O triste fim de Silvio Almeida

Silvio Almeida/ Foto: Antônio Cruz/ Agência Brasil
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Por DANIEL AFONSO DA SILVA*

O ocaso de Silvio Almeida é muito mais grave que parece. Ele ultrapassa em muito os eventuais deslizes deontológicos e morais de Silvio Almeida e se espraia por parcelas inteiras da sociedade brasileira

1.

Por prudência, este artigo não deveria existir. Mas, por decência, ele merece vir a público. E, vindo a público, como mensagem, ele poderia simplesmente conter: “os identitários que se entendam”. Pois, em essência, é disso que se trata. Mas o ocaso de Silvio Almeida é muito mais grave que parece. Ele ultrapassa em muito os eventuais deslizes deontológicos e morais do, agora, antigo ministro de Direitos Humanos e Cidadania do presidente Lula da Silva e se espraia por parcelas inteiras da sociedade brasileira.

O núcleo do problema reside nesse império de conveniências eletivas, tangidas por uma variabilidade de pesos e medidas, que tem sido imposto ao tratamento de questões sensíveis, em âmbitos públicos e privados, em todo o país.

Ninguém minimente experimentado das coisas de Brasília ou da administração pública em geral pode imaginar que um ministro de Estado possa ser sumariamente demitido sem a conivência de setores do governo. As denúncias podem ser, sim, graves e gravíssimas. Mas o denunciado precisa gozar de alguma imunidade em favor de sua presunção de inocência. Do contrário, adeus, estado de direito. Bem-vindo à barbárie e ao desespero do real. Onde tudo fica muito frágil e qualquer vento sul, tipo Minuano, pode estraçalhar o próprio governo.

Tudo isso para dizer, sem nenhum pudor, que Silvio Almeida, culpado ou inocente, foi impunemente lançado ao mar. Queriam-no bem longe de Brasília. Pelas razões alegadas, seguramente. Mas muitas outras razões insondáveis, certamente.

Como bem notaram observadores de variadas colorações políticas, ideológicas e intelectuais, o ocaso do ministro admite apenas duas perguntas essenciais: (i) por que só agora? e (ii) por que só Silvio Almeida?

Corre a boca pequena a ambiência extraordinariamente tóxica e controversa desta Brasília sob essa terceira presidência de Lula da Silva. O governo foi composto por uma multiplicidade de segmentos identitários que têm afirmado o tom das contradições.

Existem, sim, lideranças identitárias e de verniz woke demasiado importantes e esclarecidas no governo, em Brasília e no Brasil. Mas na média, a maioria dos identitários de plantão não passa de arrivistas, oportunistas e covardes se alimentando do sangue alheio.

Lembre-se do mal-estar da quebra generalizada de decoro impingida à cerimônia de entronização do presidente Lula da Silva naquele 1º de janeiro de 2023. Recorde-se do quiproquó protagonizado por agentes pervertidos do Ministério da Saúde. Lembre-se daquela colaboradora do Ministério da Igualdade Racial que exortou, num estádio de futebol, a sua integral indecência, incoerência e improcedência – e, portanto, inapetência para o cargo – ao encontro dos paulistas.

Esses e outros incidentes desviaram a atenção do governo de suas ações essenciais. Drenando, assim, força e tempo. E conduzindo a integralidade do governo a, no mínimo, constrangimentos e desgastes desnecessários.

Tudo isso devido a uma ambiência de higidez relativa. Onde a suspeição tomou o lugar da comprovação e afirmou um ambiente controlado por uma instável geometria variável de subjetividades. Onde todas as interações foram galvanizando um estado de roleta russa, lacração e vale-tudo. Um estado temerário. Capaz de estraçalhar, do dia pra noite, sem piedade nem perdão, vidas e reputações.

Silvio Almeida foi um dos protagonistas dessa ambiência. Uma ambiência, essencialmente, arrivista e sectária. Que, agora, ergue-se em garras contra o seu criador. Feito Saturno devorando seus filhos. Triste fim de Silvio Almeida. Que, culpado ou inocente, foi abandonado à luz do dia, decapitado ao pôr-do-sol e arremessado implacavelmente em alto mar. Culpado ou inocente, sinceramente, não precisava ser assim.

2.

Silvio Almeida foi um dos maiores promotores da ideia de “racismo estrutural” no Brasil. Uma ideia consequente e lastreada em alguma sofisticação jurídica e filosófica. Mas uma ideia e não mais que uma simples ideia. Quase uma intuição. Desprovida de amparo histórico e sociológico. E, portanto, longe de ser uma teoria ou um conceito. Sendo simplesmente uma ideia. Pois qualquer observador mais detido sabe que o racismo se manifesta de maneiras muito mais perversamente essenciais e multidimensionais que apenas estruturais.

