As ideias precisam circular. Ajude A Terra é Redonda a seguir fazendo isso.

O que fazer com o militar

Cecil Collins, Cabeça, 1963
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por GILBERTO MARINGONI*

Comentário sobre o livro recém-lançado de Manuel Domingos Neto

Um preocupante consenso de elites ronda a democracia brasileira: o de que as Forças Armadas nada tiveram a ver com a escalada golpista dos últimos quatro anos, cujo ponto culminante foi o terror de 8 de janeiro, em Brasília. Governo, Judiciário e a maioria do Legislativo irmanados com boa parte da mídia apressam-se em construir orações sem sujeito diante de um histórico de ordens do dia, acampamentos em frente a quartéis e participação de altos oficiais em articulações para desacreditar urnas, instituições e organizações da sociedade. Uma passação de pano ampla, geral e irrestrita busca convencer a opinião pública de que sem os fardados, a legalidade teria ido à breca.

Inúmeras vozes se insurgem contra esse acordão. Uma das mais qualificadas é a de Manuel Domingos Neto, no recém lançado O que fazer com o militar – Anotações para uma nova defesa nacional. Professor aposentado da Universidade Federal do Ceará e ex-deputado federal, o autor apresenta uma espécie de síntese de quase meio século de pesquisas, incontáveis contatos com oficiais e refinada análise do passado recente. Não faz rodeios em seu raciocínio: “Escrevi este livro para os que acham possível apaziguar o quartel com atendimento às demandas corporativas. Lula acreditou nisso e foi preso. Voltou ao governo contingenciado pelo fuzil. Dilma também acreditou e perdeu o cargo”.

Para Domingos Neto, o problema essencial é o que chama de transtorno de personalidade funcional do militar. Toda a pregação dos comandos superiores exalta a defesa da soberania e de um difuso conceito de Pátria. Contudo, desde a independência, os soldados são majoritariamente treinados para outra atividade, o combate ao “inimigo interno”. Isso teria se concretizado na manutenção do sistema colonial-escravista, na repressão a movimentos separatistas no Império e a qualquer tipo de rebelião popular na República.

Na Guerra Fria, a partir de 1945, a missão foi embalada pelas teorias de contra-insurgência e no combate à chamada subversão. A partir daí o soldado se percebe como “político, policial, empresário, assistente social, administrador público, construtor de estradas, perfurador de poços no semiárido, guarda florestal, vigia de fronteira, entendido em Segurança Pública, controlador dos tráfegos aéreo, costeiro e fluvial, supremo avaliador da moralidade e planejador do destino nacional”, escreve o autor. Incapazes de desempenhar sua função essencial, a defesa contra a agressão externa, as Forças arrogaram-se o papel de interventoras frequentes na vida política.

Domingos Neto avalia que o Brasil possui um arremedo de Defesa. “Neste domínio, a República fracassou. Para a afirmação da soberania brasileira, precisamos de uma nova Defesa, que revise as funções, a organização e a cultura das Forças Armadas. Chamo essa revisão de reforma militar”, afirma.

A partir daí o livro esboça bases de uma profunda mudança na organização e nos objetivos da caserna. O passo inicial seria o rompimento das Forças com a grande indústria transnacional de armas e com os desígnios das potências hegemônicas.

A reforma proposta deveria rever o número excessivo de generais sem função e a distribuição das tropas pelo país, além de abrir caminho para que mulheres e negros tenham ascensão hierárquica. O trabalho exalta a necessidade de maior investimento estatal em ciência e tecnologia, para dotar o setor de capacidade operacional diante das novas características da guerra. Por fim, deve-se abrir um grande debate nacional sobre Defesa. Trata-se de articulação eminentemente política, que não pode se restringir aos muros da caserna. “Comandantes precisam ser consultados sobre a Defesa, mas a sua concepção e condução cabem ao político”, sublinha Domingos Neto.

Dois pontos buscam amarrar o conjunto de proposições feitas no livro. O primeiro é acabar com a ideia de que as Forças Armadas seriam um poder moderador, com capacidade de intervir na vida política do país, como estabelece o artigo 142 da Constituição. O segundo aponta para uma política abrangente de Defesa, que precisa incluir a coesão social e cidadã do país. Isso implicaria redução da pobreza e da desigualdade, de toda ordem de preconceitos e das disparidades regionais, além da consolidação do regime democrático.

O que fazer com o militar é obra de intervenção e quase um libelo pela mudança do lugar das Armas nas políticas de Estado. O apelo é enfático: “Hoje, os generais tentam administrar perdas e danos por seu envolvimento direto e indireto na baderna golpista. Lula persiste no apaziguamento: comemora o Dia do Exército, ritual enaltecedor da índole colonial da corporação e exalta o Exército de Caxias, expressão que legitima as intervenções domésticas da Força Terrestre”.

