Por FRANCISCO BATISTA JÚNIOR*
Não há solução para o SUS sem o combate a todas as formas de privatização e sem eliminar de vez todas as ferramentas e instrumentos de gestão que diversificam e fragmentam suas regras conceituais
Do ponto de vista do estrito aspecto legal, a aprovação do Sistema Único de Saúde – SUS na Constituição Federal de 1988 foi um duro golpe nas classes dominantes brasileiras, formadas na exploração e apoderamento do Estado através da concentração de renda e da exclusão social.
Numa área estratégica para eles, a saúde, que sempre tiveram como fonte privilegiada de ocupação e exercício de poder e significativos ganhos materiais, num sentido inverso o SUS apontava para a garantia de acesso universal e integral às ações e serviços e, suprema “provocação”, a prática da democracia participativa através dos Conselhos e Conferências de Saúde.
Era demais! Logo passaram à ofensiva atuando politicamente nos legislativos e nos diversos espaços constituídos para, fosse através de adequações legais como as leis que criaram as organizações sociais, as organizações da sociedade civil de interesse público e as parcerias público-privadas, fosse simplesmente descumprindo requisitos legais como o que determina que o SUS pode contratar serviços privados apenas de forma complementar, continuar e até mesmo aprofundar o apoderamento do Estado, dos seus recursos e das suas instituições.
Comprometimento do já insuficiente financiamento, dependência do setor privado para a realização de procedimentos, total e absoluta precarização da contratação e da remuneração da força de trabalho, corrupção generalizada e profundas distorções nos instrumentos de gestão e gerência da rede têm desde então minado a capacidade do Sistema que tem resistido graças aos abnegados trabalhadores e parte dos gestores.
A partir do primeiro governo Lula, setores que se identificam como esquerda, grande parte deles integrantes do Partido dos Trabalhadores, passaram a defender novas propostas de gestão e gerência da rede como alternativa, de acordo com a narrativa então colocada, à privatização do SUS através das OS, OSCIP etc.
Começaram com as fundações “estatais” de direito privado. A palavra “estatais” não é gratuita, pois busca iludir os incautos menos atentos de que é do Estado – o que diga-se, é verdade –, consequentemente não seria privada, e que dessa forma a privatização estaria sendo debelada do SUS. Vieram em seguida a EBSERH, o Serviço Social Autônomo e, por fim, escancarando os reais objetivos, os “parceiros privados”, que do ponto de vista prático tem poucas diferenças das famigeradas OSs e OSCIPs.
Além de terem feito tudo à revelia das decisões em contrário dos Conselhos e Conferências de Saúde, há duas questões que os revisionistas parecem não compreender quando apontam essas propostas como as soluções quase miraculosas para “enfrentar a privatização” no SUS.
A primeira é que não há somente a privatização clássica, quando um bem público é vendido, ou – como no caso do SUS que não pode ser vendido – entregue a um ente privado para ser administrado, a serem consideradas. A nefasta história da privatização do Estado brasileiro se dá também de outra forma tão cruel quanto a privatização clássica, como é o caso do seu apoderamento por grupos econômicos e políticos que dele se utilizam para as ações patrimonialistas, clientelistas e fisiologistas.
Todas essas alternativas apresentadas e implantadas pelos revisionistas do SUS são ferramentas privilegiadas de apoderamento do Estado através de indicações políticas para suas direções e cargos comissionados, gratificações elevadíssimas para os que integram as cúpulas diretivas, bem como clientelismo nas contratações e demissões de pessoas e nas compras de insumos em geral. Convenhamos que essas são características de um Estado historicamente explorado e assaltado, e que, antes de serem fortalecidas, como são com essas experiências, precisam ser extirpadas.
Num breve balanço, em nenhum lugar onde essas “ferramentas de gestão” foram implantadas, os reais e estruturais problemas do SUS foram resolvidos. Num sentido inverso, muitos outros problemas foram criados, como são os casos das denúncias de corrupção, da criação de verdadeiras castas e seus privilégios e fartos casos de assédio moral. Além disso, a falta de resolutividade dos serviços continua sendo a regra e todas foram transformadas em aparelhos políticos disputados por grupos organizados a depender do governo de plantão. Tudo que desgraçadamente sempre houve no Estado brasileiro, agora de forma mais sofisticada e cruel.
