O último pub — The old oak

Nicky Maringa, Holding On, 72cm x 57cm x 8cm, Objetos encontrados
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O diretor de cinema Ken Loach (1936) nunca decepciona, não afirmo somente por ele provavelmente nunca ter saudado a Rainha, mas, principalmente, por seu trabalho no cinema, também, não a reverenciar.

Desde quando o assisti pela primeira vez, sabe-se lá há quantos anos, em Terra e Liberdade, no final dos anos 1990, nunca mais perdi seus lançamentos.

Depois de Terra e liberdade, que me fez agonizar de ódio e tristeza na plateia, assisti: Pão e rosas; Ventos da liberdade; À procura de Eric; A parte dos anjos; Eu, Daniel Blake; Você não estava aqui, que vi pouco antes do fechamento dos cinemas na pandemia; e, agora, O último pub.

Dos filmes que assisti percebo um diretor que desde 2009, com À procura de Eric, voltou sua câmera completamente ao cotidiano, aquele mais comezinho, buscando pequenos romances a partir da vida de pessoas comuns, como o carteiro e suas dificuldades pessoais e familiares; os adolescentes que cumprem liberdade assistida e desvendam corrupção no meio de milionários; o carpinteiro Daniel Blake que se vê num emaranhado de dificuldades para usar o sistema de seguridade social; e Ricky que trabalha muitas horas todos os dias para cumprir as entregas de uma mega empresa de e-commerce e suas consequências.

E agora é a vez de TJ Ballantyne, dono de um bar — seria um típico botequim de bairro se fosse no Brasil — ex-mineiro e sindicalista, filho de casal de mineiros sindicalistas. Mora numa pequena cidade em decadência econômica em razão do encerramento dos trabalhos da mineração que foi o motor econômico da região por décadas.

Se quem estiver lendo ainda não assistiu ao filme é melhor deixar para ler depois, porque embora não se trate de uma crítica, minha vontade de registrar impressões pessoais tende à quebra do encanto a quem ainda não o assistiu. Pensei mesmo se caberia escrever sobre o filme… a quem nada perderá, e quiser, vamos a um chope no balcão do bar de TJ[i]

Numa tarde qualquer a pequena cidade foi impactada pela chegada de um ônibus com refugiados sírios, antes mesmo do ônibus abrir as portas, externamente, foram duramente recebidos por discursos xenófobos como: voltem para suas terras, deixem-nos em paz etc. Uma representação mais longa do Brexit, já que o reino unido optou por nem sequer pertencer à união europeia, menos ainda ser tolerante a refugiados sírios, podemos concluir.

Uma das refugiadas Yara, fotojornalista, porta uma câmera e, ainda no ônibus, fotografa um dos mais exaltados ingleses. Ao desembarcar com seus pertences, deixa-os no chão, o fotografado pega sua câmera deixando-a cair, danificando-a, restando ela inconformada. Ela entra no bar e pede informações a TJ que se esquiva, não quer ser publicamente tido como contrário ao sentimento de rejeição daquela comunidade aos refugiados, embora internamente pense o contrário.

Yara, é uma menina especial, talvez exageradamente pollyânica. Ela em pouco tempo se aproxima de TJ e passa a conversar com ele nutrindo, com o passar do tempo, uma verdadeira relação de amizade.

Algum tempo depois que começa ir ao bar (The old aok) ao encontro de TJ, sob reprovação da maior parte dos frequentadores, conhece o anexo abandonado no fundo, um salão que no passado devia ter acolhido grandes cervejadas de trabalhadores, mas que a decadência econômica encerrou seu funcionamento deixando-o às teias de aranhas e à poeira, restando do bar apenas a pequena sala da frente com poucas mesas e um balcão.

O místico salão do fundo abrigava memórias da vila, especialmente fotos da época em que os sindicalistas mineiros possuíam força política e seus heroísmos foram registrados pelo tio de TJ, fotógrafo. Numa das fotos consta o texto: When you eat together, you stick together (quando você come junto, você fica junto). A foto eternizou a lembrança de uma das greves que durou mais tempo e que sem salários as famílias usavam aquele salão dos fundos para que tivessem o que comer, assim, juntavam o que possuíam para comer, estavam juntas e estando juntas agiam juntas, ideia que aguçou Yara a organizar encontros aos domingos para aproximar refugiados dos locais, sendo que estes últimos também sofriam, embora por outros motivos.

