O que é, porém, o homem?

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Por FLÁVIO R. KOTHE*

A literatura seria um espaço para repensar o que é o homem e sua história

1.

Uma revista ou um site refletem o que é prioritário para seus colaboradores, intermediam o diálogo virtual entre os autores e os leitores, mas acaba formando um legado para que no futuro se possam repensar o proposto e o que foi silenciado. É como se todos juntos quisessem apreender o real mediante conceitos. Hegel dizia que o conceito deve fazer um esforço (Anstrengung des Begriffs) para captar o real, tratando de fazer que ambos coincidam (o que acaba sendo inviável, mas ele achava que o que está na mente pode ser o mesmo que o que está fora dela).

Somos bombardeados dia e noite por empresas sígnicas transnacionais, que tratam de nos converter à sua perspectiva, fazendo um reiterado processo de lavagem cerebral como as aulas de catequese e os sermões de padres e pastores. Os espectadores acham que só estão se divertindo ou vendo o noticiário, mas de fato estão sofrendo reforços nas estruturas que já foram montadas em suas mentes, sem que se esforcem para discernir os vetores que fazem com que vejam o mundo de um determinado modo e não de outro. Durante o dia, a maioria fica perdida na correria entre entes determinados, para conseguir sobreviver, e à noite são remetidos ao culto de uma tradição metafísica que não quer ser superada.

Onde fica a diferença entre o que parece mera provocação gratuita e aquilo que é ultrapassar o limite das “conveniências”? A expressão “a Terra é redonda” se contrapõe à tese de que a Terra seria plana. Enquanto a antítese ficar se afirmando como negação da tese, estará presa, porém, às limitações do que ela busca negar. Vale a pena ficar discutindo com débeis mentais? Seria uma debilidade. A negação deve abrir espaço para a superação do jogo entre A e não-A, ir além dessa dialética negativa, para alcançar horizontes que a mera tese A não consegue discernir nem quer que sejam questionados.

Como a antítese somente surge mediante a desconfiança de que não se sustenta o que é afirmado na tese, seria sua vocação mais intrínseca querer dar um passo adiante, ou seja, abrir-se para o espaço que inaugura a superação da contrapartida entre tese e antítese. Há nela uma vocação libertária, que ela própria pode negar. Nela existe a esperança de que dias melhores virão. A negação da negação não é por si superioridade.

Com a pretensão de superar Hegel, o esperto Theodor Adorno achava que o suprassumo da filosofia seria a negação da negação: criticava o capitalismo industrial e a opção socialista. Se criticava o baixo gosto da industrialização da cultura (que não é “indústria da cultura”), afirmava, no entanto, uma aristocracia do gosto artístico, que era eurocêntrica (e não sabia que era) e elitista (e fingia não ser). Essa “dialética negativa” acaba sendo a negação da dialética, pois reitera antinomias e não consegue ver fenômenos em que, por exemplo, o bom gosto pode ser cultivado no espaço público ou é preciso desenvolver políticas que minorem mazelas vigentes.

A ficção aparenta inventar outro mundo, fugindo à reprodução literal do que parece real. O que é, no entanto, “real”? Não há realidade sem interpretação dos fatos. Real é o efetivo, aquilo que nos afeta, mas que existe fora de nós ou de nossa consciência, não sendo apenas projeção subjetiva. As palavras podem servir para silenciar o mais relevante. Por outro lado, podemos por vezes falar melhor sobre o real nos desviando dele. Parece que optamos por uma “linguagem indireta”, mas não há nenhuma linguagem direta, que diga como as coisas são. Então a indireta também não é “indireta”. Pode levar, porém, direto ao ponto nodal.

2.

A ficção toma como ponto de partida não dizer as coisas como parecem ser, para dizer estruturas subjacentes que não se quer que apareçam. É um modo de mentir para ser mais verdadeiro. Permite que se diga o que não se costuma querer que se diga.

