Por TALES AB´SÁBER*
Petra Costa transforma Brasília em um espelho quebrado do Brasil: reflete tanto o sonho modernista de democracia quanto as rachaduras do autoritarismo evangélico. Seus filmes são um ato de resistência, não apenas contra a destruição do projeto político da esquerda, mas contra o apagamento da própria ideia de um país justo
1.
Como todos viram, Brasília é um símbolo, uma obsessão, um mito e um projeto no cinema recente de Petra Costa. A sua experiência política engajada no presente, a sua aventura reflexiva e interessada pelo quebra-quebra que virou o Brasil nos últimos dez ou quinze anos, passa centralmente pela “forma Brasília”: a sua alegoria pessoal que organiza um tanto da narrativa, e muito mais de sua visão da história.
Petra Costa filma a idealização político utópica, o projeto, a construção e a navegação no tempo, deste barco sinuoso de concreto e vidro, que integra em si as contradições, as sonhadas e as reais, de um país.
E filma um país, visto de sua Brasília, que passava de estado de construção para um estado estável de contradição; contradições reais contidas naqueles prédios transparentes, aparentemente generosos, e naquela cidade cuja história é o espelho do que acontece lá fora, nas ruas, nas cidades, nas igrejas, nas casas, nas pessoas ditas brasileiras.
Por vezes, a história de um vidro de palácio quebrado, seja à direita ou à esquerda, do que espera solução, que não virá. Ou virá, deseja a cineasta? Oásis de um sonho histórico, de um país periférico, de origem colonial, multirracial, em busca de sua democracia real, a Brasília de Petra, e de tantos de nós, também se converte na “palmeira” efetiva, aquela na qual vamos nos recostar um dia, daquela famosa terra prometida – que nunca conheceu reforma agrária… – sonhada desde sempre como universal, que já não há.
Mas, apesar do assalto permanente, da acumulação infinita, da morte e do extermínio normalizado dos milhares de assassinados todos anos, que a Brasília real do sonho cinematográfico de Petra Costa mantém e gerencia; apesar do país em frangalhos, e da vida popular massacrada, com ou sem Brasília, mas agora, a cineasta constata, com muita teo-política, com muitos templos, e tendas, de Salomão espalhadas por todas as metrópoles da pobreza brasileira, onde a Brasília da democracia do sonho de Petra Costa, mais justa e igualitária, mal chegou, sendo uma imagem na televisão global; apesar do país eternamente em transe, agora organizado pelo partido político dos pastores, um dispositivo social que é uma organização real do transe, apesar da cisão entre o mito da modernidade de um socialismo democrático brasileiro – concretizado como uma cidade por nossos modernistas, formulado precocemente por intelectuais críticos e universitários ainda nos anos de 1940, que animou a sede de justiça popular de toda uma literatura moderna, e todo um cinema, que foi uma vanguarda mundial, e que se tentou sustentar no Partido dos Trabalhadores, até a sua chegada nos mais altos e elegantes palácios de Brasília – apesar da vertigem de olhar para tudo isso como a real democracia brasileira, funcionando assim, mais até do que a Brasília restaurada de Petra Costa, em seus filmes o Brasil continua existindo.
2.
O tempo não para, a história das contradições reais deste espaço único da modernidade produz, se não na direção da autonomia, justiça social, liberdade liberal e fórum inteligente de reconhecimento comum, que é o ponto de vista histórico da cineasta, então na direção do fanatismo político religioso, ou da política realmente fanática, de exploração da religião e do ódio social próprios do bolsonarismo.
Entre o sonho da Brasília obra de arte de uma democracia obra de arte brasileira, e a Brasília tomada de assalto pelo Brasil dos bárbaros, que nunca esperaram nada e sempre ocuparam o espaço total brasileiro com a resposta do direito à violência total, surge o corpo a corpo da câmera em contanto de Petra Costa.
Uma câmera que escorrega, voa leve pelos corredores mais sinuosos do poder, de uma beleza arquitetônica ética que ele desconhece, que flutua como a fantasmagoria de uma insider, que questiona a própria classe e mundo, e que também salta, se agita, pipoca, foge do gás e da polícia, encara de frente o ódio neofascista e desce até a vida popular de agora, que revela a mais íntegra ao seu modo, entra nas suas casas e vê com cuidado aqueles que são o objeto de tudo isso, em sua própria leitura do mundo.
Não há câmera mais democrática, na sua própria concepção da ideia, seja para o alto, e para os corredores contemplados publicamente dos palácios de sonhos do Brasil, e também para o chão, da viela, para os barracos da vida dos pobres como ela é, do que a câmera de Petra Costa hoje no Brasil.
