Por MARILIA AMORIM*
A inversão carnavalesca da cena vai mais longe. Ela varre e tira do lugar o poder apodrecido que ali se instalara, com suas autoridades fake e com fardas enxovalhadas em “tenebrosas transações”
Visualizemos a cena daquela que será uma das fotos mais emblemáticas da posse de Lula. Lula sobe a rampa com aqueles que irão lhe entregar a faixa presidencial – representantes do povo brasileiro na sua diversidade.
Agora imaginemos uma imagem do que não ocorreu: Lula recebe a faixa do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Imaginemos mais uma: Lula recebe a faixa de Dilma, a legítima ex-presidente que ali deveria estar. Por fim, mais uma terceira imagem do que não ocorreu: Lula recebe a faixa do cacique Raoni, representante legítimo dos povos indígenas.
Nas três possibilidades que não ocorreram, teríamos a presença de uma autoridade cujo lugar já está instituído, mesmo se, em um dos casos, esse lugar tenha sido usurpado pelos golpistas de plantão. O que ficaria escrito nos anais da história? Algo assim: “O presidente Lula não recebeu a faixa do ex-presidente nem do ex-vice por recusa dos mesmos e quem passou a faixa foi a autoridade seguinte na linha de sucessão, o presidente do Senado.”
Nas duas outras possibilidades, mantêm-se as primeiras palavras do registro e muda-se a última parte, para trazer a presidente Dilma ou o chefe Raoni. Certamente teriam uma importância histórica e simbólica muito mais significativa do que aquele da linha sucessória oficial. Mas talvez a incompreensão ou a má fé expressassem uma perplexidade: “mas ela foi deposta, não tem legitimidade para passar a faixa!” Ou então: “mas ele é um chefe indígena, não pode representar o povo inteiro!”
Nas três possibilidades há um ponto crucial em comum. O registro da cena imaginária traria algo de uma diminuição, de um a menos ou de uma falta na passagem da faixa e daquilo que este ritual exprime, isto é, a posse da presidência da República do Brasil. Tomou posse, recebeu a faixa, mas…
Retomemos a cena do que ocorreu. Fazer com que o povo entregasse a faixa presidencial foi um gesto simbólico que rompeu com todos os códigos e inaugurou um novo registro. Este, de pura positividade, trouxe à cena aqueles que “não deveriam estar ali”, dessemelhantes em tudo e por tudo do esperado e aprovado. No registro criado, não há diminuição ou falta, como evocado para as outras possibilidades, ao contrário, há expansão. Quem sobe a rampa não é um, são muitos.
A cena é inusitada. Ver aquele grupo díspar ocupar o espaço da posse e o presidente no meio deles desperta uma estética quase tropicalista ou antes, quase modernista, como em manifesto de um Andrade na semana de 22. Antropofagia do poder burocratizado?
Talvez o termo exato seja o de carnavalização. O conceito de carnaval na teoria literária foi formulado pelo teórico russo Mikhaïl Bakhtin em sua análise da cultura popular da Idade Média e do Renascimento.[i] Ele designa uma série de manifestações populares festivas que têm como sentido axial a inversão e a derrubada do poder. O velho se inverte em criança, a morte se inverte em vida, o baixo se inverte em alto e assim por diante. Não se trata apenas de uma festa com data marcada de início e de fim tal como conhecemos no nosso carnaval contemporâneo. No conceito bakhtiniano, o verdadeiro herói do carnaval é o tempo. Porque é ele o operador das grandes e profundas transformações sociais e culturais. A festa do tempo é a festa da mudança. A que faz da morte uma semeadura da vida.
