Por ELEONORA ALBANO*
Considerações sobre a perda de diversidade na Universidade brasileira
Ao longo da década de 2000, vivi uma experiência insólita que levei muitos anos para discernir e deslindar. Tive a persistente impressão de que havia um boicote à publicação de um trabalho que apresentei num evento intitulado “As Humanidades na Universidade Contemporânea”, realizado na Unicamp em 2006.
O evento pretendia ser um foro multidisciplinar para a discussão de questões sobre o futuro das Humanidades ante o avanço da tecnologia no meio universitário. Propus-me, então, a defender a autonomia das práticas de produção intelectual e publicação das Humanidades e Ciências Humanas. Para tanto, busquei uma linguagem simples e direta que falasse a todas as áreas do conhecimento e fosse convincente para os não humanistas.
Assim, baixei os dados das bases do CNPq e da CAPES referentes ao primeiro quinquênio da década de 2000 e submeti-os a uma análise estatística multivariada. Isso permitiu depreender perfis das diferentes áreas do conhecimento com base nas taxas dos tipos de publicação conforme as taxonomias das agências de fomento. O argumento era de que as Humanidades, as Ciências Naturais e Exatas e as Tecnologias exibiam perfis distintos quanto aos tipos preferenciais de publicações.
A metodologia é simples e fornece visualizações úteis dos seus resultados. O primeiro passo foi comparar graficamente as taxas brutas dos indicadores por doutor. Corroborada a sua diferenciação por área, submeti-as a duas técnicas estatísticas multivariadas. As fontes foram os censos do CNPq de 2000, 2002 e 2004 e o Coleta CAPES de 2004. Como se vê abaixo, mesmo as taxas brutas mostram preferências claras por área, como, por exemplo, no Censo de 2004:
Figura 1:Taxas anuais de indicadores por doutor no censo do CNPq de 2004.
(Fonte: Albano, 2006[i])
Note-se que as Ciências Naturais diferem claramente das Humanas no que toca às taxas dos indicadores ‘artigo’ e ‘livro’. No gráfico da direita, a vantagem de artigo é acentuada. Em contrapartida, observa-se que livro tem uma taxa expressiva no da esquerda, embora o achatamento causado pela padronização da escala dificulte a visualização.
Cabe notar também que as Ciências Naturais são mais heterogêneas que as Humanas quanto à importância conferida a ‘trabalhos completos em eventos’. Nas áreas Biológicas e da Saúde, esse indicador apresenta taxas consistentemente menores que nas demais. Note-se, ainda, que ‘capítulos de livro’ é o indicador menos sensível às diferenças entre áreas: a sua taxa aproxima-se de 0,5 ao ano tanto nas Ciências Naturais como nas Humanas. Além disso, distingue as Ciências das Tecnologias, cuja taxa é consistentemente mais baixa.
As estatísticas multivariadas usadas agrupam categorias conforme as suas proporções no conjunto dos dados. O gráfico abaixo exprime o resultado da primeira delas, a análise por grupamentos, aplicada aos dados do censo de 2004. Observe-se como permitiu unificar a visualização das áreas:
Figura 2:Taxas anuais de indicadores do censo do CNPq de 2004por doutor agrupadas.
(Fonte: Albano, 2006)
A outra técnica, a análise em componentes principais, depreende fatores ortogonais de correlações entre subconjuntos de dados. Observe-se que o gráfico abaixo, extraído do Censo de 2004, também expressa as preferências por área de forma unificada e transparente:
Figura 2:Fatores 1 e 2 extraídos das taxas anuais de indicadores do censo do CNPq de 2004.
(Fonte: Albano, 2006)
Embora a técnica permita a extração de mais fatores, os dois primeiros foram suficientes aqui, porque explicam a maior parte da variância dos dados. Também é nítida a separação das Ciências em Naturais e Humanas, bem como a distância de ambas das Tecnologias.
A apresentação original, assim como o artigo que a expunha, comparava os censos não só entre si, mas também com o Coleta CAPES de 2004. A análise revelou que os perfis do quinquênio eram muito semelhantes, correspondendo consistentemente ao padrão acima resumido.
A razão por que desisti de publicar o artigo foi o seu longo tempo à espera de uma decisão editorial. Como a busca de informações sobre o julgamento fosse ineficaz, retirei-o de um periódico e submeti-o a outro – dentro dos quatro anos em que persisti no propósito de publicá-lo. Sintomaticamente, jamais recebi um parecer de qualquer deles. Entendi, então, que a postergação era um meio de solapar o trabalho pelo envelhecimento inevitável dos dados.