Se a representação dos interesses antipopulares se reveste de valores cristãos, e toma o espaço esperançoso do que foi o Congresso de imaginação e desejo da democracia de emancipação brasileira – após o assalto histórico da ditadura de 1964/84 – o verdadeiro Congresso organizado dos políticos populares à direita está nas igrejas evangélicas, palácios ou tendas das garagens das periferias, e entre estes circuitos erigidos da representação do que se acredita como poder, em meio aos castelos no ar, nas igrejas, nas ruas, nas portas de quarteis, da política expandida à direita da democracia (vertigem) do real brasileiro, surgem em Apocalipse no trópicos os corpos vivos, os humanos, os que fizeram tudo isso para viver, de um modo ou de outro.
Além da curiosa observação cuidadosa do líder da ligação do povo evangélico com o neofascismo de fundo neoliberal de Jair Bolsonaro – Silas Malafaia – esta ala tão ativa do bolsonarismo, além de sua trazida à fala e à explicação das suas razões políticas na tela do escrutínio público – o que faz do filme um modelo exemplar de convivência com o inimigo, faz dele um fórum de discussão política do país, no tempo da guerra que bloqueou a política como linguagem – além do filme chegar na casa e na mesa do café da manhã do pastor, líder da extrema direita, revelando a sua posição, entre legítima e a falsificação da alienação violenta na sua ideia de Deus, a sua teo-política da tomada dos sete montes da Grande Babilônia (pelo que entendi, a religião, os costumes, a comunicação, a cultura, a educação, a economia e a política…); a câmera investigativa histórica de Petra chega na casa dos brasileiros comuns, daqueles pobres da ex-classe C de Lula, as pessoas que, no fim das contas, sustentam com seus corpos, com sua experiência, com seus sonhos e seus votos, tudo isso.
3.
Além do café da manhã com Lula, e Janja, onde a inteligência prática exemplar do líder da esquerda organizada e institucional, que o filme recupera em toda sua dignidade, se apresenta ainda uma vez, a câmera de Petra Costa chega bem junto a uma cerimônia evangélica de cuidado e de restauração da vida de uma vizinha que pensa em se matar, em uma mínima cozinha periférica de alguma grande cidade do Brasil.
A macropolítica histórica, do ideal, do sonho e da fantasia do Brasil da esquerda socialista democrática, e da verdadeira guerra aberta à direita pela ocupação dos espaços de política reais, encontra as bases da micropolítica da vida religiosa no Brasil. A micropolítica da vida, com sua clínica, já teológico política.
A organização popular, de baixo para cima, de um código ético próprio, anti-coletivismo crítico ao capital, mas comunitário, concretamente eficaz como sustentação da vida no outro, os irmãos que estão lá, da esperança que emana da própria ideia do Deus salvador, mesmo que guerreiro, e ainda mais quando guerreiro. Deus, seu pastor e sua igreja, seus irmãos, garantindo, no nível da formação do desejo, que há vida, no mundo em impasse de capitalismo avançado e final, em que tudo é mercadoria, a vida é excitação e não há emprego. Lula, com lucidez e sua linguagem política singular, de quem também conhece de perto e por dentro, fala exatamente isto no filme.
Mas, ao chegar junto à vida, da pobreza brasileira envolvida no grande jogo e do efeito antropológico ideológico da disputa de poder sobre as próprias vidas, mediada pela religião popular e o seu partido disfarçado de Deus, o filme tem a sua revelação viva – momento forte de um documentário, em que a ordem da realidade investigada ultrapassa o sistema de referências, o enquadramento ideológico e social que vai mais ou menos na cabeça e no olhar da cineasta.
4.
Em uma casa muito simples de uma periferia de alguma grande cidade, a diretora conversa com a dona da casa sobre o seu voto para presidente em 2022. Ao lado da entrevistada, à sua direita, uma menina, garota, de 13 ou 14 anos, talvez até 16 anos e já em idade de votar. Entre a cozinha e o quarto, com sua camisa do Flamengo, a garota assiste curiosa a conversa da mãe que explica para Petra Costa porque vai votar em Bolsonaro, não porque não goste de Lula, até ia votar nele anteriormente.
