunciando “a destruição das Índias”, o grande marco doutrinário da defesa dos povos originários está na Relectio de Indis de Francisco de Vitoria, fundador da Segunda Escolástica. Mas tampouco faltavam detratores como o helenista Juan Ginés de Sepúlveda, que usou seu conhecimento da Política aristotélica para justificar a escravização das populações subjugadas.

Insistimos nas surpresas e estranhezas recíprocas dos primeiros encontros entre os descobertos e os descobridores. Embora estes não tivessem nenhuma ideia precisa a respeito do ramo até então isolado da espécie humana que encontraram ao desembarcar nas ilhas do Caribe, o “dossiê mental” de Colombo estava preparado para classificar de índios todos os habitantes das terras que porventura encontrasse. Esse “dossiê” continha a memória coletiva de múltiplos relatos, alguns puramente imaginários, sobre paraísos terrestres e viagens fantásticas novo mundo: metamorfoses da colonização a ilhas edênicas, outros inspirados em notícias com possível fundo de verdade, ainda que um tanto nebulosas, como as viagens de fenícios às ilhas Canárias, ou mais consistentes, como as que os vikings instalados na Groenlândia fizeram no norte do Canadá atual. Ao passo que os indígenas do Novo Mundo, objeto da descoberta, só podiam recorrer ao puro imaginário mítico para exorcizar seu espanto.

Os descobridores, a começar de Colombo, pensaram discernir, na exuberância da flora e da fauna, na ingênua singeleza dos usos e costumes e nas condições comunitárias de existência dos indígenas do Caribe e do Brasil, os indícios de um jardim edênico. Ou pelo menos de uma natureza extremamente fértil, como assegurou Pero Vaz de Caminha na célebre carta de 1o de maio de 1500 que enviou ao rei Dom Manuel. Informando não haverem encontrado ainda ouro, prata, metal ou ferro; assegura que “a terra em si é de muito bons ares”, que “águas são muitas; infindas”, de modo que, “querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”.

Na França, a imagem desse ramo até então desconhecido da espécie humana proveio dos relatos do católico André Thévet e do calvinista Jean de Léry, que estiveram no Brasil durante a efêmera tentativa de fundação da França Antártica (1555-1560). Eles inspiraram as reflexões de Montaigne, como mostramos no item 1 do quarto capítulo, bem como o elogio da vida simples e virtuosa, próxima da natureza, que encontramos nos filósofos e utopistas do século das Luzes, nomeadamente Diderot, Voltaire, Rousseau, Morelly.

Protagonistas do primeiro século da descoberta e da ocupação europeia do Novo Mundo, Espanha e Portugal se apossaram de imensos territórios, que ocuparam em ritmos e dimensões diferentes. Enquanto os estabelecimentos portugueses permaneceram principalmente nas regiões litorâneas da “terra brasilis”, progredindo lentamente para o interior, a conquista espanhola, iniciada nas ilhas caraíbas, expandiu-se ao influxo da busca de metais preciosos. Duas décadas após o desembarque de Colombo na ilha que ele chamou Hispaniola (onde hoje estão as Repúblicas de São Domingos e de Haiti), seus habitantes, bem como os que viviam na ilha vizinha de Cuba, haviam sido quase exterminados. O desastre populacional ampliou-se pela conquista do Estado asteca por Hernán Cortés, em 1521, e do inca por Francisco Pizarro, em 1532.

A fulminante queda demográfica das populações agredidas se explica pelo efeito combinado dos massacres, da brutal exploração a que foram submetidos os remanescentes e das doenças transmitidas pelos vírus e bactérias trazidos da Europa, contra os quais os indígenas não dispunham de anticorpos. No capítulo I, item 6, examinamos os dados e as avaliações a respeito dos pesos relativos desses fatores no colapso populacional dos povos originários.

A responsabilidade da atitude adotada pela metrópole espanhola perante o trágico destino dos indígenas foi e continua sendo objeto de múltiplas polêmicas. Deixando de lado os argumentos que fazem apelo a preconceitos nacionais ou a generalidades nebulosas, por exemplo, à psicologia dos povos, consagramos o segundo capítulo, “O fundamentalismo imperial e a cultura renascentista”, às condições históricas da formação do Estado espanhol ao longo dos últimos séculos da “Reconquista”, mostrando a completa oposição na atitude de dois grandes reis castelhanos perante a religião. Em 1077, o rei Afonso VI de Castela e Leão se proclamou “Imperator totius Hispaniae” e “rei das duas religiões”, isto é, dos cristãos e dos islamitas. Pretendia reconquistar toda a Espanha levando positivamente em conta a diversidade religiosa e cultural dos povos ibéricos. Sua tolerância era pragmática, mas ampla, abrangendo também a terceira religião: com efeito, ele ab-rogou as discriminações contra os judeus que remontavam aos velhos códigos dos visigodos. Quatrocentos anos depois, em 1o de novembro de 1478, Isabel de Castela e Fernando de Aragão, “los reyes católicos”, suprimiram aquela antiga tradição de tolerância, institucionalizando os sinistros tribunais da Inquisição.

