Por LISZT VIEIRA*
A retaliação de Trump vai além de uma vingança pessoal; é um ataque calculado à soberania brasileira e à ordem multipolar emergente. O verdadeiro risco reside na transformação de um conflito político em uma crise diplomática total
1.
A condenação de Jair Bolsonaro pela tentativa de golpe de Estado, tentativa de abolição do Estado democrático de direito, organização criminosa, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado, nos termos da sentença condenatória do STF em 5 de setembro último, provocou irritação no presidente dos EUA, acusado também de tentativa de golpe de Estado, o mesmo crime cometido pelo seu alter ego brasileiro.
Essa identificação pessoal não pode ser descartada, mas é provavelmente a ponta do iceberg escondendo a crítica de Donald Trump à regulamentação que atingiria as big techs sediadas nos Estados Unidos, bem como ao protagonismo do Brasil no BRICS que, a médio ou longo prazo, ameaça o dólar. Está ficando cada vez mais evidente que a hegemonia unilateral dos EUA entrou em declínio e está aos poucos sendo substituída por um mundo baseado na multipolaridade.
Donald Trump taxou os países com os quais os EUA têm déficit, mas no caso do Brasil os EUA têm superávit e, mesmo assim, taxou em 50% a importação de produtos brasileiros, alguns depois reduzidos. Assim, a motivação política de Donald Trump não pode ser descartada e a condenação de Jair Bolsonaro parece ser o pretexto para novas sanções ou punições políticas, conforme anunciado pelo Secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, ao anunciar que os EUA vão retaliar o que chamou de “caça às bruxas” no Brasil.
Além da sanção comercial, Donald Trump mandou cancelar o visto de 8 dos 11 Ministros do STF e aplicou a Lei Magnitsky ao Ministro Alexandre de Moraes.
É importante conhecer as possibilidades de nova retaliação, desde sanções comerciais até mesmo, no limite, improváveis prisões políticas. Em primeiro lugar, teríamos tarifas comerciais, barreiras econômicas. Mais sanções a juízes, autoridades do STF ou outras figuras envolvidas no processo contra Bolsonaro; restrições de visto; congelamento de ativos, uso indevido da Lei Magnitsky.
O Brasil poderia ficar sob pressão internacional contínua, acarretando desgaste nas relações diplomáticas, aumento da polarização interna e externa e potencialmente perda de financiamento ou cooperação técnica. Mas essas medidas podem também gerar custos para empresas americanas ou para consumidores nos EUA. Além disso, algumas retaliações de Donald Trump podem esbarrar em limites de lei americana, tratados internacionais, normas da OMC, ou necessidade de aprovação do Congresso para sanções mais amplas como, por exemplo, declarar guerra.
2.
Se Donald Trump continuar pressionando e o Brasil resistir firmemente, pode haver deterioração séria das relações EUA-Brasil, com impactos em comércio, cooperação em segurança, investimentos, inclusive efeitos negativos para empresas privadas. No Brasil, a retórica de interferência externa pode reforçar discursos nacionalistas, desmoralizando o discurso de patriotismo tradicional da extrema direita.
Os setores que poderiam ser mais afetados com novas sanções seriam os seguintes: (i) Agroindústria, com tarifas adicionais sobre soja, carne bovina, açúcar e derivados de etanol e alegações de risco fitossanitário, comuns em disputas comerciais. Mas isso prejudicaria uma importante base política do bolsonarismo trumpista.
(ii) Minérios e Energia, com restrições à importação de aço, alumínio e ferro brasileiros. (iii) Finanças e Bancos, com sanções individuais contra juízes do STF, membros do governo, ou empresários ligados à esquerda. E restrição de acesso a bancos americanos para pessoas físicas ou jurídicas.
(iv) Meio Ambiente e Amazônia, com suspensão total de cooperação ambiental bilateral, alegando “quebra do Estado de Direito”. E também redução de financiamentos e investimentos privados americanos em bioeconomia e energia limpa no Brasil.