Mas isso antes de saber “que ele era da umbanda, do candomblé”… Neste momento, um dos poucos do filme em que esse tipo de registro se mostra na relação com os entrevistados, Petra Costa comenta, por trás da câmera: “Lula não é católico?”. A mulher, sem traço de agressividade, diz que não, que Lula não era católico. Ela havia recebido uma foto pelas redes em que ele estava com “espada de Xangô” e “a gente que é da Bahia, sabe o que estas coisas são…”, e pede à menina que procure a foto para mostrar à Petra Costa. Depois de ver aquela imagem, pelo evangelho, ela decidira votar em Jair Bolsonaro…
Em seguida a câmera se volta para a menina no umbral da porta, e a diretora pergunta: e você, quem você gostaria que ganhasse? A menina fica desconcertada por sair da posição de espectadora imaginária da mãe, para a convocação de sujeito de olhar da câmera, de interesse do mundo e de cidadã política.
A mãe, fora de quadro diz, com carinho, “ela é Lula”, enquanto a menina, em uma espécie de automatismo que não quer negar o que a mãe dissera pouco antes, responde, um pouco constrangida: “Bolsonaro, Bolsonaro…” A mãe intervém, afetiva, e diz que ela pode falar a verdade. Então a garota diz: “Eu queria que Lula ganhasse, … mas se ele não votasse essa proposta aí do banheiro…” [do acesso de pessoas trans a banheiros da sua opção de gênero, com a qual Lula nunca se comprometeu…], enquanto a mãe fora de quadro fala, “Lula tem coisas boas também”…
O que interessa nessa cena é como as máquinas intensas e histéricas de poder, persuasão, identificação e manipulação da guerra, da política aberta entre extrema direita – e seus aliados menores liberais – e o PT, de fato chegam na vida de alguns brasileiros. Na vida política de uma trabalhadora brasileira, que aparece sem referência a um marido, um pai da garota, e que se mostra politicamente aberta, em disputa.
É muito frágil, ao final das contas, o motivo decisivo que levou aquela mulher, dona de casa pobre do Brasil, a votar em Bolsonaro: uma imagem falsa de um Lula umbandista circulando pelas redes sociais. É claro que a conclusão final, a partir da realidade falsificada das redes sociais feita para enganá-la, só é possível porque existe um gigantesco movimento de massas, movimento teo-político, que associa Lula ao demônio, em milhares de igrejas, em todo o Brasil, lá onde o PT é o “Partido das Trevas”.
Bem como o “marxismo cultural”, dos professores das universidades públicas do Brasil, é o mal, como Silas Malafaia deixa muito claro em um culto em sua Igreja. É por muito pouco, uma falsificação muito barata na imagem, associado a uma extraordinária organização política de massas à direita, fanática e em pé de guerra, nunca antes vista, que aquela mulher, amorosa e democrática em casa com a própria filha, votará contra os seus interesses de classe, porém a favor da unidade dos seus “valores”, necessária à sua vida, política inventada, falsificada, por sua religião.
Enquanto isso, sua filha adolescente, ainda não capturada pela guerra política massiva que arruinou o valor ético da esquerda – no lavajatismo, o braço liberal do bolsonarismo, bem lembrado no filme… e ainda mais no filme anterior de Petra, Democracia em vertigem –, ainda não marcada pelo cansaço e pela dureza sem perspectiva da vida do trabalho no Brasil, ainda não integrada na política grupal da instrumentalização do ódio e da paranoia, ainda sonha com Lula, com alguma qualidade política que sua figura ainda teria.
O mais belo da passagem é o respeito de sua mãe, eleitora de Jair Bolsonaro por um fio de imagem, pela opinião da filha. Esta cena condensa o espírito da ideia de democracia desenvolvida por Petra Costa ao longo do filme, a sua elaboração de uma própria filosofia política, a democracia como algo sublime e frágil, ideal sutil, quase estético, da “convivência com o inimigo”, de modo que o mais frágil seja protegido da força destrutiva da brutalidade.
5.
Apocalipse nos trópicos, como Democracia em vertigem, é um filme admirável por muitos motivos. Como tudo que é notável, ele sustenta múltiplos e integrados discursos e perspectivas, sobre o seu mundo e a sua própria fatura. Em primeiro lugar, se destaca pela clareza exemplar em que um processo histórico e social muito complexo – que atravessa a todos com forças passionais e com a cegueira da razão, pelo desejo como política – é reconstruído e explicitado.
Há uma força de verdade e de interesse íntimo pela história, a favor de um ideal democrático e socialista de país, de forma a ordenar e tornar visível e compreensível o caos da violência política, o delírio, a mentira em massa e as estratégias calculadas do que tomou o país nas formas do espetáculo total da nova direita.
