O golpe de 64 continua nas escolas militares do Brasil

Clara Figueiredo, Mercato Domenicale Porta Portese, Balilla_ um por 15,00, três por 30,00 euros, Roma, 2019
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Por URARIANO MOTA*

Ensinando uma falsa história, as lembranças do terrorismo de Estado são ocultadas até hoje no ensino das escolas militares

Talvez fosse melhor o título “O ensino da falsa história nas escolas militares”. Quero dizer: penso nos jovens dos colégios militares, nos rapazes e mocinhas ardorosas e ardorosos tendo que decorar algo como uma história vazia e violentadora, a que chamam história do Brasil – Império e República, de uma Coleção Marechal Trompowsky. Da Biblioteca do Exército.

Mas não sejamos preconceituosos, ilustremos com o que os estudantes nas escolas militares são obrigados a aprender, como aqui, por exemplo: “Nos governos militares, em particular na gestão do presidente Médici, houve a censura dos meios de comunicação e o combate e eliminação das guerrilhas, urbana e rural, porque a preservação da ordem pública era condição necessária ao progresso do país.”

Uma breve pesquisa aponta que esses livros servem a um ensino orientado pela Diretoria de Ensino Preparatório e Assistencial (DEPA), criado em… 1973, sim, naquele inesquecível ano da ditadura Médici. Ou naquele tempo do gestor democrático, segundo a orientação dada aos futuros militares. E não se pense que tal ensino está à margem da lei, não. Ele se apoia em um certo Art. 4º do R-69. Percebem? A caserna legisla.

Mas não é assim, sem nada, pois a DEPA organiza a proposta pedagógica “de orientar o processo educacional e o ensino-aprendizagem na formação de cidadãos intelectualmente preparados e cônscios do seu papel na sociedade segundo os valores e as tradições do Exército Brasileiro”. Que valores seriam esses, além das ideias anticomunistas do tempo da ditadura?

As escolas militares doutrinam, fazem uma verdadeira Escola com Partido à direita, enquanto escondem a história trágica e o papel destruidor de vidas pela ordem da ditadura militar. O que antes os democratas reclamavam, a saber, que os colégios militares não poderiam mais continuar independentes do Brasil, como se fossem ilhas inexpugnáveis à civilização, continua.

O que eu recebia antes em e-mails ameaçadores de 2010, como “graças ao bom Deus que ainda existe o ensino nos colégios militares, pois é por meio do mesmo que são formados os alunos que ainda pensam nas Universidades do Brasil. Os livros adotados nos colégios militares são os editados pela Biblioteca do Exército, pois os que circulam por aí, nas livrarias nacionais, têm um padrão abaixo do aceitável e estão completamente distorcidos quanto ao seu conteúdo”…

Mas penso que é hora de retornar à discussão das trevas com uma nova crítica: há um ponto em que as escolas civis, públicas, bem podiam olhar com interesse nas escolas militares. Isto é: as nossas civis bem que poderiam traduzir à sua maneira as militares. Quero dizer, com uma tradução para a liberdade em uma discussão permanente em sala de aula. Penso que nos falta nas escolas públicas, civis, uma educação para humanidades, para o melhor humanismo.

Entendam, isso não é incluir a humanidade em puro currículo ou grade curricular. É criar uma formação para a vida em todas as disciplinas, nada militares. Não devemos dar meios de ascender socialmente e formar novos consumidores entre os pobres, reproduzindo a ideia de exclusão do sistema capitalista. Devíamos formar pessoas com visão de humanidade. Essa é a escola ideológica que nos falta, e que os militares bem o fazem à sua maneira: formando soldados anticomunistas do tempo da guerra fria.

Não podemos esquecer o terrorismo de Estado oculto e justificado nas escolas militares. Um terror que recriei na memória ao escrever o romance “A mais longa duração da juventude”; Copio aqui um breve trecho de uma página: “Eu me refiro a outra gravidade fundamental, ao horror puro que fez saltar os olhos das órbitas, em anéis que se apertavam em torno da cabeça como um garrote vil no crânio, a ‘coroa de cristo’ como a chamavam. Me refiro a ossos quebrados, ferros socados no ânus. Fatos assim vistos e sofridos se calam. Com um sentimento de culpa, como se a vítima fosse a culpada, ou mesmo do terror não vencido, que continuaria num reflexo de Pavlov. Dessa vez, o condicionante é a memória, que não relata para não repetir a dor. Entendemos os saltos ou o silêncio, porque nesta página agora sinto a tentação. É paralisante refletir sobre o que soubemos e vimos. Uma paralisação que é uma inércia aparente, porque pensamos no que não pensamos, refletimos no que não refletimos, falamos cá dentro do que não falamos fora. E para dizer o mínimo em uma linha: é deprimente primeiro. Segundo, é de nos mergulhar em uma ira louca. É de dar uma revolta ainda sem expressão, por último”.

Mas vem à lembrança o ‘terrorista’ caçado, na descrição da advogada Gardênia: ‘Ele estava na mesa, estava com uma zorba azul clara e tinha uma perfuração de bala na testa e uma no peito. E com os olhos muito abertos e a língua fora da boca’. Para mim, são os olhos de Vargas no maldito janeiro de 1973. A simples evocação dá um gosto amargo de fel e bílis na boca. Terei, ou devo ter o refrigério de uma pausa?”.

Lembranças do terrorismo de Estado na ditadura retornam. Lembranças ocultadas até hoje no ensino das escolas militares.

*Urariano Mota é escritor e jornalista. Autor, entre outros livros, de Soledad no Recife (Boitempo). [https://amzn.to/4791Lkl]


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