O Manifesto Socialista

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Por DOUG ENAA GREENE*

Comentário sobre o livro de Bhaskar Sunkara

No prefácio à edição inglesa de 1888 do O Manifesto do Partido Comunista, Frederick Engels explicou por que ele e Marx não nomearam seu texto de “Manifesto Socialista”. Segundo Engels, o socialismo estava identificado com sonhadores e reformadores utópicos “que queriam eliminar os males sociais através das suas várias panaceias sem ferir minimamente o capital e o lucro”. Em contraste com os socialistas, os comunistas eram considerados perigosos para a classe dominante, uma vez que eles eram pela revolução da classe trabalhadora e pela “reconstrução radical da sociedade”, que iriam findar com toda exploração e opressão. Em outras palavras, Marx e Engels estavam completamente claros em se diferenciar desse “socialismo”. Talvez sem perceber isso, Bhaskar Sunkara, fundador e editor da Jacobin Magazine e um membro destacado do grupo “Socialistas Democráticos da América” (DSA, na sigla em inglês), escreveu O Manifesto Socialista enquanto uma cartilha sobre a história do socialismo e como podemos alcançá-lo hoje.

A estratégia socialista proposta por Sunkara é uma estratégia democrática a ser conduzida principalmente através de eleições. Uma grande parte do livro é voltada para discussões de exemplos históricos de socialistas que seguiram tal via, como os partidos social-democratas, que compuseram a Segunda Internacional. Ao discutir os primeiros partidos socialistas, como o Partido Social-Democrata Alemão, Sunkara localiza a tensão-chave que os perpassava, o seu desejo por uma transformação radical da sociedade e também por conquistar reformas imediatas. Sunkara argumenta que a estratégia social-democrata de acumular reformas gradualmente parecia sólida, já que a conquista de reformas levava ao crescimento da quantidade de membros do partido e a mais votos nas eleições. Ademais, os burocratas e funcionários do partido tinham um grande interesse nas reformas, pois agora eles tinham interesses atrelados à ordem existente, que seriam prejudicados caso houvesse uma revolução. O resultado final dessa estratégia foi a traição dos princípios internacionalistas por parte da social-democracia e o seu apoio ao massacre que foi a Primeira Guerra Mundial.

Entretanto, Sunkara argumenta que o que houve em 1914 não foi o resultado inevitável do reformismo; para ele, isso poderia ter sido evitado através de “medidas institucionais” para fazer a burocracia partidária mais subordinada às bases (p. 78).[1] Contudo, O Manifesto Socialista evita qualquer discussão séria sobre as raízes da degeneração da Segunda Internacional, tais como o imperialismo, o papel conservador da aristocracia operária e o abandono da teoria marxista em prol de “resultados práticos”. Assim, Sunkara evita um exame sério de aspectos complicados e desconfortáveis acerca da estratégia que ele reivindica.

Ao buscar exemplos positivos do que chama de socialismo democrático, Sunkara dedica um grande tempo à social-democracia sueca do pós-Segunda Guerra, a qual ele afirma ter sido responsável pelo “o sistema mais humano já construído” (p. 14). O Manifesto Socialista afirma que a Suécia foi mais longe em atacar o capitalismo do que qualquer outra experiência social-democrata ao tentar implementar o Plano Meidner, em meados dos anos 1970. O Plano Meidner propunha a socialização gradual da economia sueca ao obrigar as grandes empresas a emitirem ações continuamente, as quais seriam transferidas para fundos coletivos de trabalhadores controlados pelos sindicatos. Gradualmente, os sindicatos, e, por extensão, os seus membros, assumiriam o controle dos meios de produção do país. Contudo, a versão do Plano que foi implementada foi uma versão aguada, e os capitalistas acabaram por derrotá-la mesmo assim. Sunkara afirma que o fracasso do Plano Meidner revela os dilemas principais da social-democracia, a qual depende de vitórias eleitorais, de entregar resultados, de uma economia em expansão e de parceria com capitalistas dispostos a realizar compromissos acerca de reformas profundas. Tudo isso significa que as reformas social-democratas são precárias e estão sempre sob risco de serem revertidas (p. 123-124). Não obstante, Sunkara defende que “a via para um socialismo para além do capitalismo passa pela luta por reformas e pela social-democracia, as quais não são vias diferentes” (p. 30).

