O leitor Martin Heidegger, desvelado

Hélio Cabral (Jornal de Resenhas)
image_pdf

Por SÉRGIO DA MATA*

Martin Heidegger rabiscava impiedosamente as publicações pelas quais se interessava, como se “precisasse de um lápis para pensar”

Tudo em Arnulf Heidegger sugere uma existência discreta. Médio de altura, magro, cabelo já um pouco grisalho e penteado para trás, ele vestia um blazer cinza e uma camisa azul claro rigorosamente comuns. Os óculos de aro redondo e muito fino, o tom de voz suave, quase inaudível, me deram a sensação de estar diante de um sacerdote.

Na noite de 29 de novembro do ano passado, como cerca de outras trinta pessoas, ele compareceu ao Arquivo da Literatura Alemã (DLA), sediado na pacata cidade de Marbach, para assistir a um evento especial: uma incursão pela biblioteca pessoal de seu avô, Martin Heidegger. Aos pesquisadores Ulrich von Büllow e Lorenz Wesemann coube a tarefa de revelar ao público presente uma parte dos segredos contidos nas anotações que o controvertido filósofo da Floresta Negra fazia em seus livros.

Numa atitude que em nada lembra aquele “amor bizantino dos livros” ironizado por Sérgio Buarque de Holanda, Martin Heidegger rabiscava impiedosamente as publicações pelas quais se interessava. É claro que dos cerca de 1.200 volumes que pertenciam à sua biblioteca, e que estão sob a guarda do DLA, nem todos contém anotações. Mas, como regra geral, diz Ulrich von Büllow, é como se Martin Heidegger “precisasse de um lápis para pensar”.

Em tempos como os atuais, em que o apuro filológico desapareceu das nossas humanidades e os erros de tradução adquirem proporções diluvianas, é interessante ver como Martin Heidegger sempre buscava trabalhar com o texto em sua língua original, não sem avaliar os problemas existentes nas traduções disponíveis. Com espírito meticuloso e obsessão pelo detalhe, trechos da Física de Aristóteles são comentados, criticados e associados a outros por meio de índices remissivos postos à margem ou no interior das contracapas. Em seu exemplar em latim das Meditações de Descartes, grifos em três cores diferentes indicam critérios de relevância cujo significado, porém, ainda escapa aos pesquisadores. Ao lado da famosa frase ego sum, ego existo, ele anota em letra miúda: “esse = existere!” – uma fórmula que, sabemos, será elaborada sistematicamente em Ser e tempo. Um retângulo, em amarelo forte, emoldura a pergunta quid est homo? Não deixa de ser curiosa a ideia de que algum impulso para a feitura de seu influentíssimo livro de 1927 possa ter partido da leitura da segunda das meditações de Descartes.

A julgar pela quantidade de marcas, Martin Heidegger não parece ter tido maior interesse por Marx. Mas há alguns rastros de sua leitura da coletânea O materialismo histórico. O exemplar é o mesmo que ele toma em mãos numa entrevista de 1969, e que ainda hoje pode ser vista na internet. Seu penetrante comentário sobre a 11ª tese contra Feuerbach mostra em que medida ele se valia da rigorosa prática de leitura adquirida no seminário católico. Depois de sublinhar a palavra “mundo” (Welt) no texto de Marx, ele escreve à margem: “Mundo, mas o que é o mundo?”

Nem tudo, porém, era divergência no encontro entre esses dois grandes pensadores radicais. Pois Martin Heidegger marcou, sem interpor qualquer objeção, diversas passagens de Sobre a questão judaica – obra que sua discípula Hannah Arendt considerou o texto fundador do antissemitismo de esquerda.

Um capítulo à parte são as notas em seu exemplar do Tractatus logico-philosophicus de Wittgenstein. Logo abaixo da célebre sentença “do que não se pode falar, é melhor calar-se”, Martin Heidegger revida a lápis: Darüber kann man nicht schweigen (“A esse respeito não há como se calar”). Mesmo nos livros de alguns de seus alunos de primeira hora, como Hans-Georg Gadamer e Gerhard Krüger, ele deixou comentários irônicos e por vezes maldosos (“Krüger não tem noção alguma do que é pensar”).

Com a mesma obsessiva minúcia, ele lia inclusive as próprias publicações. Seu exemplar de Ser e tempo está repleto de observações e comentários críticos, o que – ainda segundo Ulrich von Büllow – possivelmente documenta o momento em que se dá a assim chamada Kehre do filósofo.

A mim impressionou em especial o tratamento dado a Rainer Maria Rilke, cuja oitava Elegia de Duino Heidegger dissecou com uma acribia tal (o aluvião de marcas e grifos não dá margem a dúvida) que custa crer que ele tenha, em algum momento, fruído os textos do grande poeta alemão. Essas marcações provavelmente datam de fins da década de 1930 ou inícios dos anos 1940, quando Heidegger ministrou sua preleção sobre o destino do texto poético em uma “época indigente”. Um diagnóstico que talvez encontre sua confirmação nessa propensão a considerar a poesia não em si e por si mesma, mas como um pretexto para o pensar.

Um de seus primeiros e mais talentosos alunos, Karl Löwith, conta que no início dos anos 1920, quando Martin Heidegger via a si mesmo como um teólogo cristão, o canto de sua cela em Freiburg era adornado com uma gravura do crucificado em estilo expressionista. Sobre a mesa de trabalho, repousavam dois retratos: os de Pascal e Dostoievski. Não sendo exatamente poucas as semelhanças entre a psique de Raskólnikov e a de Heidegger, pergunto-me apenas por onde andará o seu exemplar de Crime e castigo.

Sérgio da Mata é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
7
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
14
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES