Por LEONARDO BOFF*
“O “não” do Papa Francisco ao sacerdócio das mulheres: resquícios do patriarcado?
Ultimamente o Papa Francisco surpreendeu os teólogos com uma entrevista dada à revista jesuíta America de 22 de novembro, dizendo um “não” ao sacerdócio das mulheres. Utilizou uma argumentação inusitada, tomada de um teólogo ex-jesuíta Hans Urs von Balthazar, muito erudito mas metido numa relação singular com uma médica e mística suíça Adrienne von Speyer. Dele o Papa toma uma distinção que lhe permitiu negar ao sacerdócio à mulher: o princípio-mariano e o princípio-petrino. Curiosa e inusitada é esta distinção do Papa Francisco. Maria seria a esposa da Igreja, enquanto Pedro é seu condutor. Observemos que dizer “Maria como esposa da Igreja” é uma metáfora e não um definição real como afirmar “a Igreja é a comunidade dos fiéis”. Será correta e justa esta rara distinção metafórica pouco frequente na tradição mas requentada por um teólogo erudito, mas tido como extravagante?*
Vale sublinhar a seguinte lógica: sem o Espírito Santo não haveria Maria. Sem Maria não haveria Jesus. Sem Jesus não haveria Pedro, feito o principal dos Apóstolos. Sem Pedro não haveria sucessores, chamados Papas.
Temos apoiado em quase tudo o que o Papa Francisco tem escrito e ensinado. Mas neste ponto me permito afastar-me criticamente (pois este é também o ofício da teologia razonada). Sinto-me apoiado na argumentação dos melhores teólogos da atualidade, somente para citar o maior deles, meu antigo professor em Munique, Karl Raher (+1980). É praticamente unânime a opinião desses teólogos de que não há nenhum empecilho doutrinário que impeça o acesso das mulheres ao sacerdócio, como o tem feito outras igrejas cristãs não católicas. Somente uma visão masculinista da fé cristã e certa interpretação dos evangelhos, contaminada pela visão patriarcal, sustentam o “não”.
A argumentação a favor do sacerdócio para as mulheres é abundantíssima e minuciosa, coisa que o fiz no meu livro Eclesiogênese de 1982/2021.
Em certos pontos, a argumentação papal, leva a certa incongruência, como por exemplo: Maria pode gerar Jesus, seu filho, mas não pode representá-lo na comunidade. Isso soa até ofensivo à grandeza de Maria, portadora permanente do Espírito. Pedro que chegou a trair Jesus e este chegou a chamá-lo até de “satanás” por não admitir que padecesse e morresse, pode representar Jesus.
Quem possui maior excelência? Logicamente é Maria, sobre a qual veio o Espírito Santo e estabeleceu sua morada permanente nela (“episkiásei soi”:Lc 1,35) a ponto de elevá-la à altura do Divino. Somene a alguém elevado à altura do Divino (Maria) vale afirmar: “o Santo gerado (por ti) será chamado Filho de Deus”.
A função de Maria e de Pedro são de natureza totalmente distinta. Pedro não é pai de Jesus, enquanto Maria é verdadeiramente sua mãe biológica. Somente alguém, ainda refém do secular patriarcalismo, pode colocá-los no mesmo patamar. Não sem razão, a mulher nunca teve, até hoje, sua cidadania eclesial reconhecida. O evangelho se encarnou na cultura da época que entendia a mulher como um “mas”, quer dizer, “um ser humano deficiente ainda a caminho de sua humanidade”. Não diz outra coisa Santo Tomás de Aquino (depois repetido por Freud?) e, no fundo, é o que se está na mente das mais altas autoridades eclesiásticas, cardeais e papas. As mulheres são menos, pelo fato de serem mulheres, embora mulheres e homens são igualmente imagem e semelhança de Deus (Gn 1,28). Mais ainda: a maioria da Igreja são mulheres e, mais, são as mães e as irmãs de todos os demais, os homens. Portanto, têm uma proeminência inigualável.
