O golpe de 2016 em charges

Imagem: Javon Swaby
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Por LUCYANE DE MORAES*

Comentário sobre o artigo de Edmilson Barros

1.

Foi lançado recentemente o livro Tecidos Interdisciplinares: estudos de história, artes e política. Como indicado em seu subtítulo, essa significativa publicação, fruto de um trabalho colaborativo, apresenta a estreita relação entre história e política mediada por diferentes expressões artísticas e conta com o Prefácio de Paulo Knauss.

A edição faz justiça à trajetória acadêmica de seus organizadores (e colaboradores), constituída por diálogos inter e transdisciplinares. O volume está dividido em duas partes centrais, abordando as seguintes temáticas: “Literatura, Memória e Poder” e “Imagens e Política”.

Nessa última parte, destaca-se o artigo intitulado “Traduzindo a política: o golpe de 2016 em charges”, de Edmilson Barros. Mestrando pelo programa de pós-graduação em história da UERJ, atualmente vem dedicando sua pesquisa às áreas de história política e história do tempo presente.

A tarefa científica de levar a cabo a interpretação crítica de “charges de diferentes artistas”, que “funcionam”, no dizer do autor, “como denúncia do golpe de 2016”, faz desse escrito uma ferramenta para se entender as omissões e narrativas inventadas pelos veículos hegemônicos de comunicação de massa, que acabaram por contribuir para o impedimento da primeira mulher eleita no Brasil, Dilma Russeff.

Ao recolher e analisar charges de Márcio Baraldi, Altamiro Borges, Bira Dantas e Carlos Latuff, o autor Edmilson Barros, valendo-se do método hermenêutico, tece considerações sobre o debate público promovido pelas produções dos cartunistas: “as charges selecionadas para análise se enquadram nesse critério: procuram denunciar uma verdade oculta, que não está sendo abordada pela grande imprensa”.

O caminho escolhido por Edmilson Barros foi fundamentado por aquilo que ele mesmo denomina como “guerra comunicacional” entre os media dependentes das políticas hegemônicas de pauta neoliberal e as mídias progressistas. Nesse sentido, seus esforços de investigação demonstram a estreita ligação entre procedimentos políticos e interesses – muitas vezes escusos – da mídia corporativa, sob a égide de uma suposta legalidade.

Em seu escrito, pode-se inferir que as charges assumem o papel de uma contraparte negativa ao que se encontra estabelecido, mediante a contestação da ordem (im)posta, buscando desestruturar modelos que antecedem ou ultrapassam a experiência de seus leitores.

Sob esse prisma, o autor vale-se de suportes semânticos e elementos da textualidade, como memória discursiva e produção de sentido, utilizando-se, também, de figuras de linguagem como «ironia», «metonímia» e «metáfora». Em suas palavras: “usando de ironia, deboche, além de uma boa dose de sarcasmo, as charges conseguem traduzir de forma bastante eficiente o que muitos textos escritos abordam, mas tais textos muitas vezes não conseguem uma comunicação mais imediata com o receptor da mensagem”.

2.

De forma consequente, Edmilson Barros lança mão de comentários de autores que contribuíram com a análise de diferentes formas de discurso, mediante uma gama de documentos e registros, entre outros aportes teóricos. A imbricação entre os elementos linguísticos – contextualizando adequadamente contribuições críticas em diálogo com autores contemporâneos – demarca a trajetória analítica da qual o artigo propõe, somando-se à narrativa de forma eficaz.

O mérito do autor diz respeito à denúncia do aparelhamento ideológico das mídias corporativas – que seguem manipulando informações e promovendo desestabilização social –, denúncia essa feita por meio de «imagens-comunicantes» próprias às narrativas: “as charges, veiculadas em blogs que faziam um discurso de resistência à implantação da agenda neoliberalizante e ao processo de impeachment, falavam de um lugar de denúncia, como porta-vozes de um grupo silenciado pela grande mídia”, noção esta cara ao tempo presente.

