Por RONALDO TADEU DE SOUZA*
Considerações sobre a trajetória intelectual e política do filósofo uspiano
“Eu cometo minha ação, minha estranha ação, minha obra, estranha obra a minha, que fará zunir as orelhas de quem dela ouça falar” (Abiezer Coppe em O mundo de ponta cabeça, de Christopher Hill).
“Ideias que não sejam capazes de chocar o mundo não serão capazes de sacudi-lo” (Perry Anderson, “Ideias e ação política na mudança histórica”).
Pertencente a um conjunto de indivíduos em extinção, na verdade, talvez, já tenham sido extintos desde há muito, os intelectuais públicos (os que enunciam a crítica-intervenção com parcialidade; que “falam” pelos de baixo na definição existencial de Jean-Paul Sartre), Paulo Eduardo Arantes chega a seus 80 anos em 2022.
Nas vicissitudes que atravessam o mundo da cultura letrada no Brasil, seja no âmbito acadêmico-universitário, seja no debate público-político, com o pouco espaço livre de discussão crítica (afora alguns nichos de resistência), com as transformações técnicas e produtivistas da carreira docente e de pesquisador e pesquisadora, com as pressões diárias para se posicionar à sombra do intimismo do poder, com a escassez de organizações político-partidárias suficientemente radicais e insubmissas (que desejam a transformação insurrecional), e com as oscilações do mercado editorial – quais as possibilidades dos homens e mulheres des lettres, os philosophes no sentido do século XVIII, manterem a coerência ao longo do percurso?
Os que afirmarem nenhuma – não estarão sendo injustos com os que se dedicam à profissão das humanidades. Assim estariam, se dissessem que Paulo Eduardo Arantes faz parte dos que se renderam ao sucesso e consenso imediato da ordem política, social e cultural vigente. É que o homem de esquerda que participou de mais de 40 lives no último período – compreendendo, é certo que dada as circunstâncias inesperadas da fortuna do momento pandêmico, a função histórica do tempo das redes sociais e de como a direita, seus ideólogos, intelectuais, filósofos e escritores estavam muito à frente da “crítica” não-autêntica por vezes ancorada, tristemente no Lattes –, e que nessas ainda ousa citar Lênin e promover reflexões incitando a reviravolta (termo que mobiliza por vezes) é o mesmo que escreveu o Ressentimento da Dialética: dialética e experiência intelectual em Hegel (antigos estudos sobre o ABC da miséria alemã).[1].
Conjunto de ensaios e intervenções tecidos nos anos 1970, reunidos e publicados em 1996, a destinação deles é uma ode à dialética como forma de ação política dos intelectuais públicos-críticos. Daí que Bento Prado Jr., seu professor, dizer que a dialética de Paulo Eduardo Arantes sempre tem “seu alvo” (p.15). Assim, trata-se de um texto-programa-intervenção que tem como núcleo constitutivo o impulso para que os homens de letras (os autênticos a buscar as entranhas do povo insurreto – Paulo Eduardo Arantes é tipo peculiar de Lêninista dirá Bento Prado Jr. (Ver p. 14)) se ponham em guarda contra as formas de convenção e normalização da existência. Por isso, Bento Prado afirma que Ressentimento da Dialética “recorre abundantemente à literatura dita conservadora, ou aos críticos das revoluções e todas as formas do homo ideologicus, de Tocqueville a A. Cochin” (p. 12). (Quem diria, a não ser a pena negativa hegeliano-marxista-schwarziano de Paulo, que “os enfrentaríamos” na segunda década do século XXI…).
Entretanto, os movimentos discursivos do autor de Hegel e a ordem do tempo e o O novo tempo do mundo nunca foram simples e/ou autoevidentes. É que os intelectuais, de posse da dialética, são paradoxos em atividade frenética. Paulo Arantes assim, herda o espírito e o temperamento incontidos dos Voltaires, dos Rousseaus, os Diderots. Sempre com olhar vivo e aturado para a realidade social, na verdade é o enunciador caustico das dinâmicas mais atuais e agudas dos sentidos da luta de classes, Paulo Arantes é o diabólico escritos contra a ordem. Nisso ele é um dos principais guardiões na periferia do sistema do legado de Sartre.
