Outro fim do mundo é possível

Dora Longo Bahia, Revoluções (projeto para calendário), 2016 Acrílica, caneta à base de água e aquarela sobre papel (12 peças), 23 x 30.5 cm cada
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Por SLAVOJ ŽIŽEK*

Líderes políticos estão silenciosamente conscientes das consequências sociais radicais da pandemia – os líderes agem preventivamente, tentando aniquilá-las antes que assumam uma forma totalmente política

Uma nota publicada na imprensa em 27 de setembro de 2020 passou quase despercebida: O governo ordenou às escolas da Inglaterra que não utilizassem fontes de organizações que manifestaram o desejo de acabar com o capitalismo. A diretriz, publicada quinta-feira pelo Ministério da Educação e destinada a diretores de escolas e professores envolvidos na implementação do currículo de Relações, Sexo e Saúde, classificou o anti-capitalismo como uma ‘posição política extrema’ e o equiparou a um discurso contrário à liberdade de expressão, ao anti-semitismo e ao apoio a atividades ilegais”.

Pelo que sei, não há precedentes de que uma ordem tão explícita tenha sido dada. Nada parecido com isso ocorreu alguma vez, mesmo nas horas mais sombrias da Guerra Fria. Cabe notar também a escolha de palavras: “um desejo de acabar com o capitalismo”, não uma intenção, um plano, ou um programa, apenas um desejo, um termo que pode ser aplicado a qualquer tipo de declaração (“tudo bem, você não disse, mas realmente deseja”…). A isto se acrescenta, contudo, a já habitual menção ao anti-semitismo, como se um desejo de pôr fim ao capitalismo fosse em si mesmo anti-semita. Os autores compreendem que sua proibição é em si mesma anti-semita: ela pressupõe que os judeus seriam por essência capitalistas?

Pânico a bordo

Por que esta repentina reação de pânico diante do comunismo? Seria por que a pandemia, o aquecimento global e as crises sociais poderiam dar à China uma oportunidade de se afirmar como a única superpotência? Não, a China não é a União Soviética de hoje – a melhor maneira de impedir o comunismo é seguir a China. Se a União Soviética era o inimigo exterior, a ameaça às democracias liberais vêm hoje do interior, da mistura explosiva de crises que corrói as nossas sociedades. Tomemos um exemplo extremo, mas claríssimo, o modo como a atual pandemia impeliu nossas sociedades na direção do que associamos ao comunismo, e, em alguns casos, ainda pior.

No seu livro Logiques des Mondes” [Paris, Seuil, 2006], Alain Badiou elaborou a ideia da política da justiça revolucionária, em ação desde os antigos “juristas” chineses, passando pelos jacobinos, até Lênin e Mao. Ela consiste em quatro momentos: voluntarismo (a crença de que podemos “mover montanhas” ignorando os obstáculos e as leis “objectivos”), terror (uma vontade implacável de esmagar o inimigo), justiça igualitária (sua imposição brutal e imediata, sem compreender as circunstâncias complexas que supostamente nos convencem a proceder gradualmente) e, finalmente, confiança no povo.

A atual pandemia não nos obriga a inventar uma nova versão destes quatro elementos? Voluntarismo: mesmo nos países onde as forças conservadoras estão no poder, são tomadas decisões que violam claramente as leis “objetivas” do mercado, tais como a intervenção estatal direta na indústria, a distribuição de bilhões para prevenir a fome ou para medidas de saúde pública. Terror: os liberais são coerentes em seu medo, pois os Estados não são apenas constrangidos a adotar novos modos de controle social e de regulação, as pessoas são forçadas também a denunciar às autoridades médicas os familiares ou vizinhos que escondam sua infecção. Justiça igualitária: é geralmente aceito (mesmo que na realidade isto seja e será desrespeitado) que a eventual vacina deveria ser acessível a todos e que nenhuma parcela da população mundial fosse sacrificada diante do vírus – ou o tratamento é global, ou é ineficaz. Confiança nas pessoas: todos sabemos que a maioria das medidas contra a pandemia só funcionam se as pessoas seguirem as recomendações – nenhuma medida estatal pode assumir o controle.

