Por MANUEL DOMINGOS NETO*
Dois ministros-generais manipularam grotescamente estatísticas para, agradando o chefe, relativizar a devastação da pandemia. Onde se viu militar atrapalhando cientistas e médicos que trabalham intensivamente para proteger o povo?
Não dá para falar em desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil omitindo o militar. O militar ensinou engenharia, topografia e desenho. Construiu estradas, obras de arte, edifícios públicos monumentais e igrejas antes de o Brasil ter faculdades especializadas. Deu emprego a matemáticos quando não havia função remunerada para tal tipo de cientista. Desenhou mapas com traçados exatos de rios, montanhas e correntes marítimas quando ninguém sabia nada de geografia, cartografia, oceanografia e correntes aéreas.
Impulsionou a veterinária, o militar. Precisava de eqüinos capazes de transportar tropas e armamentos. Desenvolveu estudos agronômicos para garantir pastos aos animais e tecnologia de alimentos para ter produtos saudáveis para alimentar a tropa.
E mais: estudou e renovou a medicina, as ciências farmacêuticas e a odontologia ciente de que, sem vencer pestes, remendar ossos e curar feridos, não haveria tropa capaz de vencer batalhas. Disseminou hábitos salutares, procedimentos higiênicos e práticas esportivas para dispor de homens fortes.
Introduziu e desenvolveu o estudo da química, física, mineralogia e metalurgia para a produção de armas e munições. Compreendeu que sem dispor de aço da melhor qualidade, explosivos potentes e manipuláveis, barcos resistentes e bons combustíveis não seria credenciado para guerrear.
Foi pioneiro nos estudos estatísticos para saber quantos eram e onde moravam os brasileiros, do contrário não viabilizaria o serviço militar obrigatório universal e continuaria compondo tropas com camponeses infelizes recrutados no laço ou ladrões e assassinos retirados das cadeias e disciplinados na base da chibata. O IBGE foi imprescindível à modernidade militar.
O militar desenvolveu as comunicações e a logística para ter capacidade de operar em grandes espaços territoriais. Indo à guerra, barganhou usina siderúrgica, esteio de múltiplas indústrias.
Dedicou-se aos estudos aeronáuticos, à eletrônica e a computação para contar com aviões e foguetes que ampliassem sua capacidade ofensiva e sua autonomia relativamente ao fornecedor estrangeiro. Foi pioneiro na pesquisa nuclear visando dispor da arma dissuasão capaz de constranger candidatos a donos do mundo.
Estudou e ensinou filosofia a partir da matriz positivista. Enobreceu nosso “opulento léxico” (Euclides). Inaugurou o pensamento geopolítico sistemático (Mário Travassos). Traduziu a sociologia weberiana (Otávio Velho). Popularizou conceitos marxistas e empenhou-se na interpretação do Brasil (Nelson Werneck Sodré).
Gritos no Clube Militar ecoaram pela PETROBRÁS. O militar criou o CNPq e impulsionou a pesquisa científica. Turbinou a CAPES para que o país dispusesse de ensino superior qualificado. Ofereceu bolsas de estudo e criou comitês de avaliação do mérito científico. Garantiu recursos para a criação da Casa Ruy Barbosa e muitas outras instituições relevantes.
Reconheceu as ciências humanas como área do conhecimento científico. Propiciou a disseminação de programas de pós-graduação em sociologia do desenvolvimento, ciências políticas e antropologia. Prendeu, bateu e matou professores, estudantes, artistas e jornalistas que não gostavam da ditadura, mas espalhou universidades país afora. Olival Freire conta que, vendo que a repressão sanguinária afugentar cientistas importantes, o militar promoveu “repatriamento de cérebros”.
O militar inaugurou a FINEP para amparar a inovação. Criou a EMBRAPA para revolucionar a agricultura e a pecuária. Criou a EMBRAER para fabricar aviões e estimulou empresas como a ENGESA e a AVIBRÁS, que inseriram o Brasil no sofisticado comércio internacional de armas e equipamentos bélicos.
O militar amparou o surgimento e a consolidação da engenharia pesada que logo se projetou mundialmente e passou a incomodar os concorrentes estrangeiros.
Meus colegas da Sociedade Brasileira de História da Ciência que não me deixem mentir, mas não dá para descrever o desenvolvimento da ciência e da tecnologia no Brasil esquecendo os que se preparam para guerrear.
Eis que, como numa tempestade tenebrosa, o militar pirou, surtou, ensandeceu! Baixou Procusto no militar!
Assombrado por um fantasma apelidado de “marxismo cultural”, o militar se abraçou com terraplanistas, criacionistas, negacionistas tresvariados, inimigos jurados da razão.
Primeiro, o militar bateu palmas para o desmonte da engenharia pesada no Brasil. Depois, endossou a venda de empresas estratégicas que ele mesmo ajudou a criar. Finalmente, paraninfou um governo que retira dinheiro das universidades, desidrata agências de fomento à pesquisa, difama os institutos científicos, deixa sem manutenção equipamentos custosos, atenta contra a casa Ruy Barbosa, sabota eventos científicos, corta bolsas de estudo, inclusive as de baixíssimo custo e grande retorno em termos científicos e sociais como as bolsas de iniciação científica! Interrompe a perspectiva de jovens talentos de famílias humildes ingressarem na carreira científica…
Quem quiser acompanhar o lúgubre espetáculo do desmonte da pesquisa científica no Brasil prepare seu estômago e acompanhe as postagens de Ildeu Moreira, presidente da SBPC, nas redes sociais.
Ou assista ao vídeo em que dois ministros-generais manipularam grotescamente estatísticas para, agradando o chefe, relativizar a devastação da pandemia. Onde se viu militar atrapalhando cientistas e médicos que trabalham intensivamente para proteger o povo?
O militar sumiu quando ouviu calado o Presidente da República, em reunião ministerial, resumir a investigação arqueológica à descoberta de “cocô de índio petrificado”.
Senhor Deus dos desgraçados, dizei-nos, Senhor Deus, o que será de nós quando homens pagos para nos proteger perdem o senso?
*Manuel Domingos Neto foi presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED) e vice-presidente do CNPq.