A resenha é problemática, pois ela tende, numa revista acadêmica, a ser um elogio a colegas e amigos, a propaganda de um clique que se considera superior, sem haver aprofundamento das questões propostas no livro em análise. Caso se tenha de falar mal de um livro, mais conveniente é silenciar. Por outro lado, é um gênero que precisaria ser mantido, pois estamos vivenciando a falta de crítica independente na grande imprensa, que só se volta para obras de grandes editoras, porque estas são detentoras do espaço. Por outro, seria importante manter um espaço para comentar obras que, publicadas em editoras menores, não recebem a atenção devida.

A tradução literária parece que não tem mais sido praticada quanto era há décadas passadas. A ditadura militar exilou línguas como o francês, o latim e o grego, que costumavam fornecer modelos literários que pediam encontrar um equivalente em português. Parece não haver mais a mesma preocupação com o que é produzido na Rive Gauche. O domínio das línguas das metrópoles coloniais foi substituído pelo inglês como língua geral, nos países sob controle do império ianque.

Vemos os filmes de Hollywood, mas não vemos os do Bollywood da Índia nem os da África, ainda que cada um produza mais que a Califórnia. Há um controle sobre a distribuição, que em geral não se percebe, pois não se vê o que não aparece. Pior cego não é o que não quer ver, mas que não quer que outros vejam.

Querendo ou não, sofremos a guerra digital. As notícias que aparecem na grande mídia brasileira estão marcadas pelo perfil do interesse ianque. Poucos têm acesso ao que fontes russas, chinesas ou árabes diriam sobre os mesmos fatos supostamente noticiados. As universidades brasileiras não estão preocupadas com essas línguas, ainda que a história já esteja se voltando para novos caminhos.

Palavras podem servir para não dizer o que mais importa, silêncios escamoteiam o que não se quer que se diga, sem que pareça que não se está a dizer. Assim, dizer que as palavras servem para não dizer o que as coisas são é uma oração que nega a si mesma. Elas mentem tanto quanto seus silêncios, pois eles costumam ser silenciamentos, algo que de propósito não se diz.

Não se trata apenas da “intenção” que o autor interpõe ao que diz e não diz, para levar o leitor para onde quer que ele chegue. Pascal dizia que às vezes convém chamar Paris de Paris, outras vezes de capital do reino. As duas denominações estão corretas, mas uma pode ser mais apropriada que a outra. Cada uma deixa de lado, porém, outros modos de denominar.

3.

Há muitos autores brasileiros que se perguntam por que, se são autores de bons textos, não são publicados pelas grandes editoras? Eles sequer conseguem ter acesso a elas. Os grandes editores não precisam dar explicações, nem querem. Talvez nem contem com leitores profissionais, que possam procurar bons textos entre os originais que recebem. Podem até organizar cursos de redação literária ou acadêmica, para que os pagantes alunos alimentem a ilusão de serem publicados.

Alguém pode, antes de completar 40 anos, ser publicado por várias grandes editoras e, depois dos 40, por nenhuma. É como se, em vez de progredir, tivesse ficado bobo. Na época da ditadura, a explicação podia ser simples: após publicar vários livros no mesmo ano em grandes editoras, o autor podia ter entrado numa misteriosa lista de pessoas indesejadas pelo governo e ter de sair do país. Era ruim por ser bom demais. Também coleções inteiras de livros – como Os Pensadores, Os Economistas, Cientistas Sociais, Socialismo Italiano – podiam ter sido consideradas indesejáveis por altas chefias da ditadura e os editores acabavam tendo de inventar pretextos para encerrar as coleções, sem que jamais isso tenha sido exposto claramente. Nada sendo contado nem debatido, é como se nada tivesse acontecido.

Quando prepara um texto para publicação, o autor veste-o com palavras seletas, como se fossem roupa domingueira, de quem vai à missa e comparece perante sua comunidade. O problema é que a força do bom texto literário está na autenticidade de revelar o que impulsiona e mostra o pulso do autor. É como se sua construção fosse um strip tease da alma.