Tudo indica haver uma oportunidade histórica para se promover uma grande reestruturação nas forças de Defesa e segurança. O livro de Manuel Domingos Neto é um poderoso alerta de que essa oportunidade não dura para sempre.

*Gilberto Maringoni, é jornalista e professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC).

Referência


Manuel Domingos Neto. O que fazer com o militar – Anotações para uma nova defesa nacional. Parnaíba, Gabinete de Leitura: 2023, 224 págs.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.800 autores.
Gabriel Cohn Luiz Bernardo Pericás Mário Maestri Marcos Silva Marilena Chauí Leonardo Boff Leda Maria Paulani Jorge Luiz Souto Maior Alexandre de Lima Castro Tranjan Antônio Sales Rios Neto Celso Favaretto Mariarosaria Fabris Vanderlei Tenório Remy José Fontana Ruben Bauer Naveira Luciano Nascimento Juarez Guimarães Daniel Brazil João Carlos Loebens Dennis Oliveira Michael Löwy Benicio Viero Schmidt Alexandre de Oliveira Torres Carrasco José Dirceu Milton Pinheiro João Paulo Ayub Fonseca Roberto Bueno Leonardo Avritzer Antonino Infranca José Micaelson Lacerda Morais João Adolfo Hansen Annateresa Fabris Chico Alencar Yuri Martins-Fontes Henri Acselrad Bruno Machado Luiz Roberto Alves Roberto Noritomi Carla Teixeira Luiz Werneck Vianna Ronald Rocha Afrânio Catani José Luís Fiori Rafael R. Ioris João Carlos Salles Ari Marcelo Solon Lincoln Secco Alexandre de Freitas Barbosa Luís Fernando Vitagliano Paulo Capel Narvai Fábio Konder Comparato Atilio A. Boron Paulo Nogueira Batista Jr José Raimundo Trindade Kátia Gerab Baggio Valério Arcary Ronaldo Tadeu de Souza Elias Jabbour Henry Burnett Everaldo de Oliveira Andrade André Singer Ronald León Núñez Otaviano Helene Marcelo Módolo Rubens Pinto Lyra Ricardo Antunes Eugênio Bucci Matheus Silveira de Souza Julian Rodrigues Lorenzo Vitral Vladimir Safatle Érico Andrade Luiz Eduardo Soares Ricardo Fabbrini Priscila Figueiredo Manchetômetro Daniel Afonso da Silva Bernardo Ricupero Anselm Jappe Samuel Kilsztajn Thomas Piketty Armando Boito Osvaldo Coggiola Dênis de Moraes Fernando Nogueira da Costa Celso Frederico Paulo Fernandes Silveira Anderson Alves Esteves Jean Marc Von Der Weid André Márcio Neves Soares Daniel Costa José Costa Júnior Jorge Branco Michael Roberts Eleutério F. S. Prado Marcos Aurélio da Silva Berenice Bento João Feres Júnior Heraldo Campos Carlos Águedo Paiva Sergio Amadeu da Silveira Ricardo Musse Leonardo Sacramento Marcus Ianoni Francisco de Oliveira Barros Júnior Luis Felipe Miguel Marjorie C. Marona Eduardo Borges Lucas Fiaschetti Estevez Francisco Pereira de Farias João Sette Whitaker Ferreira Paulo Martins Tarso Genro Luiz Augusto Estrella Faria Airton Paschoa Gilberto Lopes Ladislau Dowbor Walnice Nogueira Galvão Paulo Sérgio Pinheiro Marilia Pacheco Fiorillo Luiz Marques Rodrigo de Faria Plínio de Arruda Sampaio Jr. Liszt Vieira Gerson Almeida Eliziário Andrade Vinício Carrilho Martinez Boaventura de Sousa Santos Igor Felippe Santos Luiz Renato Martins José Geraldo Couto Francisco Fernandes Ladeira Flávio R. Kothe Tadeu Valadares Tales Ab'Sáber Luiz Costa Lima Antonio Martins Jean Pierre Chauvin Ricardo Abramovay Alysson Leandro Mascaro João Lanari Bo Marcelo Guimarães Lima Alexandre Aragão de Albuquerque José Machado Moita Neto Denilson Cordeiro Bento Prado Jr. Caio Bugiato Eugênio Trivinho Maria Rita Kehl Claudio Katz Eleonora Albano Luiz Carlos Bresser-Pereira Flávio Aguiar Manuel Domingos Neto Carlos Tautz Andrew Korybko Sandra Bitencourt Slavoj Žižek Chico Whitaker Fernão Pessoa Ramos

NOVAS PUBLICAÇÕES