Não por outra razão, Edmilson Barros acena com um olhar prospectivo para questões significativas de um Brasil assolado por uma quantidade até então desconhecida de conteúdos desinformativos. Para tanto, utiliza-se de formas explícitas para imprimir seu conteúdo, possibilitando expressar pensamentos de modo claro, o que aponta para a relevância de seu escrito.

3.

Tendo em vista que o artigo exige do leitor uma postura ativa, de modo a permitir diferentes reflexões voltadas para a assimilação crítica das charges, vale considerar as seguintes questões:

As charges ofereceriam a chave para uma, por assim dizer, «revolução copernicana»? Ou dito de outro modo, possibilitariam uma mudança de perspectiva em relação ao objeto conhecido, isto é, uma mudança radical na forma como entendemos o objeto por elas apresentado? Para além da demonstração do objeto, levariam em conta as condições sensíveis e cognitivas do sujeito? Em suma, o que de fato poderia o sujeito «conhecer» com as charges, além de seu (re)conhecimento característico?

As charges demonstrariam interesse objetivo pela relevância social manifesta pelo risível? Seria possível, por meio do riso, refletir sobre o aspecto parasitário do objeto ao qual se debruça? Como forma de sarcasmo, não seria o riso tão-somente uma válvula de escape que provoca distensão, sem qualquer resultado consequente em termos de consciência?

Sobre o porquê da primeira questão, vale lembrar que Immanuel Kant já sinalizava para o fato de que, antes de se conhecer o objeto deveria-se estabelecer o limite da capacidade de apreensão do sujeito em relação a este, levando em conta a materialidade do conjunto de ideias que determina as suas condições de percepção.

Quanto ao segundo ponto, se no âmbito da communis opinio atribui-se caráter «revolucionário» ao riso, capaz de promover estados potenciais de conscientização social e política, talvez mereça atenção a tendência coletiva que associa comicidade a comportamentos a-políticos, fato esse de fácil identificação em sociedades instrumentalizadas, reprimidas e pouco solidárias.

Na década de 1950 do século passado, Theodor Adorno apontou para o fato inconteste de que “quando várias pessoas riem juntas se expressam momentos sociais que vão além de suas motivações diretas, e muitas vezes se escondem nelas”. A pertinência desta questão ressoa como eco, sendo tão mais importante para este tempo quanto menos é perceptível o declínio da razão teórica e do espírito crítico.

São essas algumas das possibilidades de reflexão estimuladas pelo escrito de Edmilson Barros. Vale assinalar que o seu trajeto de exposição se faz pela circulação do pensamento e não procura, como ferramenta discursiva, uma construção meramente abstrata ou indiferente à experiência. Entre outros motivos, o artigo atende a demandas tanto de pesquisadores da área da história quanto ao leitor comum, apresentando subsídios teóricos ainda pouco conhecidos do público em geral.

Por oportunizar diálogos importantes e pelos questionamentos que levanta sobre a recente história do Brasil, Traduzindo a política: o golpe de 2016 em charges é um texto cuja leitura vale a pena não somente pelo modo criterioso com que o autor aborda o assunto, mas também pela consistência de suas colocações e simplicidade de sua linguagem.

*Lucyane de Moraes é doutora em filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Autora do livro Theodor Adorno & Walter Benjamin: em torno de uma amizade eletiva (Edições 70/Almedina Brasil) [https://amzn.to/47a2xx7]

Postado originariamente na Revista Online InComunidade [https://www.incomunidade.pt/]

Referência


Edmilson Barros. “Traduzindo a política: o golpe de 2016 em charges”. In: Beatriz de Moraes Vieira, Carlos Eduardo Pinto de Pinto e Caio Affonso Leone (orgs). Tecidos interdisciplinares: estudos de história, artes e política. Rio de Janeiro, Multifoco, 2025. 386 págs.


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