Ainda assim, isso levanta a questão de como os socialistas democráticos poderiam evitar os fracassos do caso sueco e de outras experiências social-democratas. Sunkara propõe uma série de soluções; por exemplo, ele reconhece que, caso os social-democratas fossem eleitos, eles se veriam diante dos mesmos desafios e pressões que seus predecessores, uma vez que aprovar reformas demanda manter a confiança e os lucros dos empresários. Como Sunkara observa, a maior parte dos social-democratas se dispõe a aceitar as pressões empresariais e a abandonar seus programas de reformas. Sua solução é de que movimentos sociais façam pressão para que os reformadores se mantenham fieis às reformas (o que é um mantra social-democrata já bastante gasto). Sukara afirma ainda que uma experiência socialista democrática séria deve entender que a classe capitalista irá “fazer de tudo para nós parar” através de greves do capital e bloqueio de investimentos.

Apesar de reconhecer que “a história importa” (p. 236), Sunkara ignora a história que prova errada a sua estratégia socialista democrática, em especial a “via chilena ao socialismo”. A eleição de Salvador Allende, em 1970, sob um programa de via parlamentar ao socialismo, representou uma experiência muito mais radical do que o Plano Meidner. Esse programa incluía a nacionalização das minas de cobre, então sob o controle de poderosas corporações dos EUA, expropriação e redistribuição de terras, nacionalização de bancos, dentre outras medidas. Alinhado com a estratégia de Sunkara, o governo de Allende venceu as eleições e era apoiado por movimentos radicais nas ruas, e o apoio ao partido de Allende até subiu nos anos seguintes. No entanto, ao fim, a via chilena ao socialismo falhou. Ela foi prejudicada por greves empresariais, sabotagem pelo imperialismo dos EUA e, ao fim, por um violento golpe militar, em 1973.

O fracasso de Salvador Allende prova uma verdade simples que Sunkara se recusa a reconhecer: a natureza do poder. Em uma sociedade capitalista, o Estado, em especial as forças armadas, é um instrumento de dominação de classe que precisa ser esmagado pela classe trabalhadora organizada e armada. Se o poder e os privilégios da classe capitalista estiverem sob uma ameaça substancial, como eles estavam no Chile, o capital responderá com força bruta, não importando o quão “legalistas” e “pacíficos” os socialistas sejam. Em última instância, a via pacífica ao socialismo não é nem um pouco pacífica, mas resulta em banho de sangue da classe trabalhadora desarmada em face à resistência capitalista. Portanto, é necessário esmagar o Estado burguês junto com sua polícia, exército e todo o aparato repressivo, e substituí-lo por instrumentos de poder popular para suprimir a resistência da classe capitalista e abrir o caminho ao socialismo. Nada que OManifesto Socialista propõe confronta essa realidade; ao invés disso, o programa de Sunkara apenas prepara o caminho para novas derrotas.

O Manifesto Socialista não se limita a uma discussão histórica da social-demcoracia, ele também debate experiências revolucionárias na Rússia e no Terceiro Mundo. Apesar da sua rejeição da via revolucionária, Sunkara não condena a Revolução Russa de imediato. Ao invés disso, ele passa várias páginas confrontando a narrativa abertamente anticomunista sobre 1917 e a noção de que o leninismo simplesmente levou ao totalitarismo stalinista. Sunkara enfatiza que a estratégia revolucionária de Lenin não levou ao stalinismo; ela era baseada, na verdade, na social-democracia ortodoxa: “Mas ela não era uma planta-baixa para a construção de um partido radicalmente diferente; ao invés disso, essas eram táticas necessárias a um movimento impedido de seguir a organização legal e a atuação parlamentar, desenvolvidas por suas contrapartes em outros países. Uma vez que o czarismo fosse derrubado, a atrasada Rússia e a sua pequena classe trabalhadora poderiam se desenvolver conforme o modelo ocidental e lutar por mais” (p. 83). As origens social-democratas dos Bolcheviques significam que eles eram um partido vivamente democrático, enraizado na classe trabalhadora. Isso mudou com a eclosão da Primeira Guerra Mundial e as revoluções de 1917, quando os Bolcheviques romperam com a social-democracia e tomaram o poder. Contudo, Sunkara rejeita a narrativa simplista de que os Bolcheviques deram um golpe em 1917. Em vez disso, ele argumenta que, apesar de “certamente não ter sido tão espontânea quanto a Revolução de Fevereiro, a de Outubro representou uma genuína revolução popular liderada por trabalhadores industriais, aliados a elementos do campesinato” (p. 93).

