O dia seguinte

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Por EDUARDO BORGES*

O impacto dos Manifestos pela democracia no Brasil profundo

No último dia 11 de agosto, através de Manifestos públicos, a democracia brasileira acordou recebendo afagos e gestos de solidariedade em defesa de sua manutenção como mediadora das relações políticas no Brasil. Mais do que isso, no dia 16 do mesmo mês de agosto, em cerimônia de posse do presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o novo mandatário o ministro Alexandre de Morais fez discurso duro em defesa de eleições limpas e seguras para o próximo pleito que se aproxima. Em ambas situações, os discursos visavam um alvo certo, o presidente Jair Bolsonaro e sua língua solta e leviana. Mas a grande expectativa do day after de atos como os acima citados é saber quais desdobramentos efetivos eles terão em termos de penetração no tecido social do Brasil profundo, aquele da fome e do desemprego.

Pois bem, não quero ser um estraga prazeres da festa alheia, até porque, não importa a conjuntura ou circunstância, defender a democracia e o Estado de direito é sempre um oportuno e necessário ato de coragem.

Contudo, gostaria de usar linhas para fazermos uma breve reflexão sobre o que está em jogo nessa eleição que se aproxima e o quanto manifestos pró democracia como o da FIESP podem significar uma grande cortina de fumaça para a guerra civil oculta representada pela luta de classes e pela condição de miserabilidade de 30 milhões de brasileiros. Efetivamente, estamos caminhando para um pleito plebiscitário em que a escolha é entre a civilização ou a barbárie. Nesse caso, não será um documento assinado por membros da FEBRABAN e da FIESP que irá definir a dinâmica política, social e econômica brasileira para os próximos quatro anos.

Tenho visto alguns comentários eufóricos em torno do manifesto “Em Defesa da Democracia e da Justiça”, esse da FIESP, e a “Carta da USP”, produzida pela faculdade de Direito da USP, enxergando-os como um momento de “união” progressista entre o capital e o trabalho. Sejamos realistas, eles não se misturam pacificamente em nenhuma situação.

Assim sendo, vamos direcionar nosso olhar para a parte vazia do copo em torno desses chamados manifestos pela democracia. Em livro que publiquei recentemente demonstrei a natureza golpista e antidemocrática de nossa elite.[1]

Quanto à “Carta da USP”, que contou com o apoio de juristas, políticos, movimentos sociais e entidades da sociedade civil, tem uma representatividade que de certa forma reproduz os diversos movimentos políticos empreendidos historicamente por uma parcela mais progressista da classe média em diversos momentos da República. Mas até que ponto esses manifestos atingem, de maneira direta, a base da pirâmide social em que 90% dos brasileiros têm renda inferior a R$ 3,5 mil reais e 70% ganham até dois salários mínimos. Não estou nem contando os que estão desempregados ou vivendo abaixo da linha da pobreza.

Sei que alguns leitores vão me chamar de pessimista, que só enxerga o lado vazio do copo. Ok, aceito a crítica, mas não vou me furtar a continuar me posicionando da forma que entendo a mais realista. Não é somente defender a democracia, mas defender um outro tipo de democracia que respeite a dignidade humana e se preocupe radicalmente com a inclusão social. Iniciativas como a da “Carta da USP” são importantes, mas continuam falando somente para uma bolha de letrados e de convertidos. Mas e a “Carta da FIESP”? a que bolha se destina?

Vamos refletir aqui sobre os outros documentos que também foram escritos nessa onda de defesa da democracia pelos representantes da burguesia nacional. O primeiro deles é o manifesto “Em Defesa da Democracia e da Justiça” produzido no âmbito da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP). Certamente, por ser a mais icônica entidade representativa do PIB nacional, qualquer manifestação de sua parte tende a ganhar repercussão. Mas até que ponto devemos olhar para o manifesto da FIESP e enxergarmos nele uma representatividade simbólica de certo progressismo social por parte da entidade patronal.