Mas não há consciência feliz em ser loquaz para os de baixo – e desafiador das castas esnobes (Marcel Proust); do pacto entre “conservadorismo e esnobismo” (p. 196) da burguesia (fidalga) fora de lugar da periferia. Por vezes em sua trajetória – que se expressa em germe permanente no Ressentimento da Dialética… – nosso dialético enfrenta o “vazio […] dilacerante” (p. 35). Quer dizer – pode ser, e em certas conjunturas o é, lançado nas teias sedutoras da contemplação absorta: inclusive de si mesmo. Na resposta a contextos as quais insurreições estão em momentos vazantes ocorre o “autoelogio” dos hommes de lettre às “façanhas do próprio espírito” (p. 35).
O próprio Paulo Arantes admite; “como se vê, a atenção penosa exigida pelo Conceito é o fruto circunspecto de uma ascese cuja etapa mais significativa amplia a renuncia ao momento intelectual para que possa nascer o pensador na sua função especulativa […] a morte do intelectual é condição da teoria” (p. 35). Aqui há um expediente contemporâneo que cerca o espírito com barrete de aço da especialização; é uma era aos quais a rebeldia da palavra, a mente incandescente de crítica social, o enlouquecimento da razão furiosa contra a opressão-exploração, a fusão explosiva do pensamento pela raiz (Marx) e o povo estão às portas do fim celestial. Desde muito tempo pede-se serenidade, exige-se (não)raciocínio técnico via os dados estatísticos, clama-se por conhecimento pragmático-aplicado para as políticas públicas, reivindica-se que as letras sejam afasicamente responsáveis e matematizadas.
Com efeito, transpor esse mundo, ou melhor dizendo, enfrentar esse mundo – como faz Paulo Arantes – requer a articulação entre a paixão mesma (pelos subalternos) em imiscuir-se na política com fibra profana e o comprometimento com as formas existências do “intelectual-sofista” (p. 47): que tem a vivência ditada “pela índole […] [endiabrada] da dialética negativa” (p. 47). Trata-se, também, em Ressentimento da Dialética…, o livro-programa, de ser o anteparo irresignado porque revolucionariamente imaginativo contra a “civilização […] do mercado e da divisão social do trabalho” (p. 48).
Esse é um ponto decisivo nos 80 anos de Paulo Arantes, exprimindo seu empenho público (declarado por vezes) enquanto hommes de lettres com o zelo com as causas dos que lutam as batalhas da sobrevivência. No ensaio Quem pensa abstratamente? surge a figura, sempre bem querida pelos arranjos dos salões, de Edmund Burke. Esse irlandês, que começou sua “vida pública” escrevendo sobre as sensibilidades sublimes, a estética – que mais tarde influenciará a faculdade de julgar (artística) de Kant –, estava ciente dos perigos para a civilização de todos os discursos, ações e práticas às quais a imposição da divisão social do trabalho desafiada. É que a palavra e o pensamento tornados contingência política e sendo impulso de sentimentos de contestação sediciosa contra as instituições, costumes e culturas tradicionais lançaria a baixo os andaimes das milenares sociedades europeias.
Por isso Edmund Burke não se conformava com os philosophes, era preciso, irremediavelmente, para ele que – sapateiros fossem sapateiros, alfaiates fossem alfaiates, artesãos fossem artesãos e políticos ocupassem a política e philosophes ocupassem o lugar da responsabilidade pública. Na verdade, a defesa burkeana da divisão social do trabalho vincula-se aos modos de estrutura hierárquica “estabelecidos” pela natureza. Ao citar-comentar Edmund Burke (mas também “Constant e Taine” (p. 64)), Paulo Arantes quer enunciar o desvio sedicioso radical, vale dizer, fazer ou tornar o negativo-imanente em plebeu e o plebeu em negativo-imanente: é a dialética como dispositivo de subversão.
