Por ALEXANDRE ARAGÃO DE ALBUQUERQUE*
Não temos como controlar se os agentes públicos mentem para nós. Mas temos como controlar se eles devem responder exemplarmente pela gravidade de suas mentiras
A ganhadora do Prêmio Pulitzer de Crítica 1998, editora-chefe de crítica literária do jornal The New York Times, Michiko Kakutani, em sua obra “A Morte da Verdade” (Intrínseca, 2018), busca explicar como as forças políticas e culturais do trumpismo contribuíram para aquilo que a autora denomina por “catástrofe da contemporaneidade” na qual qualquer ideia objetiva da verdade é ridicularizada por meio de teorias da conspiração, ideologias negacionistas e “fake news” (mentiras organizadas) destruidoras de todo o patrimônio erguido pelas ciências.
O medo das mudanças sociais e o ódio ao diferente estão em ascensão à medida que as pessoas, trancadas em seus grupos partidários e protegidas pelo filtro de suas bolhas de comunicação alimentadas pelos algoritmos, vêm perdendo a noção da realidade compartilhada e a habilidade de se comunicar com as diversidades de linhas sociais e culturais. Tudo isso combinado perfeitamente com o narcisismo e a subjetividade, em plena expansão, na era das “selfies”.
Neste sentido, o neofascismo estrategicamente invade, por meio de grupos táticos de ação em mídia social, o espaço público para alimentar uma suposta “sabedoria da ralé” (ralé é uma categoria arendtiana analisada no livro “Origens do totalitarismo”) e impô-la sobre o conhecimento científico, obtendo como consequência a emergência de crenças e moralismos que visam validar os preconceitos particulares de massas de indivíduo sem detrimento das lutas e conquistas civilizacionais. Tudo isso somado a ataques rotineiros à liberdade de imprensa e de expressão, ao sistema eleitoral, a funcionários públicos, à Academia, ao sistema de justiça, aos direitos humanos, a políticas distributivas e inclusivas defendidas pelo pensamento político da esquerda democrática mundial.
Como lembra Hannah Arendt, em seu clássico “Origens do totalitarismo”, o súdito ideal de governos totalitários não é o nazista convicto nem o stalinista convicto, mas aquele para quem já não existe a diferença entre o verdadeiro e o falso, entre o fato e a ficção, optando em suas decisões com base em seus preconceitos pessoais, orientados pelo poder totalitário. A manipulação da verdade dos fatos por interpretações editadas, a substituição da razão objetiva pela emoção irracional (e confessional), como também a própria corrosão da linguagem que avilta o universo ético-relacional, conceitual e argumentativo, são componentes ativos do modus operandi neofascista que diminuem o próprio valor da verdade. As ditaduras fascistas moldam a realidade segundo suas mentiras e gramáticas, buscando naturalizar a barbárie.
O caso brasileiro atual tornar-se-á, com toda certeza, um clássico da historiografia. Basta pensar, por exemplo, nas dezenas de palavrões disparados conscientemente, nunca antes visto na história, pelo presidente do Brasil em suas declarações públicas enquanto máximo representante da nação. No recente episódio da denúncia sobre a compra pela União de R$13,5 milhões em latas de leite condensado, quando ele declarou, no dia 27 de janeiro de 2021, que as latas eram para “enfiar no rabo de vocês da imprensa”, foi aplaudido com veemência pelo seu ministro das Relações Exteriores, sentado ao seu lado. O que concluir de uma comunicação como esta, de repercussão mundial?
A verdade dos fatos está para além do consentimento e do conchavo. Fatos escandalosos, como a compra de R$13,5 milhões de latas de leite condensado pela União, têm a exasperante tenacidade de que nada pode abalá-los, a não ser mentiras puras e simples com intuito de destruí-los. Se por um lado a verdade racional ilumina o entendimento humano, a verdade dos fatos deve servir de matéria para a formação das opiniões. Por isso, quando uma parte das pessoas mente deliberadamente sobre tudo o que é importante, aqueles que dizem a verdade agem de forma fundamental para mudar esta realidade dominada pela falsidade organizada.