O único que escapou desta visão reducionista foi o Papa Bento XVI ao dizer numa entrevista de rádio em 2005: “Creio que as próprias mulheres com seu impulso e sua força, sua superioridade e com seu potencial espiritual saberão criar o seu espaço. Nós devemos procurar a pôr-nos na escuta de Deus, para que não sejamos nós que as impediremos” (Bento XVI,5,VIII,2006).
Há eminentes razões para sustentar a conveniência e até a necessidade das mulheres que quiserem, aceder ao ministério sacerdotal. Diz uma eminente teóloga e feminista holandesa, A.van Eyde: “A Igreja mesma ficaria ferida em seu corpo orgânico se não desse lugar à mulher dentro de suas instituições eclesiais” (Die Frau im Kirchenamt, 1967, p. 360).
A Igreja hierárquica não pode, dado o avanço da consciência da igualdade dos gêneros, se transformar num reduto de conservadorismo e de machismo. Há aqui uma concepção estéril e engessada no passado, da positividade da fé. Esta não é um recipiente de águas mortas, mas uma fonte de águas vivas, capaz de vivificar novas iniciativas em razão da mudança das mentalidades e dos tempos. Elas, em sua fina sensibilidade, captam o sentido claro dos sinais dos tempos e o expressam com uma linguagem adequada aos nossos dias. Vejamos os principais argumentos.
Primeiramente, foi uma mulher a testemunhar o fato maior do cristianismo, a ressurreição de Jesus, Maria Madalena, chamada por isso de “apóstola dos apóstolos”. Sem o evento da ressurreição não haveria Igreja.
Foram elas que seguiam Jesus e garantiam-lhe a infraestrutura material de sua missão.
Elas nunca traíram Jesus, enquanto o principal deles, Pedro, o traiu por duas vezes. Após a sua crucificação, acabrunhados, os apóstolos o abandonaram e se dirigiram para suas casas, enquanto elas velavam ao pé da cruz acompanhando a sua agonia.
Foram elas que cuidaram, dois dias após seu sepultamento, da conclusão do ritual sagrado da unção do corpo com óleos sagrados.
Portanto, elas mereceriam e merecem uma centralidade inigualável na comunidade cristã. E até hoje, o patriarcalismo cultural internalizado na mente dos que detém a direção da Igreja e também na sociedade, as mantém subalternas. Na Amazônia profunda e outros lugares distantes são elas que levam a fé, fazem tudo o que um padre faz, sem, no entanto, poder celebrar a eucaristia, por não serem mulheres ordenadas no sacramento da Ordem, que só predominou a partir do segundo milênio).
No entanto, há mulheres, líderes de comunidades, conscientes da maturidade de sua fé, que assumem a totalidade dos sacramentos. Não celebram a missa (que é um conceito litúrgico e canônico), mas a ceia do Senhor como vem descrita na Epístola de São Paulo aos Coríntios. Não o fazem num espírito de ruptura com a instituição, mas num sentido de serviço a toda a comunidade, sempre em comunhão teológica com toda a Igreja. A comunidade, segundo o Concílio Vaticano II, tem o direito de receber a sagrada Eucaristia que lhes é negada pelo simples fato de não haver um sacerdote ordenado e celibatário.