Diz Paulo Arantes: “Essa proeza levemente diletante de ver o mundo de ponta-cabeça, revirá-lo pelo avesso e entregar-se à tentativa (versuch é o termo utilizado por Hegel) cerebral de refazê-lo do marco zero, são outros tantos sinais, registrados pela sensibilidade conservadora; […] [o] especulativo diria Burke […] [pois ele temia]”, conclui nosso dialético, “[a] iniciativa política do letrado, […] [o intelectual transformado em] cidadão revolucionário” (pp. 64 e 65).
Mas em Paulo Arantes não há ingenuidade (cínica). Pois essa estaria além da própria autocompreensão dos letrados; é a causa mesma dos desvalidos que poderia estar comprometida caso não se chegue ao entendimento de advertência – social e cultural – ao qual verifica-se que são “nos salões, […] nos cafés e nas associações literárias” (p. 91), por vezes excessivamente finos e até esnobes (Proust), onde ceva-se “a República intelectual” (p. 91). Qual o sentido dessa adversão no argumento do Ressentimento da Dialética…? Aqui nosso filósofo dos subalternos é ambíguo. (O que pode, eventualmente, ter lhe trazido certas desconfianças, ao longo do seu percurso de 80 anos, para com os de baixo.) Assim, se o pensamento livre (crítico, radical mesmo – apaixonadamente insurrecional) “encontra a aristocracia” (p. 91), isso significa a dissociação das questões econômicas. Seria a potencial perda do tino jacobino- Lêninista pela materialidade das coisas?
Paulo cifra a formulação do seu raciocínio na frase, “o homme de lettres ombreia com o aristocrata […]” (p. 91), pois ele percebe e vê, “sua opinião emancipar-se da dependência econômica” (p. 91). Há o risco, então, e muitos foram os que trilharam esse caminho, sobretudo, na impensada transfiguração do intelectual em homo academicus (Bourdieu), o que Sartre chamou causticamente de “técnicos do saber prático”, de fazer vingar “a hierarquia social” (p. 91) enredada por certas disposições antimateriais e antieconômicas que vive o intelectual – essas disposições, por vezes sendo registradas em acontecimentos históricos, tal como demonstrado por Paulo Arantes.
O autor de O novo tempo do mundo é evasivo nesse ponto: é que no seu esquema interpretativo o temperamento livre dos letrados adquire o “ethos do debate contraditório” (p. 91). Por que, como e quando não sabemos. Importa sabermos? Nesse trecho específico as ambiguidades de Paulo Arantes são sedutoras, ele dirá – “[…] uma contradição interminável; a inteligência vê-se assim presa de um movimento incessante, onde a alternância dos motivos contraditórios anuncia o andamento intelectual da dialética negativa” (p. 92). É como se nosso crítico estivesse a intervir nos debates do tempo tentando fincar sua posição de homme de lettres no solo adverso das conciliações fáceis.
Mas as facilidades aqui são representadas por artifícios de uma cultura conservadora e liberal plena de sortilégios, pois ora se reivindica, como já observamos acima, a recusa intransigente dos fatos brutos da existência dos de baixo – quem não se lembra das páginas celebres do Sobre a Revolução de Hannah Arendt condenando a paixão pelo social, pela pobreza e pela miséria dos revolucionários franceses em um eco tardio de Burke, já mobilizado por ela em outro registro no As origens do totalitarismo – ora se diz dos “mal feitos [abstratos] da inteligência” (p. 93).
Quem já não ouviu, e Paulo Arantes deve ter inúmeras vezes, a noção de “voluntarismo político” (p. 93) ingênuo que acompanha os intelectuais (dialéticos) – uma alcunha ao qual a classe dominante e seus escribas palacianos sempre apelam. Na verdade, o que temem é a transfiguração do temperamento dos homens de letras, Paulo Arantes entre eles, em forma de ação-organização política; que a “língua da especulação: o império da universalidade abstrata” (p. 93) se converta dialeticamente em terror revolucionário (Cf. p. 93). (Jacobinismo mesmo; marxismo mesmo; Lêninismo mesmo).
