Por GUILHERME DEFINA*
A fé católica, que antes se manifestava através de gestos e rituais, agora disputa clique e engajamento nas plataformas digitais. Assim, a liturgia, que sempre teve algo de espetáculo, agora precisa também se adaptar à lógica algorítmica da viralização
1.
O altar exige silêncio. O algoritmo exige ruído. Entre esses dois imperativos, a fé católica caminha como quem tenta rezar no meio de uma feira. A tradição sempre confiou no gesto, no tempo, na repetição: uma vela acesa, uma genuflexão, uma ladainha murmurada. A graça se dava no corpo – e no corpo comunitário da Igreja.
Mas algo mudou. Hoje, a fé disputa cliques. A oração vira reels. A homilia, thread. E os templos, muitas vezes, se curvam ao ritmo da plataforma. O mistério, que antes se escondia atrás do véu, agora precisa ser legendado, iluminado e otimizado para o engajamento. Gustavo Corção, se vivo, talvez escrevesse com amargura: “o santo sacrifício da missa foi substituído pela missa das métricas”.
Gustavo Corção foi um dos principais nomes do catolicismo conservador brasileiro no século XX. Engenheiro, ex-marxista, flertou com o espiritismo até encontrar, num livro de G. K. Chesterton, algo que nenhum sistema até então lhe oferecera: uma fé alegre, paradoxal, encarnada.
A leitura de Ortodoxia não apenas o converteu: deu forma ao tipo de cristianismo que buscaria o resto da vida – um cristianismo que pudesse rir da modernidade sem abrir mão do mistério, que considerasse o paradoxo uma virtude espiritual, não um defeito lógico. A forma com que G. K. Chesterton apresentava a ortodoxia católica – como um equilíbrio dinâmico entre forças em tensão – ofereceu a Gustavo Corção um mapa para atravessar a própria crise interior. Aquilo que era nebuloso se tornava fértil.
O absurdo do dogma deixava de ser escândalo e passava a ser âncora. Convertido à fé romana, tornou-se um cruzado da Tradição – com T maiúsculo. Fundador da revista Permanência, crítico severo da CNBB e dos rumos tomados pelo Concílio Vaticano II, via na modernidade uma espécie de heresia permanente: barulhenta, impaciente, desordenada.
Um católico do tipo que escreve de joelhos, mas com a pena em brasa. Se já se espantava com a missa em vernáculo, o que diria hoje da missa em streaming? Gustavo Corção, que fundou uma revista chamada Permanência, talvez hoje preferisse o exílio ao feed. Ele, que via na escrita um gesto de culto e contemplação, não teria paciência para os textos efêmeros e fáceis da lógica digital.
A liturgia sempre teve algo de espetáculo – mas era um espetáculo que se dobrava diante do transcendente. Tudo nela remete ao que escapa: o silêncio cheio, o incenso que sobe, a palavra que aponta para o que não se pode dizer. G. K. Chesterton via nisso a poesia viva da fé; Gustavo Corção, sua arquitetura do sagrado. Na era digital, porém, o espetáculo é fim em si mesmo.
O padre já não precisa apenas celebrar: precisa performar. O púlpito virou palco, o sacrário virou cenário. E a homilia, se não emocionar ou indignar, passa despercebida. A fé é recortada em stories. E o que não viraliza, desaparece.
2.
Há também uma nova moral: instantânea, veemente, indignada. Um escorregão doutrinário pode virar escândalo. Um erro litúrgico, meme. A rede exige posicionamento rápido, clareza absoluta, pureza total. Mas a tradição católica sempre soube do contrário: que a verdade é lenta, que a alma se move entre sombras, que a salvação é mais um processo do que uma explosão.
Gustavo Corção, que desconfiava até de concílios, veria na lógica das redes uma paródia cruel do tribunal da consciência: não há confissão, não há perdão — só cancelamento. A espiritualidade digital é voraz. Quem quer nuance é lido como tíbio. E assim, padres e leigos se adaptam ao ritmo da máquina — ou são varridos por ela.
Olavo de Carvalho compreendeu isso melhor do que qualquer outro católico conservador. Seu púlpito foi o YouTube, seu catecismo, o Twitter. Não falava com Roma — falava com o ressentimento. Sua doutrina era menos uma fé do que um grito. E por isso se espalhou tão rápido: porque era simples, feroz e performativa.
Os algoritmos gostam de certezas, não de concílios. Preferem o combate ao discernimento. E talvez por isso tantos jovens encontraram em Olavo de Carvalho o que não viam em suas paróquias: uma guerra. O cristianismo virou arma — e a espiritualidade, ruído. Gustavo Corção, que via no comunismo a encarnação do erro moderno, talvez não reconhecesse nesse novo combate sua antiga cruzada. Porque o que move agora já não é a graça — mas o engajamento.
Nos dias de hoje, não é apenas o púlpito episcopal que sente a pressão do feed. Temos também o caso do “pastor mirim” Miguel Oliveira — um adolescente de 15 anos que, viralizado nas redes por pregar supostos milagres, foi proibido pelo Conselho Tutelar de continuar pregando e usando plataformas digitais. Acusado por líderes evangélicos de ser manipulado e promovido como produto, Miguel Oliveira tornou-se símbolo precoce de uma fé moldada para consumo.
Ele não é herege, nem fraudulento: é um menino exposto à lógica de um mercado onde a espiritualidade precisa entreter, onde a autoridade se mede por curtidas e a unção, por número de views. Em poucos meses, virou ícone, controvérsia, manchete — e talvez trauma. E nesse sentido, talvez represente mais fielmente o espírito do tempo do que qualquer teólogo.
3.
O fenômeno, porém, não se limita à gritaria da direita religiosa. Há também os que, com voz mansa e estética cuidadosa, oferecem uma espiritualidade adaptada ao imaginário digital. Padre Fábio de Melo talvez seja o exemplo mais acabado disso: teólogo refinado, sacerdote legítimo, mas também celebridade.
Suas homilias são editadas como videoclipes; suas frases circulam como mantras de Instagram. Ele não grita — mas sua doçura também viraliza. E mesmo ele, em entrevistas, já confessou a angústia de lidar com uma fé que precisa ser constantemente exposta para continuar existindo. Quando o Papa Francisco morreu, seu silêncio público foi interpretado por muitos como cálculo ou desconforto. Talvez tenha sido só respeito. Ou talvez a morte, assim como o mistério, não renda bons números. A lógica é a mesma: o altar ainda está ali, mas agora precisa de iluminação de palco.
Mas o que se perde quando a fé vira conteúdo? Quando a confissão é feita por inbox, a conversão por engajamento, a penitência por unfollow? Talvez se perca justamente aquilo que a tradição sempre tentou preservar: o mistério. Aquilo que não se explica, que não se mede, que não se converte em dado.
Aquilo que se experimenta no corpo, no tempo, no silêncio. A fé como presença. E talvez seja isso que esteja em jogo: não a verdade contra a mentira, nem a tradição contra o progresso — mas a presença contra a velocidade. Gustavo Corção, que via no mistério a última fortaleza da inteligência, talvez dissesse que tudo que hoje se pretende “comunicação” é, no fundo, desfiguração.
É possível que o futuro da fé não esteja nas telas, mas nos porões. Nos grupos pequenos, nos gestos lentos, nos rostos que não precisam aparecer. Pode ser que o cristianismo, perseguido pelo algoritmo, tenha que reaprender a ser subterrâneo — não por medo, mas por fidelidade.
Um subterrâneo onde a oração não é exibida, mas partilhada. Onde o silêncio não é ausência, mas espaço. Onde o mistério não é apagado pela luz do palco, mas sussurrado na penumbra. E quando tudo for ruído, quem souber ainda escutar o silêncio do altar talvez ouça, como Elias no deserto, o sussurro de um Deus que jamais foi feito para viralizar. Porque só no invisível, talvez, resista o que é eterno.
*Guilherme Defina é mestrando em ciência política pela Unicamp.
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