Por JEAN PIERRE CHAUVIN*
Ainda presidente, o messias dos cínicos, entreguistas e tolos não aprendeu nada com o cargo que ocupou
No ressentimento, o tempo da vingança nunca chega
(Maria Rita Kehl. Ressentimento, 2004, p. 11)
Em 2018, metade dos eleitores “úteis” coroou o lawfare, encampou as fake News e botou no poder máximo um sujeito que passou os quatro anos de seu mandato (inútil) a combater a coisa pública. No leme da nau dos loucos, ia o capitão desgovernante; seu primeiro-imediato era um Chicago Boy que não percebia conflito de interesses em ser alto especulador da bolsa e ministro da economia. Para além das histriônicas aberrações que ocupavam as pastas ministeriais, o segundo imediato era um ex-juiz com ralo conhecimento de sua área de atuação e que, em nome da suposta “luta anticorrupção”, topou o acordo escandaloso de intercambiar a prometida (mas não cumprida) chefia do STF pela prisão (com “convicção”, mas sem qualquer prova material) do candidato à presidência que fazia frente a ala mais lunática, cínica e sádica da política nacional.
Como era de se esperar, em quatro anos o atual presidente da república nada fez pelo povo, inclusa a fatia expressiva de seu eleitorado mitômano. Do contrário, esbanjou dinheiro público (embora se dissesse “contra a máquina”). Mentiu milhares de vezes: reivindicou como coisa sua as obras iniciadas no governo Dilma; fingiu que o pix seria sua criação pessoal; protegeu milicianos, madeireiros e grileiros; blindou os filhos e amigos contra numerosas investigações. Escorado em Paulo Guedes, retirou direitos trabalhistas; contou lorotas absurdas na ONU sobre o suposto combate à pandemia, sem pudor algum. Zombou dos pacientes com falta de ar contaminados pelo vírus da Covid-19 (que nunca levou a sério); fingiu ler artigos científicos (sem citar autores ou periódicos onde teriam sido publicados). E, claro, alegou combater o comunismo… Derrotado no primeiro turno, comprou milhões de votos, país afora, recorrendo aos correligionários que ocupavam as prefeituras mais remotas e reacionárias; ameaçou os eleitores, alegando que o Brasil corria o risco de tomar um caminho perigoso, a exemplo de alguns países vizinhos.
Os últimos atos do santo do pau oco (corte de verbas, corte de verbas, corte de verbas), entre novembro e dezembro de 2022, tiveram alvos certos: educação, saúde, defesa civil e… água. Sim, corte da água de quem? De habitantes do árido, na região Nordeste. Derrotado nas urnas pela segunda vez, no dia 30 de outubro, o mitômano passou setenta e duras horas em silêncio, talvez para chamar atenção, mas também com a expectativa de que os pseudopatriotas respaldassem uma tentativa de autogolpe. Enquanto a turma de delinquentes (sob os olhos brandos da força pública) tomava chuva, vento e raio, clamando por “intervenção federal” (com mensagens endereçadas aos EUA e aos alienígenas), um dos filhos do presidente foi flagrado a festejar jogos da Copa no Catar in loco.
Esse misto de ressentimento, delírio e desfaçatez está entranhado em nossa história pelo menos desde a década de 1910. Uma das contradições mais eloquentes da República está na coexistência do discurso modernizador, em nome do progresso, com a sanha reacionária e conservadora. Progresso para quem? Modernização de que maneira? Conservação do quê? Nos últimos meses, circulou nas redes sociais a máxima de que “o brasileiro não precisa ser estudado; precisa estudar”. Em verdade, ambas as operações são necessárias, pois complementares. Entre as décadas de 1930 e 1960, parte da intelligentsia nacional pintou a colonização portuguesa com as cores da suposta harmonia racial; na sequência, supuseram que as emoções prejudicavam a racionalidade do brasileiro e traduziam o conflito que cimentava o homem cordial; depois, sustentaram que haveria um éthos nacional.
A pretensão de explicar de onde viemos, por que somos e como agimos persiste. Mas, pelo menos desde a década de 1970, desconfia-se que aquelas tentativas são pretensiosas porque totalizantes e eufemísticas: alguém será capaz de entender as contradições do país onde vive enquanto não reconhecer as incoerências pessoais? Sem pretensão alguma, talvez seja mais produtivo destacar certos traços que orientam o comportamento dos poderosos e seus opositores, no país, a começar pelo autoritarismo generalizado, que “fundamenta” a postura do macho-alfa contra as mulheres (que eles dizem prover); dos militares contra os civis (que os fardados alegam proteger); dos políticos contra o povo (que os diplomados fingem representar); de incertos religiosos contra os fiéis (que fingem glorificar em nome de deus).
Ao lado da mania de mandar está a sanha conservadora, que grassou em meio à destruição do país, em benefício das potências militares e econômicas, sempre dispostas a nos tutelar, em nome da “liberdade” e da “democracia”. Afora o verniz cultural, mais lustroso entre os reacionários dos anos de 1930, efetivamente não há grande distância entre o integralismo e o bolsonarismo. Noventa anos de golpes dentro e fora do parlamento, especulação financeira e rentismo foram incapazes de despertar consciência de classe e qualquer forma de solidariedade – afora aquelas protagonizadas por pessoas-exceções.
Ainda presidente, o messias dos cínicos, entreguistas e tolos não aprendeu nada com o cargo que ocupou. Permaneceu no reino da fantasia, deslumbrado com o poder de dizer “quem manda sou eu”. Feito criança perversa, criticou e demitiu quem protagonizasse maior importância ou popularidade que ele. Pirracento, ressentido, tirânico, usou e abusou de chantagens em rede nacional, convertendo questões públicas em ofensas pessoais. Chegou a criar listas de inimigos da república, o que certamente implicava reconhecer que os seiscentos nomes tinham razão em criticar os arbítrios praticados em seu governo – pautado pelo capachismo frente aos EUA; o reaparelhamento escandaloso das forças armadas; o incentivo ao desmatamento e à cultura do agrotóxico; e, antes de tudo, a cumplicidade, para não dizer protagonismo, frente às práticas genocidas.
O rei da pirraça não foi eleito e mantido em seu canto da bagunça, ou no cercadinho, graças aos desígnios de deus; mas, sim, devido à desfaçatez e ao sadismo dos homens e mulheres que o elegeram e financiaram. Ele é produto, mas também reproduz, parte da escrotidão da subespécie que conduz os negócios mais escusos do país. O ainda presidente pareceu confundir amor-próprio com dignidade, para benefício dos seus e malefício de todos os outros. A falta de um projeto de nação, combinada à megalomania, manteve-o na estratosfera chucra, excludente e elitista.
Ora, diferentemente de um sexagenário egoísta e sem escrúpulos, as crianças saudáveis logo compreendem que de nada adianta reter a bola, o carrinho ou a boneca: é muito mais vantajoso dividir o brinquedo com as outras, para criar um mundinho melhor.
*Jean Pierre Chauvin é professor na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Mil, uma distopia (Luva Editora).
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