No entanto, Ressentimento da Dialética…, o texto-programa de toda a vida de Paulo Arantes, não é só eivado de rousseauismos – de cultura radical francesa. Pois a dialética, bem entendidas as coisas, tem também, nacionalidade alemã e depois brasileira. Paulo Arantes volta-se no livro para a experiência dos alemães. Sua intervenção neste debate é como a antessala da ação política no terreno nacional que ele irá provocar e ser personagem ao longo do seu percurso.
Vejamos. O ensaio de referência aqui é Os homens supérfluos. De modo que agora, passa-se “do ciclo francês para o ciclo alemão da inteligência europeia” (p. 109), vale dizer, transpõe-se das modalidades de agitação culta para às da erudição tornada sistema. Contundo, atravessa a reflexão de Paulo Arantes certas tensões – estilísticas é verdade – ao tratar da cultura intelectual na Alemanha. Surge a figuração irônica; Thomas Mann na interpretação de Paulo Arantes é sua enunciadora: é ele quem dá forma ao inconveniente na sociedade alemã da presença do letrado. Thomas Mann não só “reatava com os temas da crítica conservadora do jacobinismo que acabamos de evocar em Tocqueville e Cochin” (p. 110) como, mais intransigentemente, “desqualifica a função intelectual definida nos quadros do Iluminismo” (p. 110).
Ocorre que se os intelectuais públicos têm uma tonalidade, essa é a tonalidade local germânica (russa e brasileira). Thomas Mann, continuando Goethe (Cf. pp. 110 e 111), e talvez mesmo Hegel, era a autopercepção incomoda, o avesso do avesso em solo germânico, de que as “origens intelectuais da Dialética, […] a Dialética na sua feição moderna [incontrolável e arrebatadora], foi antes de tudo coisa de intelectual alemão, isto é, de intelectual marcado pela circunstância histórica do ‘atraso’” (p. 112). Sim: é que a irrealização socio-histórica que conforma o atraso – na modernidade – conforma sua dupla negação. (Paulo Arantes está se vendo no segundo momento…).
No recurso alemão acerca das possibilidades de se apresentar ao mundo ocidental como moderno o que emerge são momentos distintos dos franceses; na pátria de Goethe e Mann a Aufklärung converte-se em Estado ou melhor e seguindo Paulo, em conceito de Estado (especulativo que desmobiliza (Cf. p. 117), e em transcendentalidade. Ou seja – “o obstáculo [estatal-]estamental intransponível na Alemanha era um convite à exaltação moral e cultural de parte do burguês letrado e inconformado” (p. 116), porem infenso a ação política. Ao interpretar a sociedade alemã Ressentimento da Dialética… quer provocar um trauma no pensamento, um impacto raciocinante. Porquanto, o que está sendo tratado por Paulo Arantes (desde os anos 1970 até o nosso 2022…) é o problema angustiante (sobretudo para os de baixo) da infelicidade nacional que se expressa na vivência da kultur letrada alemã – e depois brasileira, com sua peculiaridade de sociedade escravista (Florestan Fernandes), nossa matéria constitutiva, ainda nossa formação: para desagrado dos bem-pensantes.
Segue-se, então, que nosso dialético lê ao revés as inquietações “conservadoras” de Thomas Mann; a incompletude do solo político-estatal alemão – “a ausência de vida parlamentar (à inglesa [e mesmo à francesa])” (p. 132), a via institucional – transforma o letrado, não no dialético da ação “prática”, no amante do radicalismo, no seduzido pela irrupção da multidão (George Rudé) que tanto incomodou Burke-Tocqueville-Cochin, mas em “literatti afrancesado” (p. 133) deslocado, romântico. Quer dize; diante de uma sociedade da não-realização absoluta, a do Estado, a da revolução, os intelectuais passavam quase sempre “a especulação extremada isolada da ação” (p. 133). Mas o temor que a especulação extremada, o pensar abstratamente, tomasse as coisas pela raiz – se realizasse na fusão explosiva com o povo em armas como na França – esteve presente enquanto um demônio que deveria ser exorcizada (Cf. p. 133), por vezes violentamente. (Com efeito, Paulo é a síntese na periferia do sistema do homme de lettres com o literatti.)
