Por FLÁVIO MAGALHÃES*
Nesta eleição o Brasil tem sua própria comédia humana, uma tragédia cômica
Em Ilusões Perdidas, Honoré de Balzac narra a história de Lucien Rubempré, um jovem poeta que sai de uma cidade do interior da França chamada Angoulême, onde havia feito uma parceria com um amigo seu, David Séchard , ambos administrariam uma tipografia herdada por David de seu pai. Com o intuito de juntar dinheiro e experiência, Lucien Rubempré sai da pacata cidade do interior, que denunciava seu sobrenome camponês, para tentar a sorte na gloriosa e sonhada Paris da década de 1830.
Na cidade que Lucien Rubempré esperava conseguir dinheiro e publicar seus poemas, ele descobre o gosto pelo dinheiro e também entra em uma atividade que nascia e se firmava nesse momento com força, o jornal. Ambos elementos serão os catalisadores para que Lucien Rubempré vá progressivamente perdendo aqueles sonhos e ilusões que antes habitavam em sua cabeça literária e em seu lugar passam a existir as disputas políticas e mesquinhas entre os diferentes jornais e o prazer que o dinheiro pode comprar. É apenas ao final de sua trajetória que Lucien Rubempré volta para o interior, com seus sonhos despedaçados, e percebe lá mesmo, na companhia de seu amigo e de sua irmã o quão pobre foi na verdade a sua busca incessante pela fama e pelo dinheiro.
Honoré de Balzac escreveu uma série de livros na qual tentou capturar elementos fundantes da sociedade francesa do século XIX. Ilusões Perdidas é o centro desta vasta obra do escritor francês, à qual ele mesmo deu o nome de “comédia humana”. Honoré de Balzac conseguiu captar a transição de uma sociedade aristocrática para a estruturação do capitalismo e isso constitui sua maior virtude. Não estamos de forma alguma em um dos romances de Balzac, mas definitivamente nesta eleição temos nossa própria comédia humana, uma tragédia cômica. É sobre ela que devemos falar.
O primeiro turno acabou e, ao contrário de todas as pesquisas, Lula ficou muito pouco à frente de Jair Bolsonaro, totalizando 48% dos votos contra 43% do atual presidente. A vitória não é tão simples quanto os petistas ingênuos e eufóricos poderiam esperar. Contudo, há de se questionar agora novamente: o que fazer? De um lado, derrotar Jair Bolsonaro é o objetivo principal da eleição, ainda que a eleição não seja a única arma, nem a mais importante na luta política. Por outro lado, votar em Lula é também votar em um projeto determinado, ainda que Lula não tenha apresentado nenhum projeto. Vejamos a coisa mais de perto.
Lula tentou reunir uma frente ampla contra o “fascismo” em nome da democracia. Para os petistas, existia fascismo na disputa eleitoral de Dilma Rousseff contra Aécio Neves em 2014, mas também existia nos diversos governos do PSDB em São Paulo, entre eles o de Geraldo Alckmin. Alckmin foi aquele que governou São Paulo por diversos anos, mandou a PM atacar manifestantes, professores, ocupações do MST e do MTST. Não obstante, foi com o próprio Alckmin que Lula se uniu, tendo o ex-governador como seu vice-presidente na chapa. Ora, os petistas acreditam que todos da esquerda são pessoas que caíram em seus truques retóricos. O suposto “fascismo” nada mais é do que uma farsa, pois como combater a democracia ao ter como vice aquele que era “fascista”? Não se pode dizer que Geraldo Alckmin seja sinônimo de democracia e muito menos de uma defesa desta.
Aliás, o que é democracia? O PT brada aos quatro ventos esta palavra, uma abstração total da realidade, pois o que é democracia para as pessoas pobres? Se olharmos para a parte apenas formal da democracia, isto é, pluralidade de partidos, disputas eleitorais, liberdade de opinião, então se deixa de lado todo o resto, seu conteúdo real. A democracia em seu conteúdo real envolve fim da exploração do capital pelo trabalho, fim da miséria absoluta e da fome, fim da dependência econômica, condições para o lazer, transporte, educação, saúde, reforma agrária, entre inúmeros outros pontos.
