Por JOSÉ FERES SABINO*
Comentário sobre o livro de William Faulkner
W. G. Sebald escrevendo sobre O medo do goleiro diante do pênalti, de Peter Handke, observou que, para este autor, a linguagem nunca pode ultrapassar a realidade, mas apenas rodeá-la. Talvez essa caracterização, válida não só para pensar essa obra como o restante do trabalho literário de Handke, sirva também para a obra narrativa de William Faulkner. Envolver um núcleo, do qual emerge a narrativa e que a sustenta, parece ser a marca característica de Faulkner.
No livro O som e a fúria, publicado em 1929, Faulkner utiliza quatro narradores para contar a mesma história. No centro está a agonia (a fúria da decadência); ao redor uma família que a sofre. A narrativa está reduzida a quatro dias. Três dias de abril, 7, 6, e 8, nesta ordem, de 1928; e o dia 2 de junho de 1910, intercalado entre os dias 7 e 6.
Esse capítulo recuado, narrado por Quentin, filho prodígio da família Compson, abre com uma reflexão sobre o tempo. Quando o narrador, de manhã, escuta o relógio que havia sido do avô, presente de seu pai, recorda o que seu pai havia lhe dito no momento da entrega:
“Estou lhe dando o mausoléu de toda esperança e todo desejo; […] Dou-lhe este relógio não para que você se lembre do tempo, mas para que você possa esquecê-lo por um momento de vez em quando e não gaste todo seu fôlego tentando conquistá-lo. Porque jamais se ganha batalha alguma, ele disse. Nenhuma batalha sequer é lutada. O campo revela ao homem apenas sua própria loucura e desespero” (p. 73).
E a composição do livro não faz nenhuma tentativa de domar a soberania do tempo, mas opera uma desarticulação das tradicionais unidades de tempo e espaço, mostrando-nos que nossas vidas se tornam mais intensas e mais complexas com essa desarticulação. A concentração temporal funciona como uma força de expansão do espaço.
O primeiro capítulo é o exemplo radical disso. O narrador, Benjy, um débil mental, não está inserido na ordem linear do tempo. Só pertence a essa ordem porque os outros membros da família nos dizem que ele tem 33 anos de idade. Suas impressões são articuladas num presente absoluto. Tudo lhe é vivo e intenso sem qualquer remissão seja ao passado ou ao futuro. E por sentir o mundo desse modo, pode ter a vida inteiramente dedicada ao que realmente ama: a flor que carrega, sua irmã Caddy, o pasto e a luz do fogo.
Essa dissolução do tempo no espaço ocorre em todos os outros capítulos. No segundo, Quentin rememora sua relação amorosa-incestuosa com sua irmã, enquanto se prepara para deixar a vida; no terceiro, Jason Compson, acrescenta seu depoimento sobre a decadência, centrado em sua relação com o dinheiro, a mãe e a sobrinha. E, por último, um narrador em terceira pessoa, conta o dia 8 de abril na vida da empregada negra, Dilsey, que recolhe em si o princípio e o fim da família Comspon.
Nós leitores, página a página, já que ainda somos dependentes da linearidade temporal, sentimos a dissolução do tempo no espaço, e, com uma visão-audição quase total, vamos descobrindo o que se passa no centro. Nunca o leitor está cara a cara com o centro da narrativa. Sempre rodeando, vislumbramos o suicídio do irmão, a fuga da irmã, a morte do pai, o incesto dos irmãos, a fuga da sobrinha. A cada capítulo sentimos o drama comum e o reflexo dele em cada personagem, e nossa leitura é o resultado do recolhimento das expressões indiretas.
Essa narrativa indireta, no entanto, não deve autorizar a apoteose do subjetivismo linguístico. Aqui o real não é tragado pelos personagens, como se o inchaço do eu tornasse o real inexistente. No centro há algo, a agonia de uma família, como em outro livro de Faulkner, Enquanto agonizo, havia uma mãe agonizando; o que cada personagem faz é exprimir a agonia a seu modo, segundo a conformação que a vida lhe deu. E esse centro tampouco pode ser suprimido com uma simples troca de nome, como se o jogo da nomeação, nas mãos do sujeito linguístico, pudesse alterar a tragédia. A tentativa de mudar o nome do personagem Benjamin, que antes se chamava Maury, de nada aliviou sua condição de débil mental.
Esta multiplicidade de vozes narrativas num mesmo livro serve a uma equiparação narrativa dos personagens, pois nenhum deles tem soberania sobre o real, todos estão submetidos ao mesmo turbilhão da vida. E o movimento desse turbilhão sempre é descendente (a literatura de Faulkner é a da queda). Todos estão descendo: da vida à morte, da riqueza à pobreza, dos bons costumes à vilania das ruas, da sanidade à loucura, da ordem à desordem, do som à fúria.
Cabe ao homem, em relação à fúria – vida misteriosa, central, infinita – que o atinge e o sustenta ser apenas o som articulado dela, expresso de vários modos, segundo a boca de cada um. Haverá, porém, sempre um risco na descida: a fúria ao tornar-se muito intensa é capaz até mesmo de suprimir a palavra dotada de sentido da boca dos homens, transformando-os numa “agonia sem olhos e sem língua, puro som”.
*José Feres Sabino é doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP).
Referência
William Faulkner. O Som e a Fúria. Tradução de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Cosac & Naify, 2003 (https://amzn.to/3OE4xXm).