Há algo que agrida mais diretamente a cultura neoliberal e seu culto ao individualismo que estar juntos e agir juntos, dividir a soma do pouco que individualmente possuem a fim de que todos possam se alimentar em igualdade? TJ pertencia a uma geração castigada por Margareth Thatcher que impôs à força a cultura do neoliberalismo, ela defendeu “não haver sociedade, apenas indivíduos”, para lembrar uma de suas frases que atingiu maior alcance e até hoje tem sido evocada por coaches em suas palestras vazias idolatrando o individualismo.

Yara convenceu TJ e sua esperançosa companheira a abrir o espaço, em pouco tempo mobilizaram pessoas, refugiadas e locais, que passaram a conviver ali aos domingos, conhecerem as dificuldades uma das outras, crianças que pouco tinham o que comer, pessoas com depressão profunda, ali encontravam pequenas soluções conjuntas. O bom utopismo de Loach, na melhor acepção possível, encontrou terreno fértil naqueles encontros. Apenas uma pequena parcela de frequentadores xenófobos recriminava a iniciativa. Ali uma boa inconsistência de argumentos aparece, lembram que entre eles um advém de família irlandesa, afinal, a quem pertence o vilarejo sendo que nem todos ingleses são mesmo ingleses? Irlandeses ou sírios podem?

A partir dos encontros Yara passou a fotografar pessoas comuns em seu cotidiano, em suas alegrias e tristezas, contagiou-as, mas também fez aumentar a repulsa de outras contra si, por TJ, que a acolheu, e pelas demais pessoas que não viam problema em conviver com refugiados.

O filme possui cenas de expressiva singeleza, eu escolheria quatro.

A primeira do estandarte que os refugiados produziram com um antigo carvalho no meio, com toda sua força, título do filme em inglês, onde consta no original: strength, solidarity resistance (força, solidariedade e resistência) e também o mesmo texto em árabe. Uma bandeira bilíngue que busca representar o encontro das duas culturas marcado pela solidariedade. E obviamente, o estandarte, em seu formato, pouco se parecia com uma bandeira política, mas com um tapete, algo específico da cultura árabe, de onde advinham, a mescla de culturas encontra na peça excelente representação de união.

Uma das mais bonitas cenas, quando fazem do anexo do pub um cinema projetam fotos clicadas por Yara dos populares na vila e de sua cultura. Mulheres que não saiam mais de casa, outras que trabalhavam, idosos e crianças sorrindo etc. Ali, fiquei com a impressão que Ken Loach quis nos apresentar o cinema que ele busca produzir e seu significado, talvez queira nos dizer: eu filmo pessoas comuns emaranhadas em situações de complexidade socioeconômica. Pensei que eu e as outras poucas pessoas que assistíamos à sessão ocupávamos a mesma posição nos assentos que aquelas pessoas que estavam sentadas no cinema improvisado no fundo do bar, não havia mais nós e os outros, o pronome nós comportava a todxs. Até porque sabemos o que Ken Loach procura com seus filmes e se estávamos lá atrás de seu trabalho poderíamos ocupar o lugar daquelas mesmas pessoas que nós assistíamos na nossa tela vendo outra tela. Nós éramos tão elas que não havia mais como distinguí-las de nós na representação estética.

Um terceiro ponto que vale trazer, algo rigorosamente comovente, e talvez pertença à nossa cultura marcada por valores europeus, ocorreu quando TJ e Yara foram até a catedral de Durham retirar donativos. Vale observar que, embora portadora de experiências cosmopolitas, a cultura de Yara possuía referência síria. Ainda assim, ela se encantou pela arquitetura do local e pelo coral em formato de missa, dois objetos indiscutivelmente europeus, mas que não conduziram a uma forma de nacionalismo excludente, aquele que nega o outro.

A catedral e seu coral impulsionaram-na a que evoluísse, pela catarse, do indivíduo singular ao gênero humano (como defendia György Lukács em sua estética, ocupando a arte a função de mediação entre o singular e o universal). Yara emocionou-se e se viu imersa nos sentimentos pertencentes àquela cultura, não conectada pelo singular, mas pela generalidade humana, ali, Ela, TJ e todas as demais pessoas pertenciam apenas ao mesmo gênero humano, não havia mais ingleses ou sírios, a classificação não fazia qualquer sentido.