O Papa Francisco, em 13 de maio de 2018, na sua mensagem “A verdade vos tornará livres”, para o 52º. Dia Mundial das Comunicações Sociais, lembra que a produção e disseminação de mentiras podem visar a objetivos prefixados, influenciar comportamentos políticos e favorecer a lucros financeiros. A metodologia da mentira está em mostrar-se hábil na captura da atenção de seus destinatários, apoiando-se sobre estereótipos e preconceitos generalizados no seio de um determinado tecido social, explorando emoções imediatas e fáceis de serem suscitadas. Assim os conteúdos, embora desprovidos de fundamento, ganham tal visibilidade que os próprios desmentidos categorizados dificilmente conseguem reparar os danos provocados pelas mentiras disparadas pelas mídias sociais.
No dia 20 de fevereiro passado, em seu discurso por ocasião da cerimônia de entrada pelos portões dos novos alunos da Escola de Cadetes do Exército – Campinas – SP, Bolsonaro manteve toda a estrutura habitual. Primeiramente, como lugar comum em todas as suas falas, fez relação à providência divina na sua eleição de 2018, buscando reforçar uma relação ideológica na compreensão do público ouvinte de ele ser o Escolhido de Deus para a presidência do Brasil. Em segundo lugar, como de praxe, exacerbou a divisão entre aqueles que amam a sua forma de pensar o Brasil e os que não amam, a exemplo do que fez o general Médici no seu truculento governo dos anos 1974: “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Por fim, disparou, sem peso na consciência, mais uma falsidade: “Nunca a imprensa teve um tratamento tão leal e cortês como o meu”. E essa falsidade, para aquele público e naquele contexto, tem sabor de verdade. É nesta batuta ideológica que o seu governo avança sobre o substrato de grande parcela da população.
O Papa em sua mensagem registra que a falsidade (a desinformação) revela a presença de atitudes intolerantes, cujo resultado é dilatar a arrogância e o ódio, desenvolvendo um olhar sobre o diferente como um inimigo, por meio de sua demonização. Francisco ainda adverte que ninguém pode se eximir da responsabilidade de contrastar estas falsidades. Sendo fundamental desenvolver ações educativas que permitam o aprendizado da leitura e avaliação do contexto comunicativo, ensinando os indivíduos a serem atores do desvendamento da verdade ofuscada.
A tática fascista é por excelência a do fingimento. Fingem-se ser defensores da liberdade, mas apregoam a volta do AI-5, o fechamento do Congresso e do STF; fingem-se ser promotores da paz, mas autorizam a compra indiscriminada de armas e munições para os ricos; fingem-se ser defensores dos pobres, mas apresentam projeto de lei do Excludente de Ilicitude; afirmam serem cortês com a imprensa, mas vomitam que as latas de leite é “para enfiar no rabo de vocês da imprensa”.
Como lembra o Papa Francisco, “não existe desinformação inofensiva: acreditar na falsidade pode ter consequências calamitosas”. E é o que estamos testemunhando no Brasil, de forma sistemática, desde 2016.
Kakutani adverte em seu livro que não temos como controlar se os agentes públicos mentem para nós. Mas temos como controlar se eles devem responder exemplarmente pela gravidade de suas mentiras. No caso das mentiras na Lava Jato por parte de Moro, Dallagnol e Cia., a decisão está nas mãos do STF. Quanto à morte de mais de 250 mil brasileiros (1/4 de milhão) no primeiro ano da pandemia, pela falta de uma postura verdadeira e consequente de combate por parte do Governo Federal, ainda carece de uma ação judicial do Ministério Público visando a uma séria apuração das responsabilidades e negligências deliberadas.
*Alexandre Aragão de Albuquerque é mestre em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).