Por VINÍCIO CARRILHO MARTINEZ & MÁRCIA CAMARGO*
Nós sentimos todas as dores do mundo, mas hoje nos dói profundamente a dor das 500 crianças mortas pela má fé que lhes trouxe a morte
Muitas pessoas dizem o que sentem. Assim, algumas pessoas dizem que um mês há uma sensação de que já se transcorreram vários anos. Seriam anos de alívio pela defenestração do fascismo no comando do Estado, e ainda que seus efeitos sejam longevos na fruição da sociedade.
De outro modo, desde o histórico 8 de Janeiro de 2023 (assim será imortalizado na história da República), ondas sinistras têm escurecido os sonhos e as esperanças de que possamos viver em tranquilidade mais rapidamente: tranquilidade, leia-se com mais dignidade.
Foi com esse pesar que o país foi atordoado por mais uma série de atos de verdadeiro genocídio programado: mais de 500 crianças Yanomamis, por fome, teriam encontrado a morte extremamente prematura. Sem auxílio, sem proteção, sem um olhar de mínimo cuidado, foram zelosamente, metodicamente, deixadas ao abandono pelas autoridades públicas que deveriam, ao contrário disso, terem empenhado políticas públicas óbvias e necessárias.
Outros tantos perguntam-se se são crimes contra a humanidade!? Para outros tantos, é claro, trata-se de mera pergunta retórica. Se o agente público (ou político) sabe que uma pessoa irá morrer, se nada fizer (desídia, crime de omissão), o que dizer sobre 500? E crianças, muito mais frágeis, expostas a todo o mal que a sociedade capitalista moderna possa lhes trazer – não é evidente que a omissão, nessa escala, revela um real projeto político de extermínio indígena. É óbvio, e, portanto, se houvesse uma “resposta retórica” teria que ser assim: haverá um julgamento em Haia, assim como outros tantos no Brasil.
Porém, será que só agora “soubemos” dessas atrocidades? Será que só acordamos para a realidade no dia 1º de janeiro de 2023? Será que a própria história da miscigenação (à força, contra mulheres negras e indígenas) já não nos contaria muito do que nós somos?
Diante dessa liturgia insistente do nosso processo civilizatório, especialmente no pós-2016 (golpe de Estado), e de modo estupendo – porque a cultura popular, as tradições e heranças simbólicas dos povos originários são absolutamente resistentes e estupendos –, há verdadeiras narrativas que precisam ser colhidas e acolhidas pelo córtex, mas também pelo cordis: o coração do povo que transborda de cordialidade real, respeitosa da vida e das pessoas.
As narrativas silenciadas
O Brasil é um país privilegiado pela sua diversidade cultural, em grande medida, advinda dos povos originários que mantêm não só traços étnicos, mas, sobretudo, os traços da cultura de um povo. O território onde o Pataxó habita, situada entre os municípios de Itamaraju, Itabela, Porto Seguro e Prado, no Estado da Bahia, Brasil, atualmente, é um espaço de 13.800 hectares, distribuídos em 10 Aldeias, onde vivem cerca de 600 famílias pataxós, totalizando uma comunidade de 5.000 indígenas (FUNAI, 2006). Ali temos esse exemplo retumbante do encontro entre o córtex e o cordis: o contato do olhar ativa a amígdala (região do cérebro onde são processadas algumas sensações) e todo nosso sistema de emoções.
A empatia não é entender uma pessoa, é colocar-se no lugar do outro. É a capacidade de sentir o que outra pessoa sente caso estivesse na mesma situação vivenciada por ela, experimentando de forma objetiva e racional o que sente o outro a fim de tentar compreender sentimentos e emoções, gerando respeito e compreendendo que o outro faz parte de nós.
Jokana, significa mulher em patxohã. Patxohã, é a língua dos povos Pataxó, no caso aqui, referente as jokanas da Aldeia Barra Velha, Aldeia mãe dos pataxós, localizada no extremo sul da Bahia, sendo parte do município de Porto Seguro. Dentro destas jokanas, existe uma presença divina, que nutre e carrega uma força com base na tradição, cultura e memória que constituem a sua identidade. A identidade da jokana é coletiva e atravessa as barreiras do tempo, as lutas e as memórias de dor enfrentadas durante o colonialismo e fogo de 51 na Aldeia Barra Velha, solidificando uma força através do respeito, da empatia e da coletividade.
A jokana nasce pertencente a um grupo forte e empoderada, que a partir do momento que deixam o ventre mergulham em um universo imenso de conhecimentos que serão compartilhados no dia a dia. Seu olhar transparece sua luta, suas vivências e sabedoria, jokanas ouvem com os olhos, escutam com a alma e vestem-se de sorrisos e silêncios. É através desta identidade que a jokana fala, grita e luta pelos seus direitos. O diálogo é a ferramenta de luta, seja ele falado, dançado, cantado, escrito ou mesmo expressado nos olhares, no silêncio e nos gestos. O olhar de dor, de injustiça conta e narra esta história de uma comunidade ainda muito vulnerável e lutando para sobreviver.
Hoje no Brasil, observamos um crescente lugar de fala da mulher indígena, um espaço de luta pelos seus direitos e seus conhecimentos, trazendo esperança para os povos indígenas, mas também mantendo conhecimentos ancestrais vivos, com contribuições relevantes a mudanças climáticas, medicina natural, educação, e organizações político-sociais. Após as eleições de 2022, hoje em 2023, o Brasil tem pela primeira vez uma ministra indígena, representada por Sonia Guajajara no Ministério dos povos indígenas. E esse é o país que renasceu, como Fênix, depois dos massacres sociais, na cultura, dos ataques aos pobres, negros, indígenas. É o país que a chance única, em sua história, de se livrar do Fascismo, dos genocidas que vitimam crianças indígenas com o máximo requinte de crueldade – todos que esperamos sejam, com a mesma intensidade de seus atos (ou omissões), julgados e condenados sob o máximo rigor da lei.
Olhar para o amanhã
Esperamos do fundo do coração (o cordis que alimenta nossa esperança sem genocídios programados) que compartilhem conosco deste último olhar: O olhar, que pode significar tanta coisa, a exata ideia e significado que ele possui antes de imergir nesta cultura. – “olhar através do olhar do Outro”. O olhar traz consigo emoções, reflete sentimentos e dores. O modo de enxergar algo, expressa uma opinião, um posicionamento. O olhar traz consigo o ontem, o hoje e a esperança do amanhã: a história. Para olhar e enxergar, é preciso observar e sentir. Nós sentimos todas as dores do mundo, mas hoje nos dói profundamente a dor das 500 crianças mortas pela má fé que lhes trouxe a morte.
Que possamos olhar para o amanhã, sem esquecer este nefasto dia, como quem olha para o porvir, o nascer do sol em que nenhuma criança morra de fome.
*Vinício Carrilho Martinez é professor do Departamento de Educação da UFSCar.
*Márcia Camargo é artista e doutoranda em Ciência, Tecnologia e Sociedade na UFSCar.
O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como