Carlos Marighella em 1964

Carlos Marighella/ Foto: divulgação
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Por CARLOS DE NICOLA*

Os momentos decisivos do revolucionário brasileiro nos dias do golpe que instalou a ditadura no Brasil

“Estou me preparando para os duros tempos”. Foi assim que Carlos Marighella recebeu uma amiga em seu quarto e sala no Catete, em 1964, na cidade do Rio de Janeiro. Fazendo exercícios físicos em casa. “Sempre vêm os duros tempos”. Foi a réplica da interlocutora.[1]

Carlos Marighella corria de um lado para o outro, se abaixava, fazia flexões, levantava, polichinelos, depois pulava corda, armava-se e fazia exercícios suspendendo e abaixando a parte inferior do corpo apoiado nos antebraços, por sua vez, escorados numa cadeira. Deitava-se no chão e puxava as pernas em direção ao tronco, enquanto fazia o gesto simétrico com a parte superior do corpo, cabeça, pescoço, peito e braços em direção contrária.

Mais à frente, em 31 de março, Carlos Marighella se antecipava à linha tardia do Partido Comunista Brasileiro (PCB) “Esmagar o golpe reacionário, defender a liberdade e depor os governadores golpistas”. Dois cruzadores deveriam torpedear o palácio Guanabara, onde trabalhava um governador golpista, Carlos Lacerda, da União Democrática Nacional (UDN). Um brigadeiro aliado aos legalistas se ocuparia da infantaria proveniente de Minas Gerais.

O baiano fazia o possível para se comunicar com os militares comunistas, que não eram poucos. Todavia, o que se chamava de “esquema de segurança” do presidente João Goulart – Jango – do então Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), mostrou-se uma furada, com defecções da parte de militares pretensamente aliados e, pior ainda, a própria hesitação de Jango que dizia não querer “derramamento de sangue”.

Carlos Marighella imaginava uma guerra de posições entre guarnições militares que se inclinassem por uma ou outra trincheira, a chamada legalista, ou seja, fiel ao governo João Goulart, ou a golpista, capitaneada pela movimentação do general Olympio Mourão Filho e seus asseclas.

Pregando aos camaradas por toda a cidade do Rio de Janeiro e arregimentando combatentes, a ordem de Carlos Marighella era que, se o general Humberto de Alencar Castello Branco – chefe do Estado-Maior do Exército – fizesse endosso os generais golpistas, o contra-ataque deveria se dar pela tomada do quartel-general do Exército na cidade carioca. Carlos Marighella não tinha militantes sob seu comando orgânico no partido, mas influenciava muitos deles: “Eles tomam a banda de lá, nós tomamos a banda de cá”.

A banda de cá fazia uma assembleia no bairro da Cascadura com sargentos do Exército. Eles improvisaram no meio da rua, nas imediações da avenida Suburbana. O Parque Central de Motomecanização era desse lado de cá, ou seja, estava a favor dos legalistas – a base que Carlos Marighella tentava arregimentar para uma resistência ativa ao golpe. A 1º de abril de 1964, praças do Exército se juntaram a companheiros em toda a Vila Militar e se deslocaram para o Centro do Rio, a área do Quartel General. Com eles, saíram o Grupo de Canhões 90mm Antiaéreos.

Por volta das cinco horas da manhã, Carlos Marighella foi informado que o General Amaury Kruel, comandante do II Exército, com sede em São Paulo, tomara o lado dos golpistas. Ainda na escuridão, no Rio, militantes indagaram a Carlos Marighella onde se apresentar para o combate, e eles os encaminhou para o Departamento de Correios e Telégrafos, na praça Quinze.

Diante da hesitação de Jango, Marighella cobrava de todos os possíveis aliados. O Exército, pelo menos aquela parcela legalista, aguardava ordens do então Presidente da República. Havia braços, mas eles eram inexperientes. O pior de tudo é que faltavam armas. Luís Carlos Prestes, figura histórica e liderança nacional do PCB também não ajudava, pois foi um dos responsáveis pela linha do partido de aliança com a burguesia brasileira, a qual, de progressista nada possuía: “Se a reação levantar a cabeça, nós a cortaremos de imediato”. Era o que Prestes dizia. 

À uma da tarde daquela quarta-feira, 1º de abril, Jango abandonava o Palácio Laranjeiras e embarcava para Brasília. Enquanto isso, Marighella não desistia, junto a centenas de manifestantes na Cinelândia. Em cima de um caixote, vociferava em comícios-relâmpago. Um punhado de generais e outros sócios saíram do Clube Militar a panfletar boletins contra o “nefando governo” Goulart, e os participantes do protesto reagiram, empurrando os oficiais de volta ao clube. A sede da agremiação foi apedrejada, e das janelas do edifício revidou-se com armas de fogo. 

Em meio à aglomeração, um homem provocou com um viva a Carlos Lacerda e se precipitou pela porta de vidro do clube, protegido pela Polícia Militar. A massa respondeu com “Um, dois, três, Lacerda no xadrez”. Carlos Marighella inflamou a multidão para invadir o prédio, mas sobrevieram rajadas de metralhadora, corpos tombaram e o sangue banhou o chão. Marighella se livrou de um paletó, trepou numa árvore e discursou. Preparava-se para escalar uma estátua, mas os companheiros o contiveram enquanto projéteis zuniam sobre eles.

“É preciso acreditar: no momento, tudo está perdido”. Carlos Marighella, incansável até seu último dia. Se “o dever de todo revolucionário é fazer a revolução”, seu dever como militante humanista foi combater a ditadura militar com unhas e dentes. Daí o medo que o regime golpista possuía, e a reação na ocasião de seu assassinato, em 1967, com os policiais da repressão atirando para todos os lados na Alameda Casa Branca, nos Jardins, em São Paulo, matando inclusive a si mesmos.

Na madrugada de 1º para dia 2 de abril de 1964, Marighella produziu um panfleto e o distribuiu a militantes no posto 6, em Copacabana, na casa de uma funcionária pública. Assinou-o em nome de um comando fictício, já que não poderia fazer aprovar nas instâncias do PCB. Daqueles possíveis torpedeamentos ao Palácio Guanabara, que falamos no início, o baiano ficou sabendo, depois, que os marinheiros não o fizeram porque a ordem não chegou aos cruzadores.

Uma sequência de desencontros na esquerda fez o golpe militar bem-sucedido. Mas era já uma esquerda cindida, oficial e oficialista mesmo que na ilegalidade. Uma esquerda que, com seu peso histórico, movia-se devagar. “Os golpistas ainda estão no ar. […] Ainda não têm pleno domínio da situação. […] É preciso, pois, agir depressa”.

Combinou para 8 de abril uma ofensiva de esquadrões de blindados contra o QG do Exército, a partir do contato com sargentos na Vila Militar. Mas o sonho ruiu com a descoberta da conspiração e a punição aos militares. Naquele mesmo mês de abril Carlos Marighella introduziu a perspectiva da luta armada contra o regime nascente. O resto é a sua e a nossa história.

*Carlos De Nicola é militante do movimento socioambiental.

Nota


[1] O presente texto é parte ficcional, parte histórico. Busquei referências em Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo, de Mário Magalhães, publicado pela Companhia das Letras em 2012.


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