Trata-se, então, da dialética pensada até o final. Da contradição “organizada (sem organização) que escova a si-mesma na outridade política enquanto existência histórica. No dizer de nosso letrado: “convém insistir, [que] a Dialética, salvo engano, confunde-se com o radicalismo desse pensar-até-o-fim” (p. 136). Observemos mais detidamente Paulo no espelho. Não obstante o espelho agora é o da práxis: a conversão abrupta do negativo em uma variedade peculiar de ação política. O temperamento ainda é o mesmo, o dos “intelectuais ilustrados [com seu] […] espírito de missão” (p. 139); na Alemanha são autoconvertidos em românticos como dissemos, e é dessa posição social que forjam “os elementos de um ideário” (p. 139) outro – de modo a não ser mais a nação infeliz.
Hegel aqui é a tópica da passagem contraditória para o jovem Marx e deste para os ensaios de Lênin acerca da via prussiana (será que foi fortuito Paulo ter dedica seu doutorado ao filósofo da negação-da-negação?), pois agora os espíritos não são mais a expressão mal-afortunada do infausto nacional. Desse modo, ainda que corroborando Goethe (que é corroborado no século XX por Thomas Mann) que sentiu e lamentou o infortúnio alemão (Cf. p. 142), Hegel será aquele primeiro a buscar, como objetivo de toda a vida, inverter o “Espírito absoluto” (p. 143). Paulo Arantes é lapidar no trecho que interpreta essa posição hegeliana original e sua pode-se dizer – “como se a de recordar, na Fenomenologia, depois de fazer o curso do mundo desaguar na Revolução Francesa e na nova ordem social por ela sancionada, Hegel concluiu o capítulo sobre Liberdade Absoluta e o Terror” (p. 144).
Ora, a passagem da dialética como ação política tem seu primeiro termino (ou seu primeiro início…) no Lênin de Paulo. Estilizando aqui para voltar a Marx na sequência; tipologia leninista invocada por nosso filósofo-intelectual, a via prussiana teorizada pelo revolucionário bolchevique era o alerta para os letrados russos não se tornarem os novos alemães na “periferia” da periferia (Cf. pp. 150 e 151). Porque o “caminho prussiano para o capitalismo (p 151) é que lanços os alemães no conceito de Estado. (contudo, Lênin e os seus eram de disposição jacobina em um solo social fervendo insurreições.) Assim, Marx é a passagem determinado-contingente (paradoxos da vida intelectual) a Lênin – e a Paulo Arantes: que ainda seria ensinado por outro dialético, esse marxista-machadiano a escrever sobre nossa desfaçatez de classe.
Parte do empreendimento do autor de O capital foi romper com o “[intelectualismo] […] alemão [que] substituiu-se […] ao cidadão revolucionário” (p. 144). Aqui é o que Paulo Arantes vislumbrou – e ainda vislumbra – para o Brasil (e para si); na medida em que “da meditação intelectual” (p. 144) de acabrunhamento com o opróbrio nacional Marx agiu impulsionando tal articulação para que das “desvantagens do atraso” (p. 1444) irrompesse a revolução. Da formação singular (conceito-programa pauloarantiano) do país (Alemanha-Rússia-Brasil) poderia ocorre que a transformação social estivesse: inesperadamente ao alcance da mão” (p. 144). Sem perder o tino do intelectual incontido Paulo Arantes afirma que essa experiência histórica metamorfoseada e formação crítica levou Marx a superestimar situações limitadas, é o caso da rebelião dos “tecelões da Silésia” (p. 145).
Era a ingenuidade que tantas vezes intelectuais comentem na ânsia existencial (Sartre) da ação – de converter pensamento em práxis. De certa maneira, e a seu modo, Paulo Arantes é um “ingênuo” (que no ímpeto de racionalização de si para equilibrar, até compensar aquele, é visto às vezes como pessimista, derrotista, erros crassos evidentemente para quem não compreende o argumento esotérico do ceticismo organizado, voltarei a isso à frente) da dialética enquanto atitude política. – É que os intelectuais na autoperturbação de se tornarem práticos, homens (e mulheres) que ambicionam mais do que serem meramente a voz (secular) das lições do príncipe (Quentin Skinner), por vezes não recordam as admoestações de Kojève; que o intelectual não só fica restringido, existencialmente, na maioria das vezes ao reconhecimento pela sua palavra impressa por outros, como para ser cidadão da ação propriamente dita, dependeria, essa é a suposição das entrelinhas do fundador da filosofia hegeliana do desejo na França (Judith Butler) em diálogo com Leo Strauss no Da Tirania, do homem de ação (dos homens de ação no nosso caso, a multidão na história) que quer êxito, sucessos objetivos (Cf. Strauss-Kojève, 2016, [1950], pp. 205, 206 e 207[2]).