Se entendemos por democracia isto, então os petistas se movem em terreno pantanoso ou por acaso esses pontos todos foram alcançados nos longos 14 anos de administração petista? A democracia utilizada pelo PT é apenas esta forma abstrata, este conceito alienado, sem conteúdo que tem como único objetivo angariar o máximo de apoio possível e se mostrar impossível de se combater, afinal quem poderia ser contra a democracia?
Mas eram justamente os diferentes apoios que Lula desejava reunir para a sua campanha presidencial. Os “golpistas” de ontem são os aliados de hoje. Eunício de Oliveira, antes tido como um dos “golpistas”, apoia Lula. Simone Tebet, que apoiou as reformas trabalhista e previdenciária, declarou seu apoio a Lula. José Serra, outro “fascista” segundo o dicionário petista, também. Os economistas que perpetuam a superexploração do trabalho e a dependência econômica como Pedro Malan, Pérsio Arida, Edmar Bacha e Armínio Fraga declararam apoio ao petista. E, sem o menor medo, dizem que tomaram essa decisão em favor da “democracia”.
Como é bela esta democracia! Ela é um verdadeiro emplasto, aquele que Brás Cubas gostaria de produzir, contra todos os males que já vagaram pela Terra desde a abertura da caixa de Pandora. Como são verdes os campos da tragédia! Não existe coerência nenhuma no que os petistas dizem. Em um dia é um argumento, no dia seguinte é seu exato oposto. Mas, lógico, devemos abdicar de tudo pela democracia, afinal sem essa democracia que existe não podemos comer, nem beber, nem lutar pela Revolução Brasileira.
Para reunir todo esse apoio, Lula não lançou nenhum programa de governo concreto. Mas é claro, nem poderia. Como defender a democracia se sabemos que é contra o bem-estar do povo que muitas de suas políticas econômicas irão se determinar. O liberalismo econômico nunca abandonou Lula e não será agora que o metalúrgico do ABC se transformará em um marxista-leninista. Henrique Meirelles, o ministro do “golpista” Temer, também declarou seu apoio a Lula e ele havia sido presidente do Banco Central durante seu governo. Lula não apresentou um programa, pois ele não quer uma luta concreta, mas sim abstrata em torno da democracia. Para os socialistas e comunistas, determinar é negar. Ao não se determinar nada, não se nega nada. E, como um passe de mágica, não se pode ir contra aquilo que não se conhece.
É claro que todos nós sabemos que Jair Bolsonaro carrega em si ações e comportamentos fascistas e seu governo é, sem dúvida, uma tragédia e um crime completo contra a população brasileira. Mas seu governo não é fascista. O problema para os socialistas é sobre o que deve ser feito no segundo turno da eleição. Em questão de estratégia e princípios políticos, o correto seria anular o voto, pois a ladainha petista de ser sempre o último bastião da esperança já caiu por terra há muito tempo. Esta deveria ser a atuação dos socialistas.
Por outro lado, não se pode mais tolerar o governo de Bolsonaro e certamente mais quatro anos dele serão o prego do caixão no qual já nos encontramos. Resta, portanto, uma alternativa: votar em Lula e, em seguida, caso ele seja eleito, criticar e desmascarar suas farsas, suas enganações para que a consciência da população se transforme em uma consciência revolucionária e não capturada pela direita reacionária.
Todo momento é o momento da crítica e não devemos cair no conto petista de que criticar enfraquece o governo. Criticar é a alma e substância do movimento revolucionário, pois assim se destrói o existente e se constrói continuamente o novo. Mas deve-se realizar esse voto despido de qualquer ilusão. Como afirma Balzac em certo momento do romance citado no início do texto, “a ilusão é uma fé desmedida.” Se for para perdermos algo nessas eleições tão conturbadas, tão acirradas, que seja e ilusão na esquerda do PT e em sua impotência para a ação revolucionária transformadora.
Se for para votar em Lula, que seja para derrotar Jair Bolsonaro, mas não nutrir qualquer esperança sobre o próprio Lula, nem tampouco cair no canto da serpente da social-democracia. Uma revolução só se faz com consciência de classe e isso é o que PT e Lula não desejam definitivamente que a população brasileira tenha de forma alguma. Como diria Marx, a História se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.
*Flávio Magalhães é mestrando em história na USP.
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