De toda sorte, a ideia defendida por Silvio Almeida ganhou força em variados segmentos dos movimentos negros e, em seguida, foi virando o mantra de vastos setores da intelligentsia brasileira até galgar a condição de argumento irrefutável no interior da opinião pública.

Antonio Risério, poeta, antropólogo e intelectual baiano, foi dos primeiros a se contrapor, publica e ostensivamente, a essa ideia. Taxando-a, a priori, de frágil, controversa, perigosa, simplificadora e arrivista.

Como resultado, Antonio Risério foi, sinceramente, ostracizado do debate público. Transformado em um quase leproso. Feito um Lázaro. Sem nenhuma redenção.

Goste-se ou não, Antonio Risério é, acima de tudo, um sujeito culto, esclarecido, ilustrado em várias áreas e profundo conhecedor da complexidade das temáticas raciais e racialistas no mundo e no Brasil.

Por tudo isso, o seu A utopia brasileira e os movimentos negros, de 2007, causou tamanha sensação. Sendo recebido, no interior dos núcleos intelectuais e políticos ligados à causa negra no Brasil, como uma imensa provocação. Vez que o assunto, como não poderia deixar de ser, segue demasiado sensível e delicado. Sobretudo num país que conviveu com a escravidão até outro dia. Entretanto, a mensagem geral de Antonio Risério sugeria que, no âmbito das políticas públicas, esse assunto precisaria ser despido de subjetividades e emocionalismos para, de fato, melhorar as condições de vida das populações negras e marginalizadas no Brasil.

O livro, porquanto, suscitou alguma grita. Mas muito marginal e sem maiores consequências.

O tempo passou. Antonio Risério amadureceu ainda mais reflexão e, em 2020, voltou à carga com Em busca de uma nação. Outro livro-choque. Que serviu de luva para um momento de tensões: 2020. Quando – além da pandemia – não se falava de outra coisa que o identitarismo no Brasil.

Quem sabe, as noites de junho de 2013 tenham sido o momento determinante para a interiorização de dimensões mais parrudas de identitarismos estrangeiros no Brasil. De toda sorte, nos anos que se seguiram, uma incontestável onda identitária tomou conta de todo o país.

Desse modo, quando Em busca de uma nação veio a público, o debate identitário e sobre o identitarismo seguia inflamado em todas as partes. Tanto que inclusive a prestigiosa Academia Brasileira de Letras foi sensibilizada pelo assunto e contratou uma manifestação – leia-se: conferência – de Antonio Risério sobre.

O país estava dividido e o arrivismo – como nunca – tomava conta. Não simplesmente na esfera política, que cometera o despautério do impeachment de 2016 e da prisão do presidente Lula da Silva em 2018. E não propriamente somente pela emergência do olavobolsonarismo ao poder, que inaugurou aquela espécie de macarthismo cultural à brasileira de “caça a comunistas”. Mas pelo império da suspeição que, de súbito, tomou conta de todos os níveis de todas as interações em todos os âmbitos públicos, privados e público-privados.

O novo livro de Antonio Risério serviu, assim, de alerta e denúncia a esse estado de coisas. Sendo, portanto, novamente, um livro controverso. Mas, agora, assimilado por públicos maiores e mais amplos. Causando uma multiplicação de interpelação inflamadas. Com certo politically correct conduzindo as discussões e o contraponto aos argumentos de Antonio Risério.

Tudo bem. Tudo certo. Foi assim.

No ano seguinte, em 2021, Antonio Risério trouxe a público o seu belo Sinhás pretas da Bahia. Era pra ser só mais um livro erudito desse nobre baiano, mas acabou se transformando numa verdadeira batalha campal. Os guardiões do politically correct foram imediatamente acionados para desqualificar e desmerecer obra e autor. Como consequência, Antonio Risério foi – agora, ainda mais – inserido em certo index da bien-pensance brasileira. Onde ninguém queria ouvi-lo nem o deixar falar.

Mas foi o seu artigo “Racismo de negros contra brancos ganha força com o identitarismo”, publicado na Folha de S. Paulo, naquele malfadado dia 16 de janeiro de 2022, que alterou o nível da tensão. Pois, nele, Antonio Risério, simplesmente, deu corpo ao que o título do artigo aduzia. Ou seja, defendeu e problematizou a existência de racismo de negros contra brancos. Nada mais que uma discussão muito antiga – e em muito há muito superada e pacificada – do debate sobre a temática.