Palavras são armas – de defesa e de ataque –, mas também ferramentas que cavam, escavam, plantam e produzem, só que a palavra literária é una com o que ela diz: não é algo externo, separado, como são armas e ferramentas, ainda que o autor trabalhe nela como o escultor com a pedra. Ela é o aceno para algo que está além do sujeito e do dicionário, a busca do espaço precário do aceno de uma transcendência: é um enigma e sua cifra.

Se um arquiteto faz um traço no papel, exerce a sua vontade de poder, que irá direcionar o trabalho do mestre de obras e todos os seus auxiliares, mas ao mesmo tempo ele está submetido aos comandos daquilo que precisa ser feito. Se ele fizer algo errado, ou menos previdente, o erro há de permanecer e se reproduzir. Os acertos também se desdobram, a verdade da obra não está tanto no projeto quanto naquilo que foi executado.

4.

A ficção não se resolve com os efeitos práticos que há na arquitetura. Ela é uma interrogação não apenas sobre eventos e fatos, mas uma busca que vai além da mera conceituação. Por mais que conceitos se esforcem e sejam forçados a captar o que quer se recusar à fala, a literatura usa invenções para explorar o mais recôndito da mente humana.

O cânone brasileiro é uma exaltação do país, de sua história, de suas elites. Ele não é uma busca radical da verdade do homem nem do país. Prefere uma exaltação parcial de uma “parcela superior”, não uma reflexão profunda sobre o que é o ser humano, como tem sido feito por grandes obras da literatura universal, aquelas que ensinam a pensar mais a fundo e são evitadas pelo sistema de ensino do país como, dizem, o diabo evita a cruz. A literatura brasileira é mais ampla do que o cânone: poderia ser mais profunda, mas não é. A supraestrutura se constrói conforme a infraestrutura. Exatamente nessa brecha, porém, ela deveria se desenvolver e se repensar.

Se a literatura seria um espaço para repensar o que é o homem e sua história, o que é, porém, o homem? As definições que ele deu de si servem antes para esconder o que ele é. Há um jogo de cena. As histórias que o homem conta e ensina servem para escamotear a visão nua e crua dos fatos subjacentes. O homem, sendo demoníaco, se dá uma origem divina…

O ser humano não é “humano”, no sentido de compassivo, bondoso. Fome aos milhões, assassinatos por toda parte, matanças, destruições e massacres fazem do “humano” uma hipocrisia sem espelho. Ele também não é o animal racional que afirma ser: usa a razão para dar melhor vazão à brutalidade que lhe é inerente, faz dela uma esperteza para abocanhar o alheio fingindo-se de santinho. Ele não é um “cristão”, como suas igrejas também não são, ainda que proclamem ser.

Concordando ou não com tais “provocações”, a literatura é um espaço em que elas podem ser debatidas. Isso não fica claro para quem diz que a boa formação do escritor se dá só com Machado, Andrades, Lispector, ou seja, apenas com “clássicos da brasilidade”. Onde ficam Homero, Eurípides, Cervantes, Shakespeare, Tolstói, Dostoiévski, Kafka? No exílio em que foram postos pelo cânone imposto nas escolas do país. Quando se escutam discursos dos “letrados do país”, logo se percebe quantas letras lhes faltam.

Um país só se torna forte quando vive a verdade. O silêncio que aqui se faz em torno dela machuca e dói. De que verdades o silêncio nos afasta, se a grande mídia mente e a diversão das multinacionais dos signos engana? Seremos guardiões de portas que não se abrem?

No percurso da ilusão que acomoda, não estaremos à altura das tarefas que nos aguardam. A ficção precisa inventar e se reinventar para investigar e expor o que é crucial. Essa é sua cruz, em que se cruzam as linhas da sucessão temporal com a que liga o finito com o infinito.

*Flávio R. Kothe é professor titular aposentado de estética na Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Benjamin e Adorno: confrontos (Ática). [https://amzn.to/3rv4JAs]


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