Petra Costa vai junto à vida e às formas de performance estetizantes da direita encantada do bolsonarismo, ao mesmo tempo em que reconstrói todos os passos, os elementos, os fatos e as forças, que tornaram possíveis a explosão do neofascismo – teo-político, neoliberal autoritário – no Brasil.
Realizando esse intenso impulso de respeito e totalidade do entendimento da história, seus filmes tornam-se referências para uma certa ordem das coisas do país para si mesmo. Em um tempo que tira a força da própria ideia de história, a cineastas realiza a sua psicanálise pessoal, tornada pública e feita como cinema, ao discutir o destino de sua própria família, cindida entre os ricos, donos do Brasil, que partilharam o poder com as formas sociais e políticas mais violentas que temos, e o impulso progressista e socialista da “ala” de seus pais das elites brasileiras, que é a dela, e é, também, a nossa.
Cuidando de si, da história das próprias contradições, entre o avó construtor de Brasília – que se tornou bilionário com todos os governos do Brasil, incluindo todos os 21 anos prósperos para ele de ditadura militar no Brasil – e os pais que confrontaram a ditadura como militantes do PC do B, a própria Petra Costa parece encarnar com nitidez o espírito utópico (ideológico…) da redemocratização brasileira, em que a generosidade social e os direitos com democracia liberal poderiam indicar o caminho da realização verdadeira do sonho de um Brasil modernista.
Aquele país, inteligente, crítico, justo, cosmopolita, comprometido, universal e singular a um tempo, que ela tenta reunificar, e que esteve também na base da construção real da cidade, no seu sonho de Brasília. No cinema de Petra Costa, para entender a história do país que deságua na guerra do agora, é preciso entender a história do país inscrita e que constitui a própria capacidade de pensar e de imaginação política da cineasta, e de sua facção de classe.
A força destes dois planos de história andado juntos em suas narrativas auto-analíticas, o mundo algo proustiano de uma jovem cineasta política didática brasileira, é notável.
6.
Seus filmes, de grande porte de esclarecimento, e de respeito de investigação de si mesma, demonstram o valor contemporâneo possível da real obra de arte didática. Eles constituem um fórum, um espaço coletivo de vinda à luz de forças da história, que falam nos filmes, estes espaços-tempo-luz fascinados pela estética e a política utópica de Brasília.
Petra Costa cria uma Brasília cinematográfica, em que a democracia social mais ampla do país, em vertigem das próprias contradições, e o apocalipse da democracia real do país podem se demonstrar como a ordenação em linguagem de forças políticas, no limite da violência. Seus filmes Brasília, de seu sonho Brasil, são um verdadeiro e universal, mais representativo e mais vivo, fórum democrático e esperançoso do que tem podido fazer o próprio país.
Enquanto a perspectiva fundamentalista antissocial religiosa, porque aliada do mais descarado desprezo objetivo pelos pobres que “representa”, que de fato encanta, se expressa em uma gigantesca rede nacional de pequenas igrejas, bibocas de organização pela vida dos muito pobres, em todos os lugares do pais, confundindo definitivamente igreja com um diretório de partido, o cinema de Petra Costa tenta restaurar, como tenta restaurar sua Brasília psíquica, o valor de uma democracia sensível, interessada e humana.
Uma democracia social, que negocie o luxo e a riqueza moderna dos grandes palácios do Brasil e seus donos, construtores e moradores, e a vida das vielas desesperançadas do mundo do trabalho e suas senhorinhas em disputa, transformados por Lula em 2010 em cidadãos mundiais do gozo do consumo, e transformados pelas igrejas e pelo lavajatismo em 2016, em cidadãos políticos nacionais dos valores cristãos empreendedores.
Nos filmes de Petra Costa, tudo isso tem voz, como as suas inquietações internas e políticas tem voz, se expõem e se afirmam. Tudo se representa, se ordena, se faz em alguma medida compreender e pode existir, como um país que, apesar de frequentemente rompido de si mesmo, pode existir.
Esse é o fórum, de inteligência e amor pelo Brasil, de democracia como biopolítica do cinema – e não das igrejas – que Petra Costa inventou com seu trabalho, o ponto de vista histórico da classe média progressista do país sobre a própria histeria nacional, no limite de destruir sua Brasília.
O cinema de democracia, e horizonte inclusivo, da Brasília em permanente construção, e restauração, de Petra Costa, em um país em que democracia passou a ser não mais acreditar nisso.
*Tales Ab’Saber é professor do Departamento de Filosofia da Unifesp. Autor, entre outros livros, de O soldado antropofágico (Hedra) [https://amzn.to/4ay2e2g]
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