De acordo com Sunkara, após tomarem o poder, os Bolcheviques lutaram para construir uma nova ordem, ao passo que enfrentavam um colapso econômico, uma intervenção estrangeira e uma guerra civil. Essa situação sem precedentes levou Lenin a centralizar o poder e a recorrer ao terror vermelho em uma luta desesperada contra os contrarrevolucionários. Apesar de Sunkara não acreditar que o terror era uma parte essencial do bolchevismo, ele repreende Lenin por conter a democracia e o debate aberto na Rússia (p. 98).

Em contraste com outros socialistas democráticos, Sunkara não descarta a Revolução Russa como uma experiência que teria sido totalitária desde o começo. Em vez disso, ele resgata a visão heroica de 1917. Ainda assim, O Manifesto Socialista defende que não havia outro resultado para os Bolcheviques que não o stalinismo, pois “a Rússia não estava materialmente madura para o socialismo” (p. 88). Sunkara acredita que, devido às circunstâncias objetivas desfavoráveis, e ao fato de que não havia um modelo no qual se basear, os bolcheviques não tinham opções de verdade, mas ele conclui que o modelo deles, que seria “baseado em erros e excessos, forjado nas piores das condições, acabou se tornando sinônimo da própria ideia de socialismo” (p. 103-104). Ele não vê outra alternativa proposta por outros bolcheviques. O próprio Leon Trotsky é tratado como “o maior crítico do stalinismo”, mas um que “não admitia que toda e qualquer parte do sistema que ele tanto detestava tinha sua gênese na repressão inicial que ele mesmo ajudou a construir” (p. 101). Como resultado, o surgimento do stalinismo enquanto “um regime totalitário terrível, diferente de tudo que o mundo já tinha visto”, era um resultado trágico, porém inevitável, do atraso russo (p. 102). Em última instância, a forma como Sunkara enxerga 1917 é como uma tragédia, com uma atitude de que as ideias revolucionárias não têm nenhuma relevância hoje em dia.

A avaliação de Sunkara sobre as revoluções na China, Cuba e Vietnã não é muito diferente. Ele reconhece que foi o leninismo, não a social-democracia, que chamou à mobilização do Terceiro Mundo, uma vez que enfatizava a luta contra o imperialismo e as necessidades da maioria camponesa. Seguindo a linha defendida pelo fundador do DSA, Michael Harrirington, Sunkara defende que, como o Terceiro Mundo não tinha as pré-condições necessárias à construção do socialismo, os marxistas foram forçados a se apoiar em “substitutos do proletariado”, tais como os camponeses, para poder estabelecer as bases da modernidade capitalista. Em consequência, as revoluções chinesa, cubana e vietnamita foram feitas pelo alto e “governaram por cima e em nome dos oprimidos, não através deles” (p. 131). Contudo, em seu livro “Uma História Escondida da Revolução Cubana: Como a Classe Trabalhadora Moldou a Vitória das Guerrilhas” (inédito em português), Steve Cushion, diferentemente do que alega Sunkara, demonstra que houve envolvimento da classe trabalhadora durante todo o curso da Revolução Cubana, e que ela não pode ser reduzida a uma revolução pelo alto. Não há nenhuma consideração, pela parte de Sunkara, da possibilidade de que os camponeses podem ser um sujeito revolucionário, o que demandaria uma análise muito mais profunda das dinâmicas das revoluções chinesa, cubana e vietnamita do que as que ele apresenta. Ao invés disso, O Manifesto Socialista conclui que as revoluções do Terceiro Mundo reafirmam a noção de que o socialismo demanda uma base produtiva avançada para ser vitoriosa; caso contrário, o resultado será um coletivismo autoritário.

Esse argumento é baseado em uma leitura rigidamente etapista da obra de Marx, bem como em uma leitura histórica gravemente equivocada. Isso é algo que o próprio Marx rejeitou em seus escritos tardios sobre a comuna russa. Neles, Marx foi muito mais aberto acerca das possibilidades de uma revolução socialista em países subdesenvolvidos, em oposição à necessidade de todas as nações seguirem um mesmo caminho histórico espelhado naquele da Europa ocidental. Pior ainda é que, apesar de conhecer bem os escritos de Trotsky, Sunkara nem sequer debate a sua teoria da revolução permanente, a qual defendia que uma revolução poderia ocorrer na periferia capitalista antes de ocorrer no seu centro. Trotsky criticou enfaticamente uma via etapista: “Imaginar que a ditadura do proletariado depende, de algum modo, automaticamente do desenvolvimento e dos recursos técnicos de um país, é tirar uma conclusão falsa a partir de um materialismo ‘econômico’ simplificado até ao absurdo. Este ponto de vista nada tem a ver com o marxismo.” As revoluções no Terceiro Mundo confirmaram a teoria da revolução permanente, uma vez que as massas não aguardaram passivas e de braços cruzados pelo desenvolvimento do capitalismo. Ao contrário disso, elas levaram adiante as tarefas da revolução burguesa e foram além, ao adentrarem a via socialista. Apesar dos erros, limitações e retrocessos das revoluções chinesa, cubana e vietnamita, elas fizeram mais pelo avanço da causa socialista que as social-democracias da Europa ocidental, as quais fizeram, todas elas, pazes com o imperialismo.