(v) Diplomacia e Defesa, com redução de cooperação militar (exercícios conjuntos, inteligência), bloqueio à entrada do Brasil em fóruns internacionais patrocinados pelos EUA (como a OCDE), e suspensão de acordos de transferência de tecnologia militar, o que poderia aproximar o Brasil da China e da Rússia em defesa e tecnologia.
Todas essas medidas são possíveis de serem tomadas, embora algumas não sejam prováveis. Afinal, não é só o Brasil que seria prejudicado. O consumidor americano e alguns setores econômicos nos EUA também seriam afetados e reagiriam contra, fortalecendo uma tendência à queda na popularidade de Donald Trump dentro dos EUA. O principal teste de apoio ou desaprovação do governo Trump serão as eleições de “mid term” em novembro de 2026. Até lá, Donald Trump deita e rola, mas pagará adiante em perda de popularidade e votos.
3.
No Brasil, por mais que os bolsonaristas tentem culpar o governo Lula pelas sanções comerciais, tudo indica que Lula se fortaleceu ao defender a soberania nacional ameaçada pelos EUA. Donald Trump, porém, anunciou que pretende dobrar a aposta, na expectativa de conquistar o apoio de empresários e militares que, na sua visão, poderiam pressionar o governo brasileiro para cumprir suas decisões. Afinal, é bom não esquecer que os militares no Brasil dependem de satélites norte-americanos para suas comunicações.
As relações dos EUA com o Brasil se transformaram em conflito essencialmente político, apesar do esforço da diplomacia brasileira em tentar vias e canais de negociação. Mas os EUA, sob Donald Trump, tornaram-se hoje um regime autoritário de exceção, a caminho de uma ditadura. Donald Trump ressuscitou o macartismo, que anda a pleno vapor na área educacional e cultural, e controla o Executivo, o Legislativo e parte do Judiciário. O equilíbrio entre os poderes, essenciais a uma democracia, deixou de existir nos EUA.
Lula vai a Nova York para a Assembleia Geral da ONU que já devia ter mudado de país. É altamente improvável que Donald Trump venha a aplicar medidas repressivas contra Lula ou qualquer membro da delegação brasileira, como interrogatórios ou mesmo prisão, mas não é impossível. Donald Trump ignora e viola quando quer o direito internacional e não tem nenhum respeito pela ONU e outras instituições internacionais. Seu apoio militar e político ao genocídio dos palestinos por Israel é um exemplo, entre outros.
Donald Trump comporta-se como ditador. E o governo norte-americano oficialmente anunciou medidas repressivas contra o Brasil na semana de abertura da Conferência da ONU, cujo início está previsto para o dia 23 de setembro. Até agora, o que se sabe foi a decisão de restringir a circulação do Ministro da Saúde que acompanha Lula, Alexandre Padilha, que só poderá transitar na área em torno do hotel, da ONU e de representações oficiais brasileiras. Essa restrição de circulação é mais severa do que a imposta a cubanos, sírios e russos.
Por razões diversas, alguns chefes de Estado não se arriscam a comparecer, como Vladimir Putin e outros, que adotam uma atitude de prudência. Para o escritor francês Théophile Gautier, em todos os tempos os prudentes sempre venceram os audazes. Outros, porém, são mais ousados e, como diz o ditado, a fortuna ajuda os audazes. Mas, para o filósofo inglês Francis Bacon, a audácia é má no conselho e boa na execução.
Não tenho a pretensão de opinar sobre a ida ou não do presidente Lula à Conferência das Nações Unidas. Os prós talvez pesem mais do que os contras. Para opinar, seria necessário ter informações seguras. Para isso serve um Serviço de Inteligência. Somente com base nessas informações, seria possível escolher com segurança entre a prudência e a audácia, e decidir se Lula ou algum membro da delegação brasileira seria ou não ameaçado pelo saco de maldades do presidente Donald Trump.
*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond). [https://amzn.to/3sQ7Qn3]
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