O leitor familiarizado com os indicadores acadêmicos já deve ter notado que as taxas acima, de pouco mais que 15 anos atrás, são muito menores que as da média da sua área hoje. Talvez tenha se perguntado também se os perfis resultantes ainda vigem com as novas taxas.
Não é preciso ir longe para inferir que a resposta é negativa. A simples inspeção de uma amostra aleatória de currículos Lattes das áreas mais distintas evidencia a tendência atual à uniformização em torno do indicador que caracterizava então as Ciências Naturais, a saber: o artigo em periódico nacionale/ou internacional indexado. Nas Ciências Humanas, há também uma tendência ao aumento exponencial de ‘capítulo de livro’.
Portanto, não vale a pena repetir os procedimentos acima com dados atuais a fim de respaldar essa afirmação. Ela converge com os comentários informais de muitos colegas de áreas diversas que também têm se preocupado com a perda de diversidade da academia atual. Bem mais útil é examinar mudanças recentes na vida universitária que possam ter contribuído para esse estado de coisas.
Passo a considerar, então, os avanços de algumas tendências padronizadoras que se impuseram às universidades de todo o mundo nas últimas décadas. São elas: a mercantilização das bases de dados bibliográficas, a substituição das teorias científicas por modelos preditivos baseados em dados, e a consequente distorção e desvalorização dos indicadores clássicos de produção científica.
Todas essas tendências estavam em ascensão desde a década de 1960, mas só se consolidaram quando os progressos da tecnologia da informação permitiram que o sistema de produção capitalista alcançasse uma financeirização radical. Daí em diante, tudo que estivesse sob forma digital adquiriu potencial valor de mercado.
Da sociologia da ciência à “ciência” da avaliação científica
Somente uma academia já em parte expropriada dos seus valores essenciais poderia permanecer inerte diante da conversão de uma base de dados da sociologia da ciência num poderoso instrumento de avaliação acadêmica.
Recapitulemos primeiro em que consistem esses valores. A esse respeito, é precisa e oportuna a análise da filósofa Olgária Matos: “Para analisar a universidade contemporânea, é preciso contrapor a instituição moderna à pós-moderna, bem como seus valores e seus fins. A universidade moderna e a natureza do conhecimento que ela produziu até os anos 1960 tinham por objetivo formar o cientista, um intelectual capaz de compreender seu ofício na complexidade dos saberes e da história. Portanto, quando um cientista vinha a público, ele falava sobre um conhecimento universal, mesmo quando o ponto de partida fosse uma especialidade. No limite do aprofundamento da especialidade, chega-se em um ponto em que a fronteira entre as disciplinas se desfaz. O conhecimento mantinha sua autonomia com respeito às determinações imediatamente materiais e do mercado. Sua temporalidade – a da reflexão – compreendia-se no longo prazo, garantidora da transmissão de tradições e de suas invenções. Na universidade moderna, não cabia a pergunta ‘para que serve a cultura?, mas sim ‘de que ela pode liberar?’”.[ii]
Reflitamos agora sobre a compatibilidade desses valores com o sistema de avaliação acadêmica mais popular nos dias de hoje, o índice de citações.
Em 1955, o linguista e bibliotecário Eugene Garfield criou a primeira base de dados de citações, conhecida como Web of Science ou Web of Knowledge. Inicialmente, tratava-se de uma ferramenta para investigar os laços entre os pesquisadores das várias disciplinas acadêmicas através das suas citações. Prestava-se, sobretudo, ao estudo do trajeto das influências dentro e entre as áreas do saber.
Ao cabo de alguns anos, o Institute for Science Information (ISI), sede da compilação dos dados, passou a demandar cada vez mais infraestrutura, gerando problemas de gestão e financiamento. Garfield logo entendeu que tinha em mãos um bom negócio e passou a fornecer dados a instituições interessadas. Finalmente, em 1992, o aumento exponencial da demanda levou-o a vender o ISI à Thomson Reuters.
O índice recebeu então o tratamento informático necessário e passou a residir num site, acessível por assinatura, que atualiza online as citações em periódicos indexados das mais variadas disciplinas. Em 2016, uma empresa do grupo, a Clarivate Analytics, centralizou o seu controle. O negócio tornou-se tão próspero que os gigantes do mercado editorial, tais como a Elsevier e a Wiley, criaram os seus próprios índices de citações.
É evidente que esse sistema não condiz com a temporalidade de longo prazo da reflexão. Trata-se, na verdade, de um sintoma da sujeição da universidade atual ao mercado editorial global. Um complicador, apontado por Mike Sosteric (1999),[iii] é a sua invisibilidade. Incorporado ao discurso acadêmico, o índice de citações sustenta a transmissão de ortodoxias, fomenta o oportunismo e naturaliza as desigualdades. Forças coercitivas do establishment competem com as afinidades efetivamente acadêmicas na escolha do que e de quem citar.
