Por FERNANDO SARTI FERREIRA & LINCOLN SECCO*
Tel Aviv é hoje o centro da extrema direita internacional
Se Moscou foi a sede do Komintern, Tel Aviv é hoje o centro da extrema direita internacional. As origens mais imediatas da ascensão fascista em Israel têm raízes na conjuntura aberta na década de 1970 que começou a destruição do pacto social-democrata que vigorou em muitos países nos trinta anos gloriosos.
No entanto, as raízes mais fundas da fascistização de Israel estão em sua formação como Estado nacional e na “monopolização” da barbárie que seis milhões de judeus europeus sofreram sob o nazismo.
Cabe dizer que os judeus foram as vítimas par excellence, mortas em grande escala e sob métodos industriais. Se o povo alemão tem uma “glória” eterna, foi a de ter sido um dos mais genocidas da história. Ainda assim, morreram 27 milhões de russos dentro de um total de 50 milhões de pessoas na Segunda Guerra Mundial. Entre eles ciganos, testemunhas de Jeová e particularmente comunistas. Se isso legitimou na época a criação de um Estado nacional judeu com apoio da URSS e EUA, por outro lado não deu carta branca aos israelenses para exterminar outro povo.
Não se trata de discutir o direito à existência, à paz e à segurança dos israelenses, pois o deslocamento forçado de população civil é um crime atroz, uma criação monstruosa do colonialismo europeu. No entanto, isso não significa que não possamos discutir a raison d’état de Israel. Como todas suas congêneres, a raison d’état israelense é uma construção ideológica e que obedece a interesses específicos, dentro de condições históricas também específicas. Ou entendemos isto, ou admitimos que a história é inútil como conhecimento humano.
A partir do momento em que o genocídio fascista se transformou – ou foi capturado – por uma memória nacional, ele se transformou em uma ideologia de Estado e, portanto, de poder. O Holocausto – ou seja, a violência à qual os judeus foram submetidos pelo fascismo alemão – é a principal temática da ideologia mobilizada pelo Estado israelense para justificar sua existência e política externa.
Por razões geopolíticas, os genocídios fascistas – houve também o de eslavos, ciganos, na Espanha de Franco e nas ocupações japonesas na Ásia – foi objeto de uma operação de despolitização ou silenciamento, pois a memória da Segunda Guerra construída pelos aliados precisava excluir o protagonismo dos comunistas nesta vitória. Não só dos comunistas soviéticos, mas de todos os militantes de esquerda na Europa que combateram o fascismo antes e durante a Grande Guerra – e que também foram exterminados.
Por outro lado, o silenciamento foi uma operação fundamental para reabilitar alguns Estados – Espanha e Japão, por exemplo – no rol de aliados em defesa do mundo livre. No entanto, é preciso destacar que essa despolitização, por outras razões, também ganhou força no Leste. Iniciada parcialmente por Stálin por razões de mobilização para o esforço de guerra, mas levada ao paroxismo pelos governos da restauração capitalista russa, a transformação da luta antifascista em Grande Guerra Patriótica foi outra vertente dessa despolitização. Por meio dessas operações, os genocídios fascistas deixaram de ser o resultado da economia política do fascismo e passaram a ser um problema exclusivamente cultural, étnico e racial.
Foi assim também que o liberalismo, os grandes empresários e os governos ocidentais não só reinventaram a sua falta de responsabilidade sobre o monstro do fascismo, como o reabilitaram politicamente sob o nome de “populismo de extrema direita”. Era preciso excluir o antifascismo da luta contra o fascismo. E assim foi feito. A partir desta perspectiva torna-se compreensível o que parece uma aporia: a sociedade israelense produziu e conduziu ao seu governo um movimento fascista.
Na tessitura dessa memória, não apenas a dor, as vítimas e os sobreviventes do genocídio foram instrumentalizados pelo bloco ocidental na reorganização de seus interesses durante o pós-guerra, mas, como uma espécie de compensação, foi concedido aos judeus a cidadania plena na cidadela do centro do capitalismo. Nesse novo mundo reinventado, além dos judeus terem sido promovidos ao status de brancos, os árabes, e especialmente os palestinos, foram transformados nos campeões do antissemitismo. E os europeus, que durante 2.000 anos perseguiram e assassinaram judeus, transformaram-se nos campeões do combate ao antissemitismo.