Mas os arrivistas não viram assim. Sentiram-se quase que moralmente ofendidos. E reagiram.

No dia seguinte, a mesma Folha de S. Paulo trazia um artigo-resposta sob o título “Existe racismo reverso no Brasil?”. Dois dias depois deste artigo-resposta, confeccionou-se uma Carta Aberta endereçada à Secretaria de Redação e ao Conselho Editorial da Folha de S. Paulo com a assinatura de 186 jornalistas indignados com os “conteúdos racistas nas páginas do jornal” sob o argumento de que o “racismo reverso”, defendido por Antonio Risério, “não existe”.

Como reação, no dia seguinte, perto de 200 artistas, psicólogos, economistas e historiadores assinaram uma “Carta aberta de apoio a Antonio Risério e oposição ao identitarismo”.

Pronto: a diatribe estava, assim, instaurada e nacionalizada. Antonio Risério havia tocado no ponto dos mais sensíveis da nova mentalidade do statu quo. E, malgrado tenha reconhecido a escravidão como uma “instituição moralmente repugnante”, acentuou que o racismo sempre foi “universal e não unilateral”. E, mais que isso, condenou frontalmente a ideia de “racismo estrutural” que, em sua avaliação, não passava de uma “malandragem jurídico-ideológica”. O que levou parcelas inteiras da intelligentsia brasileira a perder o chão. Ainda mais porque a ideia de “racismo estrutural” parecia lhes servir de álibi para a sua suposta desconstrução. Eis a razão de sua reação tão imediata e tão agressiva a Antonio Risério.

3.

Mas também vale lembrar que, dois anos antes, em 2020, um homem negro, de 40 anos, de nome João Alberto Silveira Freitas, tinha sido espancado até a morte por seguranças de um supermercado em Porto Alegre e, com o seu martírio, acabou por interiorizar no Brasil a, assim chamada, “síndrome de George Floyd” – em menção ao homem negro, norte-americano, assassinado, à luz do dia, por policiais, em Mineápolis, em Minnesota, em maio de 2020.

E foi justamente nesse contexto que Silvio Almeida foi retirado de sua discreta e semianônima condição de professor, pesquisador e advogado cumpridor para o pedestal de paladino da causa negra através de sua ideia de “racismo estrutural”.

Vivia-se, de um lado, a agonia da pandemia. Onde a mortandade de pessoas negras se averiguava proeminente. E, de outro lado, vivia-se o mal-estar da presidência de Jair Messias Bolsonaro. Que, sinceramente, não foi a pessoa mais equilibrada para tratar daquela tragédia monumental. Naquele entremeio, portanto, foi que se deu a ascensão e afirmação segura de Silvio Almeida e de sua ideia de “racismo estrutural” no cenário nacional.

O tempo foi passando. Silvio Almeida foi amplificando a sua capilaridade no debate público. Tornou-se conhecido. Afirmou a sua ideia no mercado de ideias. Até que veio o artigo de Antonio Risério em janeiro de 2022: “Racismo de negros contra brancos ganha força com o identitarismo”, a rigor, não era contra Silvio Almeida. Mas foi entendido como se fosse.

Como resultado, pelo contexto, Antonio Risério foi taxado de fiador prosélito do olavobolsonarismo enquanto Silvio Almeida foi incorporado positivamente às frentes de oposição à presidência de Jair Messias Bolsonaro e a tudo que ela representava. Tanto que, meses depois, quando as urnas de outubro confirmaram a derrota do presidente Bolsonaro e o retorno do presidente Lula da Silva, o nome de Silvio Almeida foi dos primeiros a receber a pressão política para integrar o novo governo. Ainda não se sabia onde nem como. Mas a sua participação no novo governo, desde ali, já era dada como algo líquido e certo.

Quem tiver dúvida, basta retornar com calma ao noticiário posterior ao 30 de outubro de 2022 para notar a impressionante e incomum reverência com a qual Silvio Almeida era tratado pela opinião pública em geral. Sendo franco, a mesma opinião pública que silenciou Antonio Risério galvanizou uma passarela segura para o acesso de Silvio Almeida ao ministério em Brasília.

E deu certo. Ele foi.

E foi para um dos ministérios mais relevantes da esplanada – sobretudo após o momentum politicamente incorreto da presidência de Jair Bolsonaro.

