Por ARI MARCELO SOLON*
Considerações sobre o livro “Alexandre Kojève and the Specters of Russian Philosophy”, de Trevor Wilson
1.
Meus alunos, de brincadeira ou não, dizem, quando começo a falar do fim da história, a partir da Fenomenologia do Espírito, “de novo Hegel, Husserl e Heidegger, professor?”.
Nesse sentido, apresento a eles uma passagem referente à dialética do senhor e do escravo: “many interpreters have stopped at the master-slave dialectic: masters do not work and slaves work for them”. Eu, como intérprete de Hegel, parei na dialética do senhor e do escravo, no Capítulo IV, da Fenomenologia do Espírito, à luz das aulas de Alexandre Kojève, em 1939, isto é, os senhores não trabalham, e os escravos trabalham para eles. Acrescentei o instante, o Augenblick, de Martin Heidegger, para dizer que a justiça de que fala Hegel, no final da história, processualmente só pode ser acessada no “piscar de olhos”.
Quando os juízes dizem “Eu vivo, eu repito sempre o instante, eu julgo de acordo com o que sempre julguei no passado”, eles jamais atingem a justiça da equidade de que fala Alexandre Kojève, na fenomenologia do direito, como sendo o fim da dialética da justiça como igualdade e da justiça como equivalência.
É necessário um olhar não só para o passado. Um instante do presente que se projeto ao futuro, é necessária uma transformação da justiça, superando as noções antigas, gregas e burguesas romanas.
De Edmund Husserl, eu retirei a indicação formal da hermenêutica. Ao contrário dos niilistas, que não acreditam em decisão justa, no fim da História, que vivemos desde 1807, é possível sim que haja decisões justas. Elas são indicadas formalmente pelo Augenblick, elas piscam como peixes brilhantes em um aquário em que outros peixes não brilham.
Por outro lado, eu não avancei como Giorgio Agamben, além daquilo que Alexandre Kojève apresentou como epígrafe em seu livro Introdução à leitura de Hegel, a verdadeira liberdade é o trabalho, procurou além da dialética do trabalho, a dialética da inoperatividade. Afinal, para Giorgio Agamben, após 1807, tivemos a Primeira Guerra Mundial e um totalitarismo que se protrai até os tempos atuais, posição da qual discordo veementemente.
É possível ser observado o seguinte: “Alexandre Kojève, no entanto, está ausente há muito tempo dos relatos da filosofia russa no século XX. O que pode explicar esse lapso? O próprio filósofo é parcialmente culpado. Na sua primeira década no estrangeiro, Kojève dedicou muitos dos seus primeiros escritos a tópicos da filosofia russa – o eurasianismo e a filosofia de Vladimir Solov’ev” (Wilson, 2024).
Não há nada de novo desde que Hegel terminou a Fenomenologia do Espírito, em 1807. Alguns estudos, porém, ajudam a nuançar o que acontece no presente.
2.
Este livro de Trevor Wilson me ajudou a solucionar alguns quebra-cabeças que acometiam o meu pensamento. Qual a relação entre Hegel e o misticismo russo? Qual a relação entre Alexandre Kojève e Eurásia?
Como será o livro ainda não traduzido, único livro que me interessa, “Filosofia, fenomenologia e sofia“, um manuscrito de 1940, de mais de 1000 páginas, que Rampère promete traduzir. O que há de novo no fim da História?
Napoleão é o anticristo. E o anticristo é aquele que Soloviev escreve no seu último testemunho. A Vladimir Soloviev devemos a “sophia” que ele recebeu em revelação na biblioteca de Londres.
Vladimir Sergueievitch Soloviev foi filósofo, teólogo, poeta, escritor e crítico literário russo. Nasceu em Moscou, em 16 de janeiro de 1853, tendo falecido nessa mesma cidade, em 31 de julho de 1900. Nesta obra, Breve história sobre o Anticristo, Vladimir Soloviev (2016) descreve a história do Anticristo como “o grande amigo espiritualista, ascético e amigo dos homens”, cuja elevadíssima autoestima aparece justificada pelas “manifestações rigorosas de abstinência, abnegação e disposição ativa de ajuda”. Forma parte da imagem tradicional do Anticristo aparecer como “benfeitor”, e nas audiências mostra-se “tão amável, que será aclamado em todos os jornais”. Isto escrevia Vladimir Soloviev no último ano do século XIX.
A Trevor Wilson, devo a identificação do anticristo. Eu já sei quem é o anticristo: ele nasceu na Tribo de Dã, ao norte, alguns dizem que foi em 1962. Liderou um império universal a partir da Europa, uma ditadura burocrática pseudoassistencialista.
Só faltou amarrar o anticristo como sendo o superhomem do fim da história, está tudo no 2º Tessalonicense de Paulo. Não há nada de novo, a não ser que no presente há a luta contra o anticristo para chegar ao fim da história.
É isso que Vladimir Soloviev descreve, e logo após morreu. Se é que morreu.
Outro eureka: Eurásia. Eu descobri, na época pré-internet, que havia um manuscrito em russo, de Kojève, sobre o direito chinês.
Traduzi e escrevi um artigo. Disse que Alexandre Kojève, ao contrário do autor do livro, era contra a ocidentalização do direito chinês. A partir disso, desenvolvi os conceitos de justiça no taoísmo. Iria apresentar, mas tive um problema que tiveram que operar meu coração em aberto.
Trevor Wilson indica que esse artigo foi publicado na revista Eurásia, de Kravasin.
Portanto, o segredo de Rússia e China não é a ocidentalização mesmo. É o que Trevor Wilson me ensina: é o left-eurasianism. Enfim, este ano os alunos terão novidades: a mesma história de sempre, mas com ingredientes das ricas tradições filosóficas do misticismo russo – “sophia“, fenomenologia e a história do anticristo que nasceu em Dã, no reino do norte.
*Ari Marcelo Solon é professor na Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros, livros, de Caminhos da filosofia e da ciência do direito: conexão alemã no devir da justiça (Prisma). [https://amzn.to/3Plq3jT]
Referência
Trevor Wilson. Alexandre Kojève and the Specters of Russian Philosophy. Evanston, Northwestern University Press, 2024, 200 págs. [https://amzn.to/3Z49s97]
Bibliografia
AGAMBEN, Giorgio. The Open: Man and Animal. Stanford, CA: Stanford University Press, 2004.
HEGEL, Geord Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do espírito. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
KOJÈVE, Alexandre. Introduction to the Reading of Hegel: Lectures on the “Phenomenology of Spirit”. New York: Cornell University Press, 1980.
SOLON, Ari Marcelo. Hermeneutica Juridica Radical. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2018.
SOLOVIEV, Vladimir. Breve História sobre o Anticristo. São Caetano do Sul: Santa Cruz, 2016.
WILSON, Trevor. Alexandre Kojève and the Specters of Russian Philosophy. Evanston, Northwestern University Press, 2024.
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