Voltemos ao circunscrito de nosso tema. Diz Paulo: “nesse sentido, para um bom número de intelectuais alemães a dialética podia aparecer como efetivamente redentora. Dos mandarins ao jovem Marx por certo algo muda na resposta do homem culto às frustrações do meio inóspito em sua inercia colossal […]” (pp. 152 e 153). Com efeito; a tardança da revolução poderia ser o impulso vulcânico da revolução mesma em outra notação. Na Rússia foi o que se deu. Os novos jacobinos do oriente, com Lênin na representação feliz do letrado especulativo-abstrato-prático (quem não se lembra dos motes leninistas: sem teoria-pensamento especulativo revolucionário não há ação revolucionaria ou análise concreta para situação concreta) redimiram os alemães. Paulo Arantes ainda está à espera da sua (redenção) nos seus 80 anos.
Daí a construção bem pensada no Ressentimento da Dialética… do ceticismo organizado. Esse é um dos tantos momentos erigidos por Paulo Arantes no esforço de organizar a inconstância e a volubilidade do intelecto crítico-abstrato (Cf. p. 226). O que Hannah Arendt jamais entendeu nos hommes des lettres, assim como seus antecessores Burke, Tocqueville e Cochin; (“a acompanharmos o juízo severo de Hannah Arendt, decididamente hostil às proezas especulativas da intelligentsia alemã […] e o [seu] reproche tinha lastro histórico […] [e] sua aversão ao extremo [a lev] a atribuir aos românticos alemães a invenção da frivolidade geral do pensamento moderno” (pp. 226 e 227)).
Entretanto, negar a “irresponsabilidade […] dos intelectuais” (p. 226) para Paulo é extirpar a condição enquanto tal de transmutar a dialética, no seu movimento teorético e subversivo, em ação política. A inquietação desabrida, a frivolidade disposta ao público (insurreto), lança os letrados e Paulo entre eles, na arena das disputas do tempo. Há custos e prejuízos; mesmo entre os que deveriam ser supostamente os seus. Nosso “frívolo” radical, que toma da pena e da palavra, das letras e da retórica prático-eloquente (porque) arrebatadora) enfrenta as condições em-si da “leveza de caráter” (p. 229): diga-se, que de há muito reduzida a nada na era dos conformismos de centro, das conciliações insolentes, dos papers de ocasião institucional, das políticas públicas de gestão.
O que ocorre em Paulo Arantes é a crítica cáustica e sem concessões – indomável e até rude do mundo tal qual ele se apresenta aos de baixo (Perry Anderson). De modo que é na articulação entre o ímpeto irredutível e “lábil” (p. 229) das letras da contradição com o sistema da dialética – essa mesma eivada do sopro infinito da insurreição – que Paulo faz aflorar do Ressentimento da Dialética… o ceticismo organizado. (A leitores e leitoras desse filósofo que andou entre escritores e críticos literários que ainda não entenderam seus ensaios Nihilismusstreit, Anacronismos na História Intelectual da Negação e Pequena Comédia do Niilismo de 1983.) ora, somente os que não vislumbram a emancipação efetiva e material – e muitos já não se lembram da epígrafe de Hegel na tese 4 do Sobre o conceito de história de Walter Benjamin, “lutai primeiro pela alimentação e pelo vestuário, e em seguida o reino de Deus virá por si mesmo” (Cf. Walter Benjamin, 2010, p. 223[3]) – não se encantam com a “skepis antiga” (p. 247) e moderna.