Uma vez ministro, Silvio Almeida se afirmou como uma persona credível, com competência técnica para tratar dos dossiês e competência política para acomodar dissensos. Mesmo assim, desde o início, havia algo estranho no ar. Pairava, em todas as suas movimentações, algum mal-estar. Faltava alguma coisa para harmonizar. Ele parecia, sinceramente, desconfortável no cargo. Talvez por ter sido inflado demais. Ou, quem sabe, por estar mais acostumado a ser pedra que vidraça.

Natural: o seu primeiro ano em Brasília correspondia ao seu período de adaptação. Onde tudo era, para todas as partes, aceitável. Desde a sua latente irritação até seus acessos de brioso.

As hesitações da presidência sobre a situação russo-ucraniana e sobre o tragédia israelo-palestina lançaram-no, entretanto, ao corner. Nos dois contextos, a sua pasta deveria ser diretamente mobilizada, mas não foi.

Depois veio a incorporação do Brasil à denúncia da África do Sul contra Israel na Corte Internacional de Justiça. Uma incorporação, entendível, mas complexa. Tanto no conteúdo quanto na forma. O assunto era – e segue sendo – sensível demais. Havia – e segue havendo – contundentes violações de direitos humanos de parte a parte. De maneira que um amplo e respeitoso debate público, conduzido pelo governo e, mais diretamente, pelo ministério liderado por Silvio Almeida, era imperativo. Mas não existiu.

Depois veio a público o mal-estar em torno dos sessenta anos do 31 de março de 1964. O ministro Silvio Almeida havia organizado uma programação e o presidente Lula da Silva o desautorizou. O que não ficou bom nem foi bem digerido por nenhuma das partes – presidente, ministro, militares e sociedade. Mas, além disso, informou, por um lado, animosidades. E, por outro, evidentes falhas graves de comunicação, condução e organização.

4.

Mesmo assim, tudo parecia seguir bem. Especialmente na interação entre o presidente e o ministro. Não restam dúvidas de que eles se davam bem. A sua relação fluía. Eles pareciam se entender pelo olhar. Um e outro se admiravam em silêncio. Nutriam uma verdadeira sintonia fina. E, quem sabe, até mesmo carinho. O body language de um e outro, quando juntos, denotava. De maneira que ninguém poderia imaginar que o nobre ministro pudesse ser tão inclementemente abandonado como foi.

E, muito pior que abandonado, ele foi, em menos de 48 horas, degolado e lançado ao mar. Causando espanto e apreensão a todos.

Não cabe a ninguém, por agora, adentrar o mérito das denúncias contra o ministro tampouco aferir qualificações à sua gravidade. Sobre isso, existem investigações competentes em curso que, cedo ou tarde, apresentarão algum veredicto.

O que resta, agora, a se fazer consiste em se observar com calma os movimentos desse curioso processo de decapitação e se meditar com alguma isenção sobre os seus desdobramentos. Ninguém tem dúvidas da gravidade do evento para o governo. Mas suas consequências podem ir bem além.

Tudo começou e se acelerou na quarta-feira, 04 de setembro. Tão logo fizeram-se públicas algumas insinuações desconcertantes sobre a qualidade desviante de alguns comportamentos do ministro Silvio Almeida, o ministro saiu em sua autodefesa. Repudiou, veementemente, as insinuações. E solicitou, ele próprio, na condição de ministro, investigações.

O dia seguinte, quinta-feira, amanheceu cinza em Brasília. Um silêncio de morte parecia pairar em toda parte. O constrangimento era sem fim. Mas nada estava sacramentado. Ainda não existia caixão nem funeral. Até que mais outras denúncias, cada vez mais pesadas, começaram a aparecer. Fechando o tempo totalmente. E forçando uma tempestade perfeita. Onde Silvio Almeida foi perdendo progressivamente os seus meios de defesa.

Parecia uma blitzkrieg. Muitas pressões emergiam de muitas partes. O ministro já estava isolado. Ninguém queria sair na foto com ele. Muito menos, tomar partido em seu favor. E, se isso não bastasse, ao fim do dia, a primeira-dama, acentuou o mau-agouro publicando, em suas redes sociais, uma mensagem subliminar que deixava bem claro que o féretro de Silvio Almeida já estava encomendado. Era questão de tempo.

Por tudo isso, a viragem de quinta para sexta-feira produziu insônia. Alguns salivavam pela degola imediata do ministro. Outros ainda confiavam numa reviravolta. A esperança, sempre, vai a última que morre. E, nesse caso, ela parecia resistir a morrer. Sobretudo porque na noite de quinta-feira algum ceticismo começou a pairar no ar. As denúncias da quarta e da quinta-feira em reconhecidas como grave e gravíssimas, mas, ao mesmo tempo, emergia uma convicção generalização de tudo aquilo poderia também não passar de uma querela palaciana.