Voltemos ao nosso grupo díspar que sobe a rampa. Nele, uma é escolhida para colocar a faixa no presidente: a mulher jovem e negra que tem como profissão ser catadora, ou seja, uma das categorias que estão no degrau mais baixo da pirâmide comprida e alta de nossa desigual sociedade. O presidente curva a cabeça frente à moça para que ela lhe coloque a faixa. Outra imagem que certamente estará entre as mais mediatizadas dessa posse. O que temos aí é uma radical inversão onde o mais alto se curva ao mais baixo como que a lhe dizer: o verdadeiro poder é você porque, na democracia, o poder é do povo e é por e para você que deverei governar.
A inversão carnavalesca da cena vai mais longe. Ela varre e tira do lugar o poder apodrecido que ali se instalara, com suas autoridades fake e com fardas enxovalhadas em “tenebrosas transações”. A alegria é a prova dos nove e o banquete festivo do carnaval, no olhar bakhtiniano, é lugar do in vino veritas cuja verdade se revela pela irreverência. O carnaval da posse de Lula nos exibe a verdade sob o céu luminoso de Brasília. O que é a cena do grupo senão o retrato mais verdadeiro do Brasil?
E a cadelinha? Todos já conhecem sua história e sabem seu nome. Ela se chama Resistência e subiu a rampa com o presidente. De que ela nos fala? Em primeiro lugar, ela convoca o passado e impede que ele seja esquecido: a injusta prisão de Lula. A festa não deve servir para o apagamento das injustiças.
Seu nome diz também de uma resistência que foi de muitos e foi de um. Falemos um pouco desse um. Relembremos tudo a que foi capaz de resistir e superar: desde a fome quando criança até as duas prisões a que foi condenado. A primeira era clara: a ordem de prisão pela ditadura militar condenava-o por sua atuação política. A segunda, em certo sentido, pode ser pensada como mais perversa do que a primeira porque atacava sua honra e sua dignidade e omitia o verdadeiro motivo da prisão que, mais uma vez, era político.
Mais perversa, se é que é possível algo mais perverso do que foi a ditadura militar, porque incluiu a destruição de sua imagem e de toda sua família, graças ao poder sempre serviçal da imprensa hegemônica brasileira. A primeira prisão colocava-o como inimigo do poder, como “subversivo” o que em nada o diminuía. A segunda produz um apagamento de sua força política e o reduz a um mero “corrupto”.
De que é feita essa inigualável capacidade de resistir? Ela é feita de vida, da sua vida, da sua história. De seus desafios e de seus feitos. Mas Lula não apenas resiste: a cada vez, ele sai mais forte do que entrou. Que força é essa? É a força da Métis, nome de uma deusa da Grécia Antiga que diziam ser a única temida por Zeus, o rei dos deuses. Métis é a encarnação de uma forma de inteligência e de saber totalmente peculiar. Ela se desenvolve e se exprime na luta para sobreviver perante forças adversas extremamente potentes. Na luta contra os mais fortes, emprega meios que somente ela conhece. Dois deles presidem os demais. De um lado, Métis encarna a inteligência da situação: saber esposá-la em vez de afrontá-la para identificar o momento oportuno de agir e o ponto frágil onde incidir. De outro, a capacidade de metamorfose: tornar-se aquilo ou aquele que não se espera, que não está previsto.
Os que atacaram, perseguiram e condenaram Lula não o conheciam. Pensavam poder destruí-lo e esqueciam que ele vem de muito longe. Sua inteligência e sua força só fizeram crescer ao longo do caminho. E como vivemos numa democracia que não é exatamente grega, aqui não temos nenhum Zeus para contê-lo. O que só podemos festejar!
*Marilia Amorim é professora aposentada do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade de Paris VIII. Autora, entre outros livros de Raconter, démontrer, survivre… Formes de savoir et de discours dans la culture contemporaine [Narrar, demonstrar, sobreviver… Formas de saber e de discurso na cultura contemporânea] (Ed. Érès) (https://amzn.to/3LoJHub).
Nota
[i] BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto da obra de François Rabelais. São Paulo, Ed. Hucitec, 7ª edição, 2010.
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