Além disso, a assimetria de poder entre as áreas ditas “duras” e “moles” atribui à “cientometria” – a nova disciplina que pretende sistematizar as métricas de avaliação acadêmica – rigor e imparcialidade absolutos na análise da produção acadêmica. Isso nada mais é que uma versão atual do cientificismo – a posição metafísica que afirma que a verdade só pode ser conhecida através da ciência.
Ora, o cientificismo é estéril como metafísica por ser incapaz de gerar corolários que o sustentem. Só poderia fazer face a concepções rivais da verdade se conseguisse apontar caminhos para refutá-las. Fadado ao fracasso, recorre à falácia de confundir a ciência com os seus métodos. Assim, a quantificação e a formalização, meras ferramentas para formular e testar hipóteses erigem-se em garantias da cientificidade.
A academia chamada por Olgária Matos de pós-moderna está tomada por controles “cientométricos”. Pessoas, instituições e mesmo disciplinas acadêmicas são hierarquizadas com base em usos abusivos de índices bibliométricos. Citações moldam carreiras e facultam o acesso ao financiamento de projetos. Medidas de produtividade análogas ranqueiam departamentos, faculdades, institutos e centros de pesquisa.
Ao “dotar a mediocridade”, conforme o título certeiro do ensaio de Sosteric, essas práticas deixam muito pouco espaço à criatividade. Investir apenas em pesquisa incremental é deixar à míngua a pesquisa de risco, fonte historicamente consagrada de importantes guinadas científicas e intelectuais. Os prejuízos ao pensamento crítico tornam-se incalculáveis.
Vejamos, agora, como esses mecanismos de controle do capitalismo digital exercem influência sobre os discursos internos à ciência.
Mais modelos, menos teorias
Uma sequela inevitável da digitalização de toda a informação antes armazenada em meios físicos, tais como pastas, arquivos, gavetas e cofres, é que as categorias envolvidas se tornam quantificáveis e, portanto, tratáveis matematicamente. Instaura-se, assim, a era dos modelos baseados em dados, cujo ponto de partida é a regressão. A sua utilidade reside no fato de o comportamento, passado ou futuro, de qualquer série temporal de dados poder ser estimado através de um ajuste de curvas.
Nesse contexto, a mesma falácia cientificista que entroniza a quantificação na avaliação acadêmica permeia a própria produção científica. Na ciência, o seu enunciado mais comum é ‘modelar é explicar’.
É certo que modelar pode facilitar a explicação, formalizando um aspecto de uma teoria científica e viabilizando o seu teste. Mas é igualmente certo que modelos ateóricos baseados em dados não fazem mais que descrevê-los. Para contribuir para a explicação, um modelo tem que se aplicar à luz de um quadro de referência capaz de racionalizar os seus resultados, interpretando-os contra um pano de fundo teoricamente consistente.
A profusão de dados disponíveis no mundo digital acelerou o progresso da modelagem estatística e facilitou o desenvolvimento da inteligência artificial. Se, por um lado, essas ferramentas podem promover o avanço teórico quando usadas por cientistas com suficiente lastro nos fundamentos das suas disciplinas, por outro, podem fornecer um filão àqueles que buscam apenas multiplicar publicações à custa da ‘magia dos números’.
Neste, assim como em outros casos, o caráter místico do cientificismo vem à tona, traindo o seu parentesco com a numerologia. À medida que a última geração de formação universalista é substituída, a academia vai sendo tomada por quadros cada vez mais técnicos, que perguntam para que serve um resultado antes de indagar por que persegui-lo. Os modelos quantitativos baseados em dados servem, muitas vezes, somente à pronta obtenção de ‘inovações’ publicáveis porque úteis potencialmente.
Um dos aspectos mais preocupantes dessa situação é a adesão das Ciências Humanas a práticas cientificistas, a fim de conquistar um estatuto científico mais prestigioso. Por mais meritório que seja o aprimoramento da coleta de dados, o recurso à experimentação e à medida não tem valor per se. Sem um arcabouço teórico que permita considerar, entre outras injunções, as limitações dos métodos de coleta e medição, a interpretação cai no vazio, emulando grosseiramente as práticas de ciências que lidam com um número muito menor de variáveis.
Outro meio de elevar o número de publicações e angariar citações reside numa forma de transdisciplinaridade que podemos chamar de fordista. Especialistas de disciplinas distintas tratam o aspecto do dado que lhes cabe, recebendo os devidos créditos, sem, contudo, conhecer a íntegra da questão de pesquisa em exame. Aliás, é comum que essa forma de colaboração reserve ao cientista humano o papel de anotar e classificar dados para tratamentos computacionais cujo funcionamento desconhece – como, p. ex., na montagem de bancos de dados para a inteligência artificial.