A outra questão diz respeito ao aspecto conceitual do Sistema Único de Saúde. A palavra “único” não é apenas figurativa, significa que se realmente o Sistema e suas regras fundamentais não forem únicas, ele não se sustenta, não se viabiliza.
Sob esse prisma constatamos que diante dos ataques que começaram a ser desferidos contra o SUS desde a sua aprovação e posterior regulamentação, as soluções apresentadas pelos revisionistas, antes de fazerem realmente o enfrentamento com os nossos adversários, retroalimentaram o processo de destruição conceitual do Sistema.
Foi assim com a contratação em massa e até mesmo de forma substitutiva ao público de serviços privados como forma de atender demandas da população, ao invés de estruturar e ampliar a rede própria, pública, alimentando dessa forma uma forte e concorrente rede privada que cada vez mais competia e compete com o SUS na realização de procedimentos e na contratação de profissionais. Nós aprendemos, é bom relembrar, que não há como ter um Sistema de Saúde público, universal e integral, com fortes sistemas privados concorrentes.
Foi assim quando estimularam a constituição e contratação de cooperativas de profissionais, não enfrentando o problema da remuneração e valorização dos trabalhadores e consolidando com isso a mercantilização do trabalho na saúde.
Foi assim quando não colocaram na pauta as dificuldades na gestão e na gerência da rede, para debater a legislação e as possíveis formas de resolvê-las, optando pela criação dos novos “paradigmas” de gestão, OS, OSCIP, Fundação “Estatal”, Serviço Social Autônomo, EBSERH, “Parceiro Privado” que, como vimos, não somente não solucionaram nossos problemas estruturais como aprofundaram os que existem e criaram outros.
Isso tudo explica a permanente crise nos hospitais federais no Rio de Janeiro. O clientelismo, as indicações político-partidárias sem nenhum critério que não seja a nefasta ação patrimonialista, a precarização da força de trabalho como regra e a total ausência de debate democrático, mantém os hospitais em permanente estado de sofrimento que nunca é enfrentado com a seriedade que merece.
Sem qualquer debate no Conselho Nacional de Saúde, no Setorial Nacional de Saúde do PT ou qualquer outro espaço de legitimação democrática, começa a ser divulgado em órgãos de imprensa que “a ideia de que a gestão das 22 unidades (hospitais) da União seja repassada a diferentes órgãos sob a supervisão da Casa Civil e não mais do Ministério da Saúde”. É importante lembrar que a Casa Civil é comandada pelo ex-governador da Bahia, estado onde o SUS mais sofre com as experiências privatizantes, pioneiro inclusive na PPP em saúde.
“Ha unidades que vão virar fundações; outras, empresas públicas – e há a previsão de entrada, no Rio, do Grupo Hospitalar Conceição. Um hospital deve passar para o estado; outro para o município. O maior do Rio, o INCA, com quatro unidades, deve passar a ser gerido por Parceria Público-Privada”.
Não é nenhum exagero afirmar em alto e bom som que poucas vezes tomamos conhecimento de algo tão grave a ser pensado para serviços do SUS no Brasil. Se sabemos que aquilo que faz o Ministério da Saúde, aparece como referência para estados e municípios, podemos imaginar o que pode ser deflagrado em todo o país.
Não há solução para o SUS sem o combate a todas as formas de privatização e sem eliminar de vez todas as ferramentas e instrumentos de gestão que diversificam e fragmentam suas regras conceituais, que deveriam ser únicas de fato, cabendo as exceções e flexibilizações aos casos bem específicos.
A contratualização direta entre os serviços e seus respectivos níveis de gestão, de modo a lhes prover plena autonomia administrativa, financeira e política, bem como a profissionalização da sua gestão através de critérios técnicos previamente definidos e a criação de uma Carreira Única interfederativa, tripartite, por adesão e diretrizes e regras únicas em todo o país, são os caminhos para a superação de desafios históricos, sintonizados com seus conceitos e princípios.
*Francisco Batista Júnior é farmacêutico hospitalar do SUS no Rio Grande do Norte. Ex-presidente do Conselho Nacional de Saúde (2006-2011).
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