Por Paulo Martins*
Os lobos são minoria, mas quando colocados no exercício do poder podem trazer danos irreparáveis. O século XX assistiu, em suas diversas guerras, ao desfilar de lobos.
O novo coronavírus, muito além de ser um vírus perigoso por sua competência em se alastrar fácil e rapidamente, ceifando vidas, desestruturando famílias, interrompendo projetos, desmobilizando o sistema educacional, desestabilizando indústria e comércio, mundo a fora, traz a lume um patógeno social: o indivíduo que cisma em lutar contra as evidências, que se recusa a entender a ciência, que desconsidera o próximo, enfim, um indivíduo que é uma doença social e, além disso, é a comprovação cabal de que homo homini lupus (o homem é o lobo para homem) de acordo com Plauto na comédia Asinária[i].
De acordo também com Sêneca nas Cartas a Lucílio e, modernamente, com Thomas Hobbes, no De Cive, publicado em 1642, que revitalizaram a sententia plautina. Hoje se multiplicam mundo afora nossos lobos, aqueles que desafiam a ciência, que se acreditam acima do bem e do mal; que pensam que seus projetos pessoais se sobrepõem aos coletivos. Enfim, aqueles que desconsideram a raça humana.
Plauto, em contexto cômico, afirma: Lupus est homo homini, non homo, quom qualis sit non novit – “O homem, que não se conheça qual seja, é lobo para o homem”. Nesse texto, um comerciante explicita desconfiança sobre uma pessoa a quem não conhecia e, portanto, como temia não ser pago, não lhe concedia crédito. A clareza dessa conduta põe em jogo o caráter da própria natureza humana de forma generalizada. Ainda que isto ocorra em gênero cômico, é extremamente preocupante imaginar que o simples fato de não se conhecer o outro o impeça de conceder-lhe um voto de confiança. Isto reduz o homem a algo que o nega como ser humano.
Sêneca, em Cartas a Lucílio[ii], afirma: “Homo, sacra res homini, iam per lusum ac iocum occiditur”, isto é, “o homem, que deveria ser algo sagrado para o homem, é exposto à morte por divertimento e por jogo”, o autor, falando das constantes mortes em público nos jogos, propõe que os promotores dessas atrocidades, são bestas-feras para o próprio gênero humano, a vida do semelhante lhes é insignificante. Menosprezam nosso maior bem: o zelo pela vida.
Em Hobbes, o brilhante verso de Plauto serve à sua argumentação de que o sujeito, o homem, o ser humano é naturalmente compelido a viver em guerra uns com os outros. A inobservância de consensos – por favor, não o dissenso civilizado –, o conflito entre os homens para alguns é alimento, é prazer, é perversidade inata e indica que, entre todas as ameaças que um ser humano pode enfrentar, a maior delas é o confronto com outras pessoas, mais do que isso é sua voz e vez. Nesse sentido, diz Hobbes: “To speak impartially, both sayings are very true; that man to man is a kind of God; and that man to man is an arrant[iii] wolf – Para falar imparcialmente, ambos os ditos são muito verdadeiros, isto é, que o homem para o homem é um tipo de Deus e que o homem para o homem é um absoluto lobo”.[iv]
Vemos que os maiores desafios que enfrentamos – como espécie – são criados por nós mesmos. Observamos que, para o ser humano, é comum os mais fortes explorarem os mais fracos, quando, na verdade, deveriam protegê-los. Isso revela que o homem é o predador do próprio homem, um vilão dele mesmo. Como Hobbes, Sêneca e Plauto propõem, nós não podemos generalizar. Os lobos são minoria sem dúvida, mas quando colocados no exercício do poder podem trazer danos irreparáveis. O século XX assistiu, em suas diversas guerras, ao desfilar de lobos. Dizimaram milhões de pessoas, cometendo atos absolutamente inumanos.
O século XXI, em tempos de Covid-19, nos apresenta um aperitivo que soa redundante. Para o republicano Donald Trump, o problema foi o vírus ser chinês. Para o empreendedor Beppe Sala, prefeito de Milão, o importante era divulgar um filme institucional que viralizasse a ideia de que “Milão não pode parar”. Já Viktor Orbán e János Áder, os grandes líderes húngaros, aproveitaram a pandemia para legalizar o estado de exceção. Em Belarus, o ditador Alexander Lukasheko, fazendo troça, prescreveu sauna e vodca. Gurbanguly Berdimuhamedow, do Turcomenistão, considerou um problema linguístico e mais do que rapidamente proibiu a imprensa de usar a palavra “coronavírus”. O governo da Colômbia, liderado por Iván Duque Márquez, intensificou campanha de controle das relações sexuais, julgando uma boa medida contra a doença, propondo a masturbação como profilaxia[v].
O nosso presidente parece ter feito a síntese. Jair M. Bolsonaro e sua trupe familiar em momento algum imaginaram considerar a importância da ciência ou dos cientistas, esses na verdade sempre são vilipendiados pela “familícia”, nunca se mostraram devedores à universidade, aos institutos de pesquisa, como Fiocruz ou Butantã, ao contrário, reforçaram as ideias magistrais daqueles “estadistas”. A clara tentativa de autogolpe, a gripezinha, o desrespeito ao isolamento, a desqualificação do ministro da saúde, as agressões aos governadores de estado, inclusive aos de seu campo político, ao vice-presidente, aos presidentes da Câmara, do Senado e do STF, isso tudo, demonstra denodo e incapacidade para gerir a crise e o país. Encastelados no Olimpo do Planalto, o presidente, e seus asseclas, creem-se deuses; tolos, não sabem que são apenas lobos famintos.
*Paulo Martins é professor de cultura latina na Universidade de São Paulo.
Notas
[i] Plauto (254 – 184 a.C.). Asinária. A comédia dos asnos, versos 495-496.
[ii] Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.). Cartas a Lucílio, 95.33.
[iii] Arrant = notório, absoluto, completo (inglês arcaico).
[iv] Hobbes, T.(1588 – 1679). “Philosophical Rudiments Concerning Government and Society” in: The English Works of Thomas Hobbes of Malmesbury. Vol. II. Londres: John Bohn. 1841. p. iii. (Epístola Deticatória).
[v] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/paises-recomendam-masturbacao-e-vodca-como-medidas-para-contencao-do-coronavirus.shtml (acessado em 5/4/2020).