O novo fascismo
O fascismo europeu retornou paulatinamente nos anos 1980. Em verdade, ele nunca desapareceu como pequena e marginal força eleitoral permitida e resiliente. Na Itália, o Movimento Social Italiano readquiriu importância no início dos anos 1970 e em 2023 seus descendentes governam a Itália. Na França, Marine Le Pen representa uma força de massas; na Espanha, o Vox. Na Europa Central (Hungria, Polônia, República Checa e Eslováquia) os fascistas avançaram no século XXI.
No entanto, os fascistas juram que são democratas, levam a sério as disputas eleitorais, roubam o discurso da diferença da esquerda pós-moderna, retomam de maneira fake a defesa do Welfare State e dizem combater a globalização neoliberal. Entre os traços distintivos deles está a redefinição dos judeus como vítimas da ameaça islâmica.[i] Israel se tornou no discurso fascista uma colônia avançada europeia cercada por bárbaros do Oriente.
Isso é observável nas mudanças da extrema direita francesa e austríaca. Os cinco mil membros das fraternidades germânicas que funcionam como núcleos de base do fascista Partido da Liberdade da Áustria[ii] tiveram sua atenção chamada pela liderança do partido a fim de que agora trocassem os judeus pelos árabes como o seu bode expiatório. Na França, Marine Le Pen teve que expurgar o seu pai para se aproximar dos judeus franceses.
Obviamente o fascismo é plástico e escolhe suas vítimas de acordo com a oportunidade. Na Hungria, Viktor Orban teve uma primeira experiência de governo de direita tradicional neoliberal. Ao perder as eleições e deixar o poder para uma aliança socialista liberal de 2002 a 2010 ele reconfigurou o partido e o discurso.
Viktor Orban criou uma rede de círculos cívicos para refazer a direita a partir de baixo, aproximou-se da classe trabalhadora contra as elites liberais desconectadas da maioria que trabalha duro e defendeu uma sociedade de mérito sem gastos públicos com ciganos e ladrões. A comunidade húngara (re)imaginada é a de um povo cristão e europeu que deve viver sem imigrantes por perto. Embora as elites sejam definidas como o judeu Georges Soros, professores universitários e liberais cosmopolitas, o inimigo principal é o povo cigano. Viktor Orban defendeu o fim de taxas hospitalares e nas universidades para os húngaros.[iii]
Na Polônia onde milhões de judeus foram assassinados pelos alemães com a cumplicidade da maioria dos poloneses (aliás, toda a Europa continental colaborou de alguma maneira com o nazismo), o Partido Lei e Justiça (que chegou ao poder em 2015) atacou os vermelhos e o arco-íris (associando LGBTQIA+ e comunistas) e criou o slogan “Não somos racistas, apenas separatistas raciais”. Adotando políticas sociais compensatórias sem atacar o neoliberalismo de fato, ainda assim ele ao menos esgrimiu um discurso contra a austeridade abraçada pela esquerda e pelos liberais. O fascismo polonês também elegeu islâmicos como inimigos e difundiu a ideia de que 54 zonas estavam sob controle da Sharia na Suécia e que o mesmo não ocorreria na Polônia.[iv]
A Polônia, ao mesmo tempo em que persegue imigrantes, defende medidas sociais para poloneses natos. Adquiriu um forte componente de classe ao criar uma espécie de bolsa família para mães com duas crianças ou mais, aumentar o salário mínimo por hora e reduzir a idade de aposentadoria. Ao mesmo tempo, os ricos agradecem porque os fascistas mantêm apenas duas alíquotas de imposto de renda e não incomodam a burguesia.