Católica fundamentalista, guiada pela personalidade carismática do cardeal Cisneros, seu conselheiro e confessor, a rainha de Castela considerava suas responsabilidades religiosas inseparáveis dos interesses do Estado espanhol, politicamente unificado por seu casamento com o rei de Aragão. O ano de 1492 marcou a concretização de suas maiores ambições. Em 2 de janeiro, ela entrou triunfalmente em Granada, último bastião islâmico em terras ibéricas; instalada no palácio de Alhambra, ela assinou, em 31 de março, o decreto de erradicação sumária do judaísmo; em 3 de agosto, Colombo, cuja expedição ela patrocinara, zarpou de Palos, navegando a oeste rumo “às Índias”; em 12 de outubro, ele desembarcou numa ilha do arquipélago das Bahamas, dando início ao que se tornaria o maior império colonial do século XVI.

Regente do reino de Castela após a morte de Isabel em 1504, o cardeal Cisneros personificou as singularidades do catolicismo imperial espanhol. Ambicionava reformar a Igreja, não somente combatendo o relaxamento dos costumes, mas também mobilizando a erudição renascentista para promover o retorno às fontes do cristianismo originário. Nesse intuito, como mostramos no item 4 do segundo capítulo, ele patrocinou o grandioso projeto da Bíblia Poliglota, primeira edição completa do texto original das Escrituras, reunindo na Universidade de Alcalá de Henares, que ele fundara, uma equipe de especialistas nas línguas originais dos textos bíblicos: grego, hebreu e aramaico. A obra permanece entre as mais importantes produções editoriais da época renascentista, quando se generalizava, cerca de 60 anos após sua invenção, a utilização da imprensa de tipos móveis.

Não obstante, enquanto movimento cultural de amplas e multiformes dimensões, o Renascimento não encontrou na Península Ibérica terreno propício para florescer, diferentemente do que ocorreu na França, nos Países Baixos, na Alemanha e na Inglaterra, onde ele se expandiu criativamente a partir do paradigma italiano. Nessa constatação baseiam- -se as interpretações da história da América Latina que atribuem a origem de suas mazelas políticas e debilidades econômicas aos efeitos culturais da intolerância religiosa imperante nas metrópoles ibéricas. Dois desses efeitos seriam especialmente paralisantes: considerar o trabalho uma maldição e professar uma fé que inibe a indagação intelectual. Via de regra ideologicamente saturadas, essas interpretações costumam comparar pejorativamente a colonização ibérica à colonização britânica e o catolicismo ao protestantismo.

Foge a nosso escopo entrar nessa polêmica. Mas nos ocupamos do complexo de seus pressupostos históricos nos três capítulos centrais do livro (do segundo ao quarto). Neles mostramos, sempre baseados na análise direta dos principais textos ibéricos e britânicos contemporâneos da colonização do Novo Mundo, que os principais autores espanhóis do século XVI reconheceram os direitos dos indígenas, em contraste com John Locke, o grande fundador da doutrina liberal, para o qual a garantia da propriedade é a razão de ser da ordem política (“Commonwealth”), mas o que legitima a propriedade é seu uso produtivo (“improvement”), do qual os indígenas não seriam capazes. Ele também contribuiu para incluir na constituição da colônia da Carolina (1669) a garantia, a “todo homem livre” lá estabelecido, de “absoluto poder e autoridade sobre seus escravos negros”.

É forte o contraste entre essa absolutização da propriedade dos colonizadores e a doutrina enunciada um século e meio antes por Francisco de Vitoria, o grande iniciador da Segunda Escolástica ibérica. Em suas Relectiones de Indis (1532), ele analisou com critérios teológicos, filosóficos e jurídicos os principais argumentos que pretendiam justificar a conquista e a colonização do Novo Mundo, mostrando por que alguns deles (que violavam os direitos dos povos indígenas) eram ilegítimos. Por si só, essa distinção implicava uma limitação doutrinária dos poderes que cabia ao Imperador exercer. Carlos V reagiu, censurando a difusão das aulas de Vitoria. Mas, na trilha de Cisneros, que acolhera as denúncias de Bartolomeu de Las Casas sobre as atrocidades cometidas pelos conquistadores, nomeando-o “protetor dos índios”, o imperador promulgou em novembro de 1542 as “Leis Novas”, que restringiam as “encomiendas” e proibiam a escravização dos indígenas.

Referindo-se com desabusada ironia à necessidade de medidas que protegessem os autóctones da sanha de seus compatriotas, Hernán Cortés, que conquistara o México em nome do imperador Carlos V, comentou que “a maioria da gente espanhola que aqui vem é de baixa maneira, fortes e viciosos de diversos vícios e pecados; se a esses tais se lhes desse livre licença para andar pelas aldeias dos índios, antes por nossos pecados novo mundo: metamorfoses da colonização se converteriam eles a seus vícios do que os atrairiam à virtude”. Ele próprio, entretanto, mandou torturar Cuauhtémoc, o último monarca (“tlatoani”) asteca, para que este revelasse onde estariam escondidos os tesouros acumulados por seus predecessores. A insaciável sede de ouro não afetava apenas os de “baixa maneira”. Era generalizada a hostilidade da “gente espanhola” a qualquer legislação que restringisse os meios de enriquecimento rápido.