Ken Loach, um inconfundível ateu, paradoxalmente, recorreu à religião para alegorizar que somos todos iguais já que pertencemos ao gênero humano. Não foi a partir de particularismos identitários que Ken Loach queria que víssemos seu trabalho, amém e oxalá.

Mas se o filme possui cenas de beleza sublime, há também a pequenez do humano presente pela inveja, a traição, o ódio, nos colegas de TJ que sabotam o salão para que não prossigam com os encontros dominicais. A contradição entre beleza e fealdade do humano está ali presente, duelando o tempo todo.

As contradições são parte do filme e indicam-nos não haver simplismo onde o humano está presente. TJ é um homem que viveu uma depressão profunda, comum em nossos tempos de individualismo sob a lógica de salve-se quem puder, foi abandonado pela esposa e filho. Vive modestamente com uma cachorrinha. Num trecho lembra-se do dia em que pensou em suicídio, foi até a praia, quando a cachorrinha apareceu e iniciaram uma bonita relação, ela o salvou. São cenas típicas da devastação ocasionadas pelo neoliberalismo, a solidão das pessoas, a depressão, a fragilidade diante do impulso de morte, a intolerância, a violência presente nas redes sociais e os pets ocupando vazios deixados pelas relações humanas fraturadas.

Há uma cena de quando sua cachorrinha foge e um cão feroz a assassina, os adolescentes ainda zombam dele nas redes sociais, terreno fértil ao que há de pior nas pessoas. O conjunto conduz TJ a pensar novamente em suicídio, a cena é aterrorizante, distópica e sem um tiro ou explosão de bomba, a angústia se apresenta na delicadeza dos sentimentos. Talvez algo proporcionalmente triste, por aqui, seja a quantidade de sessões dedicadas ao filme nos cinemas e o público nele interessado…

O final do filme é bastante significativo e eu tenho esta como a quarta cena. Sabe-se desde o início que o pai de Yara é um preso político e passa por constantes riscos de ser morto. Ao final, a família recebe a notícia oficial de sua morte na prisão. As pessoas ficam sabendo e a notícia corre pelo vilarejo, em pouco tempo a porta da casa onde vivem torna-se local de um velório simbólico e toda a cidade vai até Yara e sua mãe confortá-las com abraços, flores e velas pela perda.

Ken Loach sai vitorioso, a solidariedade dos que sofrem prevalecerá para enfrentarmos os desafios do presente, não mais com greves de mineiros, que sequer existem, mas de ex-mineiros com refugiados, desesperançosos, depauperados, solitários, essa batalha ocorrerá pelo que há de comum, a generalidade humana, é a ética de Ken Loach animando-nos a sair das zonas de desesperança sem a busca ingênua e simplória por alternativas particularizadas, sem nós e xs outrxs, mas um pronome nós que comporte todxs, por mais utópico que possa parecer é a opção que nos resta.

Fez-me lembrar de György Lukács que certa vez explicou numa entrevista sobre o cinema permitir que as pessoas refletissem sobre uma situação levando-as a compará-la com a própria, e que assim atingiu o objetivo a que se propôs, não de apresentar respostas, mas apresentar perguntas.[ii]

Em tempos tão sombrios Ken Loach é uma luz de esperança, quando o cinema assumiu a função de mero entretenimento, ele nos permite pensar tão profundamente sobre temas de nossa contemporaneidade sem perder de vista as complexidades socioeconômicas, culturais, históricas e geopolíticas. Ele não nos apresenta respostas, mas põe-nos perguntas a partir de pequenas vivências naquele vilarejo que pode bem representar, numa reposição estética, a sociedade contemporânea.

*Wellington Medeiros de Araújo é advogado .

Referência


O último pub (The Old Oak)
Reino Unido, 2023, 113 minutos.
Direção: Ken Loach.
Roteiro: Paul Laverty.
Direção de Fotografia: Robbie Ryan
Elenco: Dave Turner, Ebla Mari

Notas


[i] Eu assisti apenas uma vez há duas semanas e posso ter sido impreciso em alguns detalhes, mas o essencial do que vi é isto.

[ii] Lukács, G. Conversando com Lukács. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969, p. 212.


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