É evidente que nenhum membro desse tipo de equipe – nem mesmo a/o responsável pelo projeto – conhece o lugar do seu campo na história dos saberes, sendo, portanto, incapaz de transitar entre a sua especialidade e o universal, ou seja, as indagações intemporais sobre a natureza do universo, da vida e da humanidade.
Perde o conhecimento, ganha o mercado. Nesses casos, o ‘para quê’ costuma estar claro o bastante para se justificar facilmente.
Sem foro, sem fôlego, sem pensamento crítico
Cabe destacar que não foi necessária qualquer conspiração para que o mercado tomasse gradualmente a academia, como vem fazendo nos últimos 60 anos. Como esclarece Shoshana Zuboff,[iv] a vigilância é uma sequela inelutável da globalização, digitalização e financeirização do capitalismo. Dados sobre qualquer objeto de interesse para a sociedade de consumo tornam-se commodities – como aconteceu com as citações acadêmicas.
Está clara agora a razão de o meu artigo de 2006 ter causado tanto desconforto entre os editores da época. Ele estava na contracorrente da globalização dos índices de desempenho acadêmico: aos olhos dos cooptados pela avaliação cientificista, a sua defesa da autonomia entre as áreas poderia prejudicar a internacionalização da nossa ciência. Naquele momento, o artigo em periódico indexado já constituía a melhor aposta em visibilizar o “impacto” da pesquisa, aferido em número de citações.
Aqui a palavra-chave é, evidentemente, ‘indexado’. A indexação de anais de congressos e livros ainda estava muito defasada, como, aliás, está até hoje. No Brasil, a multiplicação dos eventos somou-se à pressa de publicar, consagrando o capítulo de livro como um escoadouro mais visível para a pesquisa em andamento.
A própria distinção entre trabalho ‘em andamento’ e ‘concluído’ esmaeceu-se. No passado, os congressos eram, em geral, promovidos por associações científicas a fim de estimular o debate entre os pares. Constituíam, assim, os foros da discussão das pesquisas em andamento. Diferentes estágios de um trabalho eram publicados em anais de congressos até que amadurecessem o suficiente para submissão a um periódico. As adições e modificações de uma versão a outra eram, amiúde, resultantes do debate acadêmico ocorrido nesses foros. Com a multiplicação dos encontros promovidos por outros tipos de agremiações, inclusive grupos de pesquisa, esse debate dispersou-se, perdendo gradualmente o fôlego.
Outro fator que contribui para a perda de fôlego na academia é o envelhecimento e eventual desaparecimento dos herdeiros das tradições assentadas na reflexão de longo prazo. Sem mentores, a geração em formação toma como líderes pessoas eficientes, propositivas e ciosas do “impacto” da sua produção – de fato, modelares para a nova ordem do conhecimento voltada ao mercado.
Ainda outro fator a minar o fôlego das discussões acadêmicas é a desvalorização do livro impresso como síntese de resultados de pesquisa. Mais visível é uma resenha dos resultados de tamanho adequado para caber num artigo ou capítulo de livro. Além disso, o livro considerado útil à clientela do mercado da publicação acadêmica tem escoadouro garantido sob forma de e-book.
Juntos, os três fatores que acabamos de examinar reduzem o pensamento científico a formas tão aceleradas que já nem se percebem esbaforidas. Ganha o mercado, perde a ciência, pois o pensamento crítico não é necessário apenas à construção de narrativas históricas. É também um componente indispensável à elaboração de teorias científicas novas.
Apocalipse da ciência? Evidentemente, não. Trata-se apenas de um retrocesso na sua democratização. Relegada a invenção de produtos e serviços inovadores a instituições acadêmicas relativamente periféricas, a elite financeira não hesitará em investir no ócio fomentador de idéias – para que as revoluções científicas e suas invenções permaneçam onde sempre estiveram: nas instituições que contam com o mecenato dos super-ricos.
*Eleonora Albano é professora do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp
Notas
[i] ALBANO, E.C. O cientificismo e seu avesso: Riscos da uniformidade na avaliação acadêmica. Manuscrito inédito, 2006.
[ii] MATOS, O. Contrastes do período pós-moderno no país. Jornal da Unesp. Edição especial PDI, maio de 2011.
[iii] SOSTERIC, M. Endowing Mediocrity: Neoliberalism, Information Technology, and the Decline of Radical Pedagogy. Radical Pedagogy, Online Issue 1, 1999.
[iv] ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power. Nova York: Public Affairs, 2019.