A aplicação das “Leis Novas” foi eficazmente sabotada. Nomeado bispo de Chiapas em 1544, Las Casas não tardou a ser constrangido a renunciar ao cargo e a retornar à Espanha. Não renunciou, entretanto, à defesa das populações subjugadas. Em 1550 e 1551, ele foi o grande protagonista dos debates travados em Valladolid perante uma junta de ilustres teólogos e juristas convocados por Carlos V, defendendo convincentemente a causa dos indígenas contra o helenista Juan Ginés de Sepúlveda, que os considerava “escravos por natureza”.

Descrevemos em grandes traços no capítulo I, item 2, como, para compensar o rápido e brutal despovoamento provocado pela conquista das ilhas de Hispaniola e de Cuba, bem como para contornar a oposição de teólogos e missionários católicos à escravização dos indígenas, os colonizadores foram autorizados pela Coroa espanhola a aplicar no Novo Mundo a solução adotada pelos portugueses nas ilhas atlânticas que eles tinham ocupado ao longo do século XV: empregar escravos africanos como mão de obra nas plantações de cana-de-açúcar. A escala crescente da produção nas grandes plantações tornava rentável aprovisionar-se pelo tráfico negreiro.

Embora as leis coloniais proibissem a escravização dos indígenas, a corveia das minas persistiu notadamente no México e no Peru, onde a exploração das minas argentíferas de Potosí, encravadas nos Andes a mais de quatro mil metros de altura, foi um tétrico sorvedouro de vidas humanas. No final do século XVI, saía daquelas minas a maior produção mundial de prata; os conquistadores, reconhecendo o enorme volume de riquezas que iam encher seus cofres, conferiram a Potosí o estatuto de “Villa Imperial”.

Inédita na história social da humanidade, a articulação transoceânica entre as metrópoles europeias, as colônias do Novo Mundo e a rede de traficantes de escravos africanos manifesta cruamente a dimensão tricontinental da economia e da sociedade colonial instauradas pela conquista ibérica. Durante o século XVI, a presença europeia consistia numa maioria de aventureiros e numa minoria de frades. Mas a partir da segunda metade do século XVII, um crescente movimento migratório de colonos europeus que se dirigiam principalmente à América do Norte, então partilhada por britânicos e franceses, modificou a composição da população e introduziu uma economia de pequenos produtores independentes, que se desenvolveu paralelamente à grande plantação movida a trabalho escravo. Esses colonos avançaram lenta, mas inexoravelmente rumo ao oeste dos Estados Unidos, apropriando-se das terras habitadas pelos indígenas.

Durante a segunda metade do século XIX, os fluxos migratórios provenientes da Europa aumentaram em escala sem precedentes. Estima-se que, somente entre 1840 e 1860, mais de quatro milhões de europeus chegaram aos Estados Unidos; cerca da metade provinha da Irlanda (onde a grande fome de 1845-1852 provocou pelo menos um milhão de mortes). Esse pujante movimento populacional atingiu sua maior intensidade ao término da guerra dita de Secessão. A Marcha para o Oeste oferecia às massas europeias pauperizadas a perspectiva de prosperar reunindo aquilo que o desenvolvimento capitalista separava: trabalho e propriedade. O êxito desse novo tipo de colonização, que correspondia à concepção de propriedade formulada no final do século XVII por John Locke, acarretou a supressão das condições de existência dos indígenas; os que escaparam do extermínio foram confinados em reservas.

No Brasil, porém, essa modalidade de colonização atrofiou-se, como mostramos no quinto e último capítulo. O governo imperial, perante a pressão do governo britânico, que proibira o tráfico de escravos e levando em conta os avanços do abolicionismo, tentou promover a imigração de colonos europeus, principalmente franceses, em moldes semelhantes ao que estava ocorrendo nos Estados Unidos, onde o Homestead Act (1862) garantiu a propriedade plena aos participantes da Marcha para o Oeste. Mas, embora na ótica da burocracia imperial a introdução de colonos europeus fosse a solução para a substituição do trabalho escravo e o branqueamento da população, com poucas exceções, a política de colonização do império não teve êxito. A oligarquia agrária brasileira queria imigrantes que viessem trabalhar em suas fazendas; não estava interessada em que se tornassem pequenos proprietários. As relações sociais falaram mais forte do que os projetos governamentais.

*João Quartim de Moraes é professor titular aposentado do Departamento de Filosofia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A esquerda militar no Brasil (Expressão Popular).

*Ligia Osorio Silva é professora do Departamento de Política e História Econômica da Unicamp. Autora, entre outros livros, de Terras devolutas e latifúndio (Unicamp).

Referência                                                                         

João Quartim de Moraes & Ligia Osorio Silva. Novo mundo: metamorfoses da colonização. Campinas, 2023, Ed. Unicamp (https://amzn.to/3OxRBSF).


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