Por JOSÉ LUÍS FIORI*
A nova ordem mundial “sino-americana” deverá nascer de fato do outro lado da China, a partir de uma disputa que já dura 70 anos pelo controle da ilha e do estreito de Taiwan
“For more than 70 years, China and Taiwan have avoided coming to blows. The two entities have been separated since 1949, when the Chinese Civil War, which had begun in 1927, ended with the Communist’s victory and the Nationalist’s retreat to Taiwan[…]. In recent months, however, there have been disturbing signals that Beijing is reconsidering its peaceful approach and contemplating armed unification”. (O. S. Mastro, The Taiwan Temptation).[1]
A retirada das tropas americanas do Afeganistão deixa atrás de si um vácuo de poder e uma zona de grande turbulência no centro da Ásia, nas “costas” da China. Deixa por fazer também uma “negociação de paz” e “divisão de poder” em Cabul que produzirá efeitos em cadeia, por um longo tempo, em boa parte da Ásia e do Oriente Médio. Uma negociação de paz que não contará com a participação direta dos EUA, principal responsável e maior derrotado na Guerra do Afeganistão, que envolverá de uma forma ou outra países que não participaram diretamente do conflito, mas que serão afetados por seus desdobramentos nos próximos anos, como é o caso de Paquistão, Índia, China e da própria Rússia, que tem presença militar importante no Quirguistão e no Tajiquistão. Deve-se também incluir Irã e Turquia, que atuam como uma cadeia de transmissão geopolítica na direção do Oriente Médio, de onde os EUA também estão se retirando, ou pelo menos reduzindo sua presença militar.
Mesmo assim, e apesar da complexidade desse quebra-cabeças no centro da Ásia, a nova ordem mundial “sino-americana” deverá nascer de fato do outro lado da China, a partir de uma disputa que já dura 70 anos, em torno à ilha e ao controle do Estreito de Taiwan, onde se tem se assistido, nos últimos meses, a uma escalada de ameaças e “exercícios de guerra” cada vez mais frequentes e perigosos, envolvendo as Forças Armadas chinesas e americanas, junto com seus principais no sul e sudeste asiático.
Agora, na recente comemoração dos 100 anos do PCC, o governo chinês tornou púbico um plano estratégico de assalto e ocupação militar de Taiwan, já contabilizando a resposta previsível dos EUA. Apesar de que todos saibam que neste caso a surpresa do primeiro ataque é um elemento fundamental, e que portanto a divulgação deste plano é apenas mais um passo na escalada psicológica do clima de guerra na região. Por outro lado, os EUA já mudaram sua “grande estratégia” e estão deslocando seu foco do Atlântico, da Europa do Leste e da Rússia, na direção do Pacífico e da Ásia, hoje epicentro dinâmico da expansão do poder e da riqueza mundiais, e do crescimento competitivo dos arsenais militares do mundo. O mais provável é que substituam progressivamente seu “espantalho russo” pelo seu novo grande inimigo chinês.
Mas atenção, porque essa mudança americana não foi provocada pela explosão econômica da China, e sim pela decisão chinesa de construir um poder naval autônomo – decisão que só foi efetivada de fato a partir da primeira década do século XXI. Um poder naval chinês que seja capaz de desbloquear a livre circulação de seus fluxos comerciais e energéticos através dos estreitos de Taiwan e de Malaca, e de permitir a projeção internacional do seu pode marítimo. Um projeto que se acelerou definitivamente depois da posse do presidente Xi Jinping, em 2013, e do seu anúncio de que a China se propõe a ser um poder militar global até meados do século XXI.
Decisões que redefiniram imediatamente a importância estratégica das duas grandes “linhas de ilhas” que bloqueiam a saída marítima chinesa como se fossem uma “Grande Muralha” invertida. Bem no centro da primeira dessas duas cadeias de ilhas está Taiwan, uma espécie de porta-aviões inimigo situado a apenas 130 quilômetros da costa chinesa.
Em 1954, o secretário de Estado norte-americano John Foster Dulles afirmou que a ilha de Taiwan não passava de um “punhado de rochas”.[2] Ao mesmo tempo, foi o próprio Dulles que ameaçou a China com um ataque atômico, caso tentasse retomar à força esse “penhasco” onde se refugiou, em 1949, o general nacionalista Chiang Kay-shek, junto com o que restou de suas tropas derrotadas pela revolução comunista liderada por Mao Tse-tung. Apesar do aparente paradoxo, Dulles tinha razão, porque a ilha de Taiwan era apenas um punhado de rochas que os próprios americanos transformaram num território estratégico para barrar a expansão do poder chinês.
