O desafio chinês

Imagem: Wolfram K
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Por THOMAS PIKETTY*

O neoliberalismo, abandonando o poder aos mais ricos e enfraquecendo o poder público, no Norte como no Sul, apenas reforçou o modelo chinês

O Partido Comunista Chinês (PCCh) já celebra seu centenário e os países ocidentais ainda não conseguiram definir sua atitude em relação ao regime de Pequim. Sejamos diretos: a resposta passa pelo fim da arrogância ocidental e pela promoção de um novo horizonte emancipatório e igualitário em escala mundial – uma nova forma de socialismo democrático e participativo, ecológico e pós-colonial. Se insistirem em sua postura moralista habitual e em um modelo hipercapitalista datado, os países ocidentais correrão o risco de encontrar grandes dificuldades no enfrentamento do desafio chinês.

Autoritário e opressor, o regime chinês certamente possui muitas fragilidades. De acordo com o jornal Global Times, seu diário oficial, a democracia à chinesa seria superior ao supermercado eleitoral ocidental pois confia os destinos do país a uma vanguarda motivada, determinada, selecionada, representativa da sociedade – o PCC conta com cerca de 90 milhões de membros –, e muito mais implicada a serviço do interesse geral do que o eleitor médio, versátil e influenciável.

Na prática, porém, o regime assemelha-se cada vez mais a uma ditadura digital tão perfeita que ninguém deseja imitá-lo. O modelo de deliberação do PCC é ainda menos convincente, uma vez que não deixa qualquer rastro ao exterior. Enquanto isso, tornam-se cada vez mais claras a instauração de uma vigilância generalizada sobre as redes sociais, a repressão de dissidentes e de minorias, a brutalização do processo eleitoral em Hong Kong e as ameaças à democracia em Taiwan.

A capacidade de um tal regime de seduzir as opiniões de outros países (e não apenas de seus dirigentes) parece limitada. É preciso incluir nesta lista o forte aumento das desigualdades, o envelhecimento acelerado, a opacidade extrema que caracteriza a divisão das riquezas, e o sentimento de injustiça social que dela decorre e que não poderá ser eternamente apaziguado por alguns ocultamentos.

Economia mista

Apesar de suas fragilidades, o regime chinês dispõe de vantagens sólidas. Quando as catástrofes climáticas vierem, ele facilmente responsabilizará as antigas potências que, apesar de sua população limitada (o conjunto que inclui os Estados Unidos, o Canadá, a Europa, a Rússia e o Japão concentra cerca de 15% da população mundial), representam cerca de 80% das emissões de carbono acumuladas desde o começo da era industrial.

De forma geral, a China não hesita em lembrar que se industrializou sem valer-se da escravidão nem do colonialismo, dos quais ela mesma sofreu as consequências. Isso a permite ganhar alguns pontos face ao que se percebe como a eterna arrogância dos países ocidentais, sempre dispostos a dar lições a todo o planeta quando se trata de justiça e democracia, enquanto se mostram incapazes de enfrentar as desigualdades e as discriminações que os minam; pactuando com todos os poderosos e oligarcas que lhes beneficiam.

No plano econômico e financeiro, o Estado chinês dispõe de ativos consideráveis, muito superiores às suas dívidas, o que lhe oferece os meios para uma política ambiciosa, tanto no nível doméstico quanto no plano internacional, particularmente no que diz respeito aos investimentos em infraestrutura e na transição energética. O poder público detém, hoje, cerca de 30% daquilo que se pode possuir na China (10% do setor imobiliário, 50% das empresas), o que corresponde a uma estrutura de economia mista que não é totalmente distinta daquela que se encontrava no Ocidente dos “trinta gloriosos”.

Por outro lado, é chocante constatar em que ponto os Estados ocidentais se encontram, no começo dos anos 2020, com posições patrimoniais quase nulas ou negativas. Por não terem equilibrado as contas públicas, estes países acumularam dívidas, colocando, ao mesmo tempo, uma parte crescente de seus ativos à venda, de modo que as primeiras acabaram ultrapassando a segunda.

Países ricos, Estados pobres

Sejamos bem claros: os países ricos o são no sentido de que os patrimônios privados nunca foram tão elevados; seus Estados é que são pobres. Se persistirem nessa via, poderão terminar com um patrimônio público cada vez mais negativo, numa situação em que os detentores dos títulos da dívida possuirão não apenas o equivalente a todos os ativos públicos (edifícios, escolas, hospitais, infraestruturas etc), mas também o direito de sacar uma parte crescente dos impostos dos futuros contribuintes. Ao contrário, seria possível, como se fez no pós-guerra, reduzir a dívida pública de forma acelerada absorvendo parte dos maiores patrimônios privados, assim aumentando as margens de manobra do poder público.

É a este custo que reestabeleceremos uma política ambiciosa de investimento em educação, saúde, meio ambiente e desenvolvimento. É urgente que se suspendam as patentes das vacinas, que se compartilhem as receitas das multinacionais com os países do Sul e que se coloquem as plataformas digitais a serviço do interesse geral. De forma mais ampla, é preciso promover um novo modelo econômico fundado no compartilhamento do saber e do poder em todos os níveis, nas empresas e nas organizações internacionais.

O neoliberalismo, abandonando o poder aos mais ricos e enfraquecendo o poder público, no Norte como no Sul, apenas reforçou o modelo chinês – da mesma forma que o fez com patético neonacionalismo trumpista ou modista.

Chegou a hora de passar para a próxima.

*Thomas Piketty é diretor de pesquisas na École des Hautes Études en Sciences Sociales e professor na Paris School of Economics. Autor, entre outros livros, de O capital no século XXI (Intrinseca).

Tradução: Daniel Pavan.

Publicado originalmente no jornal Le Monde.

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