Não sejamos ingênuos. Os números são cruéis e realistas. Entre seus 131 sindicatos filiados somente 18 assinaram o documento. Definitivamente, o PIB brasileiro, está pouco se lixando para a nossa combalida democracia. Mais do que isso, o que eles entendem por democracia não é, necessariamente, o que nós entendemos. Tem mais, a Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) também não assinou o manifesto. Quer mais? O Ciesp (Centro das Indústrias do Estado de São Paulo) também optou em ficar de fora dessa “festa da democracia”.

Portanto, para o grande capital, defender a democracia, o Estado de direito e o sistema eleitoral brasileiro é muito mais uma retórica do que algo efetivo. A democracia que interessa para essa gente não é aquela que propõe inclusão social, mas a que cria um espaço político razoavelmente estável para que eles possam operar economicamente com mais tranquilidade em um confortável ambiente de segurança jurídica. A democracia que eles apoiam é a da reforma trabalhista e previdenciária que retira direitos históricos da classe trabalhadora. É o caso de se perguntar, quantos dos que agora assinaram o manifesto da FIESP vão apertar 13 em um eventual segundo turno entre Lula e o Bozo?

Vejam o caso do ex-ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Marco Aurélio Mello, que assinou e defendeu a “Carta da USP”, que fez críticas à postura de Bolsonaro de questionar a lisura das urnas eletrônicas sem apresentar provas, mas que em um eventual segundo turno afirmou que votaria no capitão. Quantos dos signatários do manifesto da FIESP não podem ter a mesma postura “coerente” do ex-ministro do STF? A mesma pergunta pode ser feita em relação aos signatários da “Carta da USP”. Por que não?

Temos também o caso da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), aquela que já foi presidida pelo grande democrata Raymundo Faoro, pasmem, resolveu desdenhar a “Carta da USP” e produzir manifesto próprio. Por que será? O que temem nossos ilustres juristas? Quem eles não querem contrariar?

Repito, defender a democracia é sempre salutar, mas é necessário desconfiarmos das reais “boas intenções” dos que estão do “nosso lado”. Capital e trabalho são adversários porque nasceram com interesses classistas diferentes. Em uma sociedade capitalista como a brasileira, aquilo que se chama de democracia liberal nada mais é do que a democracia da classe dominante. Nesse caso, Manifestos como os da FIESP, cujos membros seguramente cravaram 17 em 2018 em defesa da “democracia”, são só uma forma do grande capital estabelecer um limite para as peripécias do capitão Corona. É só uma forma deles fazerem o trabalho para o qual Paulo Guedes foi indicado por eles a fazer. Ou seja, botar rédeas no “mito”.

Por outro lado, documentos como o da USP, ao contar com o apoio de artistas, intelectuais e alguns membros da burguesia econômica, são interessantes, criam um fato político, expõem o autoritarismo fascistoide e golpista do presidente da República, mas tendem a cair no esquecimento diante do verdadeiro golpe que são as cotidianas ações antipovo empreendidas diariamente pelo governo (com a indiferença de muitos “democratas”).

As praças têm que voltar a ser do povo como o céu é do condor, como escreveu o genial baiano Castro Alves. Mas sejamos realistas, essas praças dificilmente serão ocupadas pelos cidadãos do Brasil profundo. Na atual e cruel conjuntura eles estão procurando emprego ou buscando manter o que tem. E para esses, manifestos pela democracia, por mais importantes que sejam, são palavras ao vento. Urge criarmos condições de chegarmos até eles.

*Eduardo Borges é professor de história na Universidade do Estado da Bahia. Autor, entre outros livros, de Golpe: o golpe como método político da elite brasileira (Kotter).

 

Nota


[1] Eduardo Borges. Golpe: o golpe como método político da elite brasileira. Curitiba: Kotter Editorial, 2022.

 

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