A partir da sua visão da história, o que Sunkara propõe de concreto para os socialistas dos EUA? Ele defende que os socialistas devem levar em conta a situação particular do país, isto é, o sistema de dois partidos, que torna formar um partido socialista independente tão difícil. A despeito de não rejeitar a formação de um partido socialista como um objetivo distante, Sunkara acredita ser necessário operar dentro do Partido Democrata por tempo indeterminado. Todavia, diferentemente de Michael Harrington, Sunkara não acredita que realinhar os Democratas seja uma estratégia viável. O que ele defende é que, devido aos laços frouxos do Partido Democrata, ele é vulnerável a “um equivalente eleitoral de uma insurgência guerrilheira” (p. 232). Ele aponta o exemplo de Bernie Sanders e sua campanha eleitoral de 2016, que lutou contra a máquina do Partido Democrata: “Sanders acreditava que a via para alcançar reformas era através do confronto com as elites… [Ele] deu um sopro de vida ao socialismo nos EUA ao retorná-lo às suas raízes: luta de classes e uma base classista” (p. 201). Para Sunkara, Bernie Sanders representou um programa alternativo verdadeiro e sua campanha criou uma nova força política, os “bernicratas”, que lutam contra a desigualdade. O Manifesto Socialista defende que os socialistas devem se construir a partir da campanha de Sanders ao construírem a sua própria narrativa alternativa para que possam vencer as eleições e aprovar reformas diversas.

A argumentação de Sunkara minimiza o poder do Partido Democrata e sua habilidade de cooptar movimentos sociais, apresentando-o como um partido do povo, ainda que servindo aos interesses do capitalismo liberal. Ademais, seu argumento de que Bernie Sanders representa um divisor de águas na política dos EUA é uma falsa ideia e ignora histórico dele. Ainda que se possa dizer que Sanders era um “social-democrata classista” em sua juventude, isso não é mais verdade há muitas décadas. Como apontaram Murray Bookchin e Alexander Cockburn, Sanders é basicamente um político de carreira e um Democrata em todos os aspectos, exceto no nome. Sanders apoia e financia de forma sistemática as guerras imperialistas e o apartheid israelense e não defende um programa socialista, mas sim um liberalismo à lá NewDeal, como ele próprio admitiu recentemente.

Diferentemente do que faz Sunkara, nós socialistas devemos reconhecer as limitações de Sanders e do Partido Democrata e nos demarcarmos claramente através da criação de organizações independentes e da defesa de uma alternativa revolucionária.

Deve-se dar crédito a Bhaskar Sunkara por O Manifesto Socialista ser de fácil leitura. Sem dúvida, o trabalho de Sunkara atingirá uma audiência ampla, especialmente aqueles que desejam uma síntese das ideias e estratégia do socialismo democrático. Contudo, uma discussão séria sobre o socialismo deve começar pelo reconhecimento de que não foi o socialismo democrático, mas o comunismo revolucionário que rompeu as amarras do imperialismo. Isso significa que devemos lançar um olhar crítico sobre as organizações, métodos e meios necessários para tornar uma revolução possível, ao invés de repetirmos as estratégias fracassadas do reformismo. Isso é algo que O Manifesto Socialista não faz, significando que ele tem pouco valor para a devida compreensão do que é necessário para se alcançar o socialismo.

*Doug Enaa Greene é historiador. Autor, entre outros livros, de Communist Insurgent: Blanqui’s Politics of Revolution (Haymarket Books).

Tradução: Marcio Lauria Monteiro, com revisão de Morgana Romão.

Publicado originalmente no site Cosmonaut.

Referência


Bhaskar Sunkara. O manifesto socialista: em defesa da política radical numa era de extrema desigualdade. Tradução: Artur Renzo. São Paulo, Boitempo, 2021, 296 págs.

Nota do tradutor


[1] A paginação citada se refere à edição original da Basic Books (Nova York, 2019)

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