A mesma ambiguidade existiu pelo lado do império chinês, que só deu alguma importância a Taiwan muito tarde, após sua conquista pelos holandeses, em 1624, e pelos espanhóis, em 1626, e depois de a ilha virar refúgio dos últimos soldados da Dinastia Ming derrotados pela Dinastia Qing, que conquistou a ilha em 1683. Esta só a transformou oficialmente em província do Império em 1885, dez anos antes de entregá-la ao Japão como tributo por sua derrota na guerra de 1895, contra os japoneses; estes a converteram numa colônia que só foi devolvida à China em 1945, depois da rendição japonesa na Segunda Guerra Mundial. E assim mesmo, quatro anos depois, a ilha voltou a ser o refúgio do general Chiang Kay-shek.
Em 1949, Taiwan tinha apenas sete milhões de habitantes e só sobreviveu como “província rebelde” graças à proteção militar dos EUA. Na prática, Taiwan se transformou num “Estado vassalo” dos EUA, com a pretensão irrealizável de “reconquistar” e “reunificar” a China. O mesmo objetivo invertido do governo chinês, uma vez que nenhum dos dois jamais aceitou a ideia americana de criação de “duas Chinas”. E foi aqui que começou a história contemporânea desse “penhasco”, que adquiriu importância estratégica cada vez maior com o passar das décadas, confirmando a tese de que é a luta pelo poder que define a importância da geografia. Começando em 1954, logo depois do fim da Guerra da Coreia, quando a China tentou retomar as ilhas de Quemoy e Matsu, no “caminho” de Taiwan, mas foi repelida pelos porta-aviões norte-americanos.
Logo em seguida, foi assinado o “Acordo de Defesa Mútua”, que transformou Taiwan também num “protetorado militar”, uma vez mais defendido pelas forças norte-americanas em 1958, quando as tropas chinesas voltaram a ser repelidas das duas pequenas ilhas, e quando a URSS ameaçou pela primeira vez utilizar armas atômicas caso os EUA atacassem o território chinês.
Desde então e até o início da década de 1970, vigorou uma espécie de “coexistência combatente” entre China e Taiwan, onde os EUA instalaram finalmente suas próprias bases militares. No entanto, a situação mudou radicalmente depois da assinatura do Comunicado de Shangai, em 1972, que consagrou a reaproximação entre os dois países depois do reconhecimento, por parte dos EUA, de que o território de Taiwan faz parte e é inseparável do território chinês, porque só existe uma China, com capital em Pequim. Depois desse reconhecimento, os EUA transferiram sua embaixada para Pequim, cancelaram o Acordo de Ajuda Mútua com Taiwan, desmontaram sua base militar na ilha e finalmente retiraram suas tropas do território de Taiwan. E foi esta vitória chinesa que abriu as portas para a integração econômica que transformou em poucos anos Taiwan no segundo maior investidor “estrangeiro” na economia continental da China.
A situação de calmaria, entretanto, se modificaria uma vez mais na década de 1990, após o fim da Guerra Fria, quando o primeiro governo eleito de Taiwan propôs a independência da ilha, mesmo sem contar com o apoio explícito dos EUA. A proposta provocou imediata mobilização militar da China, trazendo de volta ao Estreito de Taiwan os porta-aviões da Sétima Frota dos EUA. Tudo indica que exatamente naquele momento começou a ser concebida a nova estratégia chinesa de criação de um poder naval autônomo, capaz de derrotar as forças americanas no Mar do Sul da China e em Taiwan.
Como resultado dessa decisão, a China começou a adquirir ou produzir os 80 submarinos convencionais e atômicos de que dispõe atualmente, ao lado de 3 porta-aviões (o terceiro ainda inacabado) e mais 1.275 novos barcos que foram somados à sua guarda costeira, transformando-a no maior poder naval entre todos os seus vizinhos asiáticos.[3]
Os EUA controlam hoje todos os pontos estratégicos entre o mar do Japão, o Oceano Indico e o Pacífico Sul capazes de bloquear instantaneamente os fluxos comerciais e energéticos indispensáveis à sobrevivência diária da China. Depois da decisão chinesa de criar um poder naval próprio, e após o gigantesco crescimento da economia chinesa, a situação ficou intolerável para os chineses. Estes agora já podem se propor a controlar o Mar do Sul da China e vencer os EUA em todos os cenários de guerra, além de dispor do poder naval, aéreo e terrestre para ocupar Taiwan, mesmo no caso do envolvimento de tropas americanas, a menos que os EUA decidam utilizar armamento atômico, com consequências imprevisíveis para os dois lados, uma vez que a China provavelmente responderia utilizando suas próprias armas atômicas táticas.