Por trás do fascismo, uma revolução fracassada

Bem mais importante é a socialização parcial da economia imposta pela pandemia – tal socialização se tornará ainda mais urgente com o aumento em curso das infecções. É assim que as tendências “fascistas” de Trump e outros populistas devem ser interpretadas – como Walter Benjamin enunciou uma vez: “Por trás de todo o fascismo, há uma revolução fracassada”. Estas tendências “fascistas” revelam que os líderes estão silenciosamente conscientes das consequências sociais radicais da pandemia – os líderes agem preventivamente, tentando aniquilá-las antes que assumam uma forma totalmente política.

Certamente, é bem fácil reduzir Trump a um fascista, mas o perigo que ele encarna é ainda pior do que o fascismo puro e simples. Da minha juventude, lembro-me de uma piada da Alemanha Oriental: Richard Nixon, Leonid Brejnev e Erich Honecker encontram-se diante de Deus e perguntam a ele sobre o futuro de seus países. Para Nixon, ele responde: “Em 2050, os Estados Unidos serão comunistas!” Nixon dá meia-volta e começa a chorar. Para Brejnev, disse: “Em 2050, a União Soviética será uma província chinesa”. Brezhnev dá meia-volta e põe-se a chorar, e Honecker, por sua vez, pergunta: “E o que vai acontecer na minha amada RDA?”, e Deus dá meia-volta e começa a chorar… É fácil imaginar a versão desta chacota se Trump e assemelhados triunfarem sobre o nosso mundo. Putin, o presidente chinês Xi Jinping e Donald Trump fariam a mesma pergunta a Deus. Para Putin, Deus responderia: “a Rússia estará sob o controle da China”, e Putin daria meia-volta chorando. Para Xi, Deus diria: “a China continental será dominada por Taiwan”, e Xi faria o mesmo. Quando chegasse a vez de Trump, Deus daria meia volta e começaria a chorar…

O que estamos colhendo hoje – e não somente na China – é a combinação de um Estado forte e autoritário e com dinâmica capitalista selvagem. A forma mais eficaz do capitalismo contemporâneo consiste no que Henry Farrell chamou de “autoritarismo em rede” (“networked authoritarianism”): se o Estado espiona suficientemente seus cidadãos e permite que sistemas de aprendizagem automática incorporem seu comportamento nas respostas, é possível satisfazer melhor as necessidades de todos do que uma democracia  é capaz. Sobre este ponto, Xi, Putin e Trump formam uma equipe.

Prontos para lutar suas batalhas

Duas conclusões aqui são evidentes por si mesmas, uma a curto prazo, a outra a longo prazo. A de curto prazo é que a tarefa da esquerda radical (ou o que resta dela) é, doravante, como disse Alexandria Ocasio-Cortez, salvar as nossas democracias “burguesas”, onde o centro liberal é demasiado fraco ou demasiado indeciso para fazê-lo. Vergonha para eles – estamos agora prontos para lutar suas batalhas. Por mais obcecados que estejam com as excentricidades provocadoras de Trump, os liberais não percebem a questão principal desenvolvida por Michael Sandel: Trump não é um ditador, está apenas fazendo-se de ditador na televisão, e não deveríamos deixar de lado suas segundas intenções.

Aceitamos jogar este jogo quando o criticamos como uma espécie de fascista em vez de nos concentrarmos nos seus fracassos, que ele dissimula com provocações e excessos ditatoriais. Os documentos fiscais recentemente publicados revelam que ele é simplesmente um gestor medíocre que explora financeiramente o Estado ao mesmo tempo que declara repetidas falências, perdendo milhões e evitando impostos de todas as maneiras possíveis – a única coisa lucrativa que ele fez nas últimas décadas foi o seu programa de televisão “O Aprendiz”, no qual ele desempenha seu próprio papel. A sua estratégia típica é provocar a raiva dos liberais, o que atrai grande atenção, e, em seguida, fora da vista do grande público, implementar medidas que avançam sobre os direitos dos trabalhadores, etc.

A segunda conclusão: durante as manifestações que irromperam no Chile em outubro de 2019, um dos grafites nas paredes dizia: “outro fim do mundo é possível”. Esta deve ser a nossa resposta aos líderes políticos obcecados com cenários apocalípticos: sim, o nosso mundo está chegando ao fim, mas as opções que vocês consideram não são as únicas. Outro fim do mundo é possível.

*Slavoj Žižek é professor do Instituto de Sociologia e Filosofia da Universidade de Ljubljana (Eslovênia). Autor, entre outros livros, de O ano em que sonhamos perigosamente (Boitempo).

Tradução: Fernando Lima das Neves

 

 

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