Teologicamente importa enfatizar, o que é na prática totalmente esquecido, que há somente um único sacerdócio na Igreja, aquele de Cristo. Os que vêm sob o nome de “sacerdote”, são apenas figurações e representantes do único sacerdócio de Cristo. É Ele quem batiza, é Cristo quem consagra, é Ele quem confirma. O sacerdote age apenas “in persona Christi” “no lugar de Cristo” quer dizer, torna visível o que ocorre invisivelmente. Sua função não pode ser reduzida, como sustenta a argumentação oficial, ao poder de consagrar, uma expressão de poder do clero que se assenhoreou de todas estas funções. Tal concentração de poder sagrado constituiu o clericalismo, em tantas ocasiões, fortemente criticado pelo Papa Francisco. No caso, entretanto, concernente ao acesso das mulheres ao sacerdócio tenha ele também decaído no tradicional clericalismo, melhor, forçado, possivelmente, a manter a praxe tradicional para não criar um verdadeiro cisma na Igreja por parte dos grupos aferrados à tradição e mais que tudo aos privilégios acumulados pelo clericalismo.
A função do sacerdote ministerial, isso ficou claro na teologia pós-conciliar, não é acumular todos os serviços, mas coordená-los para que todos sirvam à comunidade. Pelo fato de presidir a comunidade, preside também a eucaristia. Mas se esta, sem culpa, estiver privada dela, ela mesma pode organizar a celebração da ceia do Senhor. Todos os serviços (que São Paulo chama de “carisma” que são muitos) podem muito bem ser exercidos pelas mulheres como se mostra nas igrejas não romano-católicas e nas comunidades eclesiais de base.
Daí compreende-se que mulheres, conscientes de sua maturidade na fé, na ausência do ministro ordenado, elas mesmas assumem tal ministério, fazendo-o em seu estilo próprio de mulher. Não devem solicitar licença à autoridade eclesiástica, porque esta, canonicamente, dirá “não”. Mas elas o fazem em perfeita comunhão teológica com a totalidade da Igreja. E assim é plausível, justo e teologicamente fundado presidirem a Ceia do Senhor.
Logicamente, o sacerdócio feminino não pode ser a reprodução daquele masculino. Seria uma aberração se assim fosse. Deve ser um sacerdócio singular, com o modo de ser da mulher com tudo o que denota sua feminilidade no plano ontológico, psicológico, sociológico e biológico. Não será a substituta do padre. Mas verdadeira representante sacramental do Cristo invisível que por elas se torna visível.
Natural e lógico seria se o Papa reconhecesse oficialmente o que elas já fazem na prática e assim tornaria a Igreja, realmente, de irmãos e irmãs, sem exclusões e hierarquizações ontológicas injustificáveis. Podemos dizer sem medo de errar: essa divisão entre ordenados e não ordenados (padres e leigos) não está na tradição do Jesus histórico que queria uma comunidade de iguais e todo poder com mero serviço à comunidade e não como privilégio social e até financeiro.
Tempos virão em que a Igreja romano-católica acertará seu passo com o movimento feminista mundial e com o próprio mundo, rumo a uma integração do “animus” e da “anima”(do masculino e do feminino) para o enriquecimento do humano e da própria comunidade cristã. Os tempos já estão maduros para este salto de qualidade. Só falta a coragem de dar esse passo necessário e inevitável. Mas ele virá inevitavelmente.
*Leonardo Boff, ecoteólogo, filósofo e escritor, é membro da Comissão Internacional da Carta da Terra. Autor, entre outros livros, de A busca da justa medida:o pescador ambicioso e o peixe encantado (Vozes).
Nota
*Hans Urs von Balthazar ao tempo em que eu estava submetido ao “silêncio obsequioso” publicamente, em Roma, me denunciou como alguém que negava a divindade de Cristo, coisa que jamais o fiz. Respondeu-lhe um teólogo-jornalista, na primeira página de um diário de Roma com estas palavras: “Covarde, acusas caluniosamente a alguém que não pode se defender por estar sob o silêncio obsequioso”. Sua obra principal é A glória do Senho r(em sete volume sobre a fé como estética e contemplação). Foi feito Cardeal pelo Papa João Paulo II, mas morreu dois dias antes, quando se dispunha ir a Roma.
Leonardo Boff, escreveu Eclesiogênese: a Igreja que nasce do povo pelo Espírito de Deus, Vozes 1984/2021.
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