Os norte-americanos têm plena consciência de que o controle de Taiwan deixou de ser apenas uma disputa territorial chinesa, e passou a ser uma condição essencial para que a China tenha acesso soberano ao Pacífico e ao Mar da Índia. E os EUA também sabem que os chineses podem ocupar e vencer Taiwan em poucos dias ou semanas, mesmo com a intervenção americana. Ao mesmo tempo, sabem que sua derrota na batalha em torno da ilha afetaria seu poder naval no sul do Pacífico, e sua credibilidade frente a seus aliados regionais e em todo o mundo.
Por outro lado, os chineses têm plena consciência de que sua vitória militar não encerraria o problema de sua “província rebelde”, e que depois de sua vitória sobre Taiwan, a ilha poderia se tornar cenário de uma guerra de guerrilha sem fim, financiada pelos americanos e seus aliados regionais, como aconteceu de forma invertida com os EUA na guerra do Vietnã, nos anos 1960-70.
Por isso, se estivéssemos frente a uma partida de xadrez, poderíamos dizer que os chineses estão com as “pedras brancas” e são eles que deverão abrir o jogo e mover suas peças em primeiro lugar. Mas os norte-americanos possuem a “vantagem da defesa”[4] e só moverão suas “pedras pretas” depois dos chineses. Se a China atacar Taiwan, teremos uma ordem mundial; mas senão o fizer, teremos uma outra “ordem” inteiramente diferente, e o mesmo aconteceria caso os norte-americanos ultrapassassem a “linha vermelha” definida pelos chineses.
Nesse contexto, quem “piscar primeiro” ou cometer um “erro de cálculo” poderá enfrentar consequências catastróficas. Por isso, o mais provável no curto prazo é que Taiwan se transforme no foco central e conflito permanente (como Berlim, no início da Guerra Fria), a partir de onde irão nascendo e se definindo os “protocolos básicos” da nova “ordem internacional”.
Se isso ocorrer, há que se manter a cabeça fria, porque talvez o mundo possa estar chegando, por este caminho, ao seu “novo normal”, diferente do que se poderia pensar à primeira vista, porque em última instância, como já dissemos em outro artigo, “o que estabiliza a ordem hierárquica deste sistema interestatal – sempre de forma transitória – não é a existência de um líder ou ‘hegemon’, é a existência de um conflito central, e de uma guerra virtual entre as “grandes potências”.
Uma espécie de ponto de referência para o cálculo estratégico de todos os demais Estados, que atua também como um freio ao arbítrio unilateral dos mais poderosos. Como ocorreu com a disputa entre o Império Habsburgo e a França, no século XVI; ou com a disputa entre a França e a Grã-Bretanha nos séculos XVIII e XIX; ou mais recentemente, com a disputa entre os EUA e a União Soviética, depois da Segunda Guerra Mundial”.[5]
A grande diferença, em relação à Guerra Fria, é que agora são duas grandes civilizações que estão lutando, mas ainda assim, estão lutando com as mesmas armas, pela mesma riqueza capitalista e pelo mesmo poder global.
*José Luís Fiori é professor do Programa de Pós-graduação em Economia Política Internacional da UFRJ. Autor, entre outros livros, de O Poder global e a nova geopolítica das nações (Boitempo).
Notas
[1] Mastro, O. S., “The Taiwan Temptation”, July/August 2021, p.1. In: https://www.foreignaffairs.com/print/node/1127523.
[2] Expressão utilizada pelo secretário de Estado norte-americano John Foster Dulles (1988-1959) para caracterizar a irrelevância geográfica da ilha de Taiwan, em 1954. Cf. Kissinger, H. Sobre a China. São Paulo: Objetiva, p. 161.
[3] Jesus Junior, H. e Godinho, N.V.R. “A modernização naval chinesa e as implicações no Mar do Sul da China”. Revista da Escola de Guerra Naval, v. 25, n. 3, p. 791-826, set-dez. 2019.
[4] Carl von Clausewitz dizia que, na guerra, é “mais fácil conservar do que do que adquirir; de onde se segue imediatamente que, supondo que os meios são iguais dos dois lados, a defesa é mais fácil do que o ataque. Mas de onde provém essa maior facilidade da conservação e da proteção? Do fato de que todo o tempo que se escoa inutilizado se torna proveito do defensor” (Clausewitz, C. von. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, p. 427).
[5] Fiori, J. L. O poder global e a nova geopolítica das nações. São Paulo, Boitempo, p. 31.