Os países nórdicos de sólida tradição social-democrata não estão imunes. A Dinamarca é convenientemente esquecida como o país que inventou politicamente o neoliberalismo. Antes de Pinochet no Chile, Mogens Glistrup foi à TV em 1971 e defendeu a fraude fiscal e a redução do Estado. Atualmente os fascistas nórdicos se dedicam a influenciar o governo para tomar medidas como a proibição da burca, o que afetou entre 150 e 200 mulheres na Dinamarca. Na Áustria, a extrema direita também levou o governo a banir a burca. Na França aconteceu o mesmo. Em 2000, quando o Partido da Liberdade da Áustria entrou no governo de maioria conservadora, a União Europeia promoveu sanções diplomáticas, hoje isso é impensável.
Trata-se de um fenômeno de dupla face: para manter sua posição dominante, a direita agrega bandeiras do fascismo, mas ao mesmo tempo normaliza a extrema direita, aumenta a sua força e faz com que o próprio conservadorismo tradicional se torne dispensável.[v]
Como se vê, o fascismo europeu trocou o antissemitismo pela islamofobia. Não quer dizer que deixaram de ter preconceitos contra judeus. Mas a questão nunca foi o preconceito que os europeus têm basicamente por todos os não europeus. O que se trata é do seu uso político e ideológico oportunista pelo fascismo. Da mesma forma em que o fato do fascismo ter sido liderado por uma mulher na Itália e na França não o torna feminista.
Israel, ao eleger um criminoso fascista, capaz de mentir continuamente e comemorar o genocídio de outro povo, joga ao mesmo tempo com a culpa europeia pelo nazismo. Mas temos que ir além das aparências. A Europa precisa domesticar suas classes trabalhadoras que estão perdendo direitos históricos e uma maneira eficaz é entregá-las ao fascismo. Israel atua como a trincheira avançada do fascismo europeu contra o Islã.
O fato é que o deslocamento industrial da Europa ocidental para a Ásia, o fim de fazendas coletivas e o desmonte de fábricas nos países ex-socialistas do leste europeu não permitem mais à Europa simplesmente contar com a exploração imperialista para manter o padrão de vida de sua população. Isso continua, é óbvio. Mas estreitou-se a base de valorização do capital europeu. Diante da queda tendencial da taxa de lucro, os capitalistas abocanham recursos estatais e diminuem o salário direto e indireto. Os europeus convivem com remuneração menor, menos direitos e maior desigualdade. E alguém precisa levar a culpa, sejam os ciganos ou os árabes.
Para azar de um povo, o palestino, que nenhuma culpa tinha pelas atrocidades dos europeus contra os judeus, ele está sendo sacrificado a fim de que a própria dominação de classe na Europa ganhe mais um fôlego. Não é, portanto, só um problema de “consciência culpada” diante do Holocausto, mas de interesse material dos capitalistas. A luta contra o genocídio promovido pelo terrorismo de Estado de Israel é uma luta antifascista. Que os palestinos não tenham ainda a mesma solidariedade que os gregos em 1826 e os espanhóis em 1936 revela algo sobre a esquerda europeia atual.
*Fernando Sarti Ferreira é doutor em história econômica pela USP.
*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê). [https://amzn.to/3RTS2dB]
Publicado originalmente em Maria Antônia – Boletim do GMarx-USP, nº 8.
Notas
[i] Colborne, Michael. “Rise of a new far-right. The european philosemites’ using jews to battle muslims”, Haaretz, 21 de outubro de 2017.
[ii] Goldenberg, Anna. “Fraternities are feeding anti-semitism in Austria”, The Atlantic, 6 de novembro de 2023.
[iii] Szombati, K. “Viktor Orban’s authoritarian regime”, Fundação Rosa Luxemburgo, The far right in government. Six cases from across Europe.
[iv] Fundação Rosa Luxemburgo, The far right in government. Six cases from across Europe. Para uma discussão sobre o caráter internacional do neofascismo, veja-se Goldstein, Ariel. La reconquista autoritaria Cómo la derecha global amenaza la democracia en América Latina, Buenos Aires, 2022
[v] Adler, Katya. Far-right parties on the rise across Europe, BBC, 30 de junho 2023.
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