Sobretudo quando se descobriu que o mal-estar entre agentes interministeriais com Silvio Almeida era antigo e ultrapassava os seus eventuais desvios morais e deontológicos. Silvio Almeida foi – como muitos ministros – tornado persona non grata. Os companheiros de outrora, por alguma razão, agora, mudaram de opinião sobre ele. E, por isso, exigiam a sua cabeça. O que caracterizava uma típica querela palaciana. Que sempre se impõe complexa e delicada. Mas é mais corriqueira que se imagina. E, quase sempre, vai passível de solução. A depender da compreensão do dono do Palácio, no caso, o presidente.

Por tudo isso, na viragem de quinta pra sexta-feira, Silvio Almeida sangrava no corner, mas existia alguma esperança de reviravolta. O leite ainda não estava todo derramado. A sinalização da primeira-dama ainda não era o golpe de misericórdia. Que começou, de fato, a se afirmar somente ao longo da manha de sexta-feira, 06 de setembro, quando o presidente Lula da Silva afirmou claramente o seu alinhamento à posição da primeira-dama. Depois dali, não havia mais o que fazer. O destino do ministro já ia selado. Um gigantesco patíbulo era instalado. O verdugo já estava a postos. Faltando simplesmente a vítima para a execução.

E assim se deu o triste fim de Silvio Almeida. Foi assim. Dolorido e triste assim.

Mas, ao mesmo tempo, muito mais grave que se imagina.

Do contrário, note-se bem.

Na quarta-feira, 04/09, o noticiário indicou que as suspeitas sobre o comportamento desviante Sílvio Almeida eram de conhecimento geral no Planalto desde meados do ano passado. Na quinta-feira, 05/09, começou-se a retroceder no tempo indicando que suas possíveis violações de conduta retrocedem a dez ou quinze anos. Na sexta-feira, 06/09, diante da demora na ação do verdugo, a Folha de S. Paulo estampou em headline a manifestação de uma professora da Grande São Paulo com o dizer “Colocou a mão nas minhas partes íntimas”. Horas depois, a presidência da República informou serem “graves as denúncias” e, em decorrência, ser “insustentável” a “manutenção” do ministro no cargo.

De toda sorte, perceba-se que: (a) Caso as informações veiculadas na quarta-feira sejam consequentes, resta saber porque se levou quase um ano ou mais para se confrontar a situação com fins de se produzir uma decisão. (b) Caso as informações da quinta-feira sejam consequentes, está mais que evidente a ocorrência de um extraordinário equívoco no processo de recrutamento e seleção de Silvio Almeida para (i) ser um dos grandes paladinos da causa dos negros no Brasil a partir de 2020 e para (ii) ser alçado à condição de ministro dois anos depois. (c) Caso as informações da sexta-feira – e notadamente as denúncias públicas da professora da Grande São Paulo – sejam consequentes, aí tudo e todos estão perdidos: Silvio Almeida e o presidente Lula da Silva à frente e todos os seus apoiadores logo atrás.

Com toda a vênia, ninguém vira um Celso Pitta da noite para o dia.

Ou seja, nenhum ministro – por ser ministro – tem a sua “manutenção insustentável” de modo tão instantâneo. Mesmo a mais indigna persona non grata raramente recebe um tratamento tão ignóbil.

Por tudo isso, o assunto não terminou e vai demorar a se resolver. Ao longo de quinta-feira, 05/09, aventou-se a possibilidade do mero afastamento do ministro. De modo que, malgrado a gravidade das denúncias, ele, enquanto ministro afastado, seguiria amparado em alguma presunção de inocência.

Nesse entremeio também se sugeriu, sob o princípio da proporcionalidade, o afastamento de sua principal acusadora, a ministra da Igualdade Racial. Mas o movimento da primeira-dama simplesmente afastou essa hipótese.

Depois da manifestação do presidente ao longo da manhã de sexta-feira, ainda se acreditava na possibilidade de afastamento ou exoneração dos dois ministros. Mas, ao longo do dia, ficou evidente que a degola seria apenas de um.

Silvio Almeida foi degolado. Culpado ou inocente, ainda não se sabe. Sabe-se que foi triste. Triste fim, por agora, para Silvio Almeida. Mas, claramente, também, talvez, um começo: o começo do fim de uma era de identitários e arrivistas no poder.

*Daniel Afonso da Silva é professor de história na Universidade Federal da Grande Dourados. Autor de Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas (APGIQ). [https://amzn.to/3ZJcVdk]


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