Há uma história da intelligentsia subjacente à skepis, vejamos o que nos conta Paulo; “no itinerário ziguezagueante do foi uma fronda espiritual, multissecular, entrecruzaram-se várias famílias intelectuais: humanistas, perronianos, libertinos, esprits forts, epicuristas, ateus, materialistas, livres pensadores etc. Uma história intelectual das Negações […]” (p. 248).
Nenhum processo de transformação radical, de sublevação política e social foi conseguido sem que o dispositivo cético estivesse enfeitiçando as mentes coletivas, populares, e dos que imbricam seus conceitos, suas abstrações, seus especulativos nesses e por eles são imbricados. O que seria de Lênin e dos sovietes em 1917 a acreditar na divindade inconteste dos que diziam ser a revolução naquele momento impossível, e o que dizer de Camille Desmoulins e Jean-Paul Marat ao lerem as certezas absolutas de Reflexões sobre a Revolução Francesa de Burke, já publicado em 1790 com o convencimento do fracasso[4] a difundir-se pela Europa contrarrevolucionária.
É que o ceticismo quer insistir, com sistematicidade, para que a dúvida, a “afinidade” (p. 253) com o pensar concretamente pela negação e via negação sobre tudo, resulte algo novo – imediatamente novo (Cf. pp. 252 e 253). Negatividade, recusa imanente absoluta (Cf. p. 263): são os intelectuais, e Paulo entre eles na periferia do sistema, “em nome da ação” (p. 263) e na ação política. Estilizando o argumento e a sua posição de dialético com vistas à “prática” (política, social, cultura) Paulo Arantes se resplandece na figura de Sartre; a skepis hegeliana (por que não marxista?) é uma espécie de cajado mágico na construção e criação de outros mundos possíveis – e necessários (para os de baixo). Não foi casual que Sartre traçou um paralelo entre o ceticismo organizado dos letrados endemoniados, o gesto dos trabalhadores e o efeito artístico da produção surrealista.
Nosso filósofo, então, segue o francês: “o trabalhador destrói para construir […] o surrealista inverte o processo, construindo para destruir [e os] hommes de lettres] a negatividade crítica […] [faz com que essa] destituição verbal [e da palavra que choca convenções] passem finalmente à ordem do dia e se faça[m] concreta” (p. 265). Há os que veem nisso pessimismo – mas Ressentimento da Dialética…, o programa-intervenção, o texto-testamento prático, e seu autor não se rendem à procura serena de uma política dos recintos que figuras bem-posicionadas e bem-intencionadas da esquerda contemporânea assume e patrocina (Perry Anderson). Ceticismo organizado; negatividade; espírito de contradição; desgarramento de alma; linguagem do não-imanente; aversão ao (falso) entendimento dos compromissos impostos são modalidades de ação política assentadas na dialética rebelde, na dialética que quer se fazer (e é…) subjetividade e voz dos de baixo.
É preciso, no entanto, terminar abruptamente esse texto. Pois ocorre por vezes que mimetizamos nossas influências, aqueles e aquelas aos quais subimos em seus ombros para olhar o mundo, tanto o mundo infeliz da luta de classes (no Brasil eminentemente travada por negros e negras como quem escreve estas linhas modestas) como o mundo belo de tantas coisas, e as minhas influências são variadas e múltiplas, do passado e do presente (Frantz Fanon e Perry Anderson, Marcel Proust e Walter Benjamin, Jones Manoel e Flávia Rios, Florestan Fernandes e Beatriz Nascimento, Leo Strauss e Giorgio Agamben, Luiz Augusto Campos e Vladimir Safatle) – e nesse caso o risco de certa prolixidade, não tão proseada como a de Paulo (são conversações para a rebelião), é imenso.
Posto isso; não é ocasional que os ensaios finais de Ressentimento da Dialética… sejam deslocados para a combinação entre o russo-italiano Gramsci e o nacional-popular. Neles Paulo é cristalino – que pouco foi ao longo dos seus 80 anos trazendo problemas de interpretação da sua obra e intervenções públicas –; “o que evidentemente mais sobressai neste projeto insólito é a gravitação [no] mundo em torno da função intelectual […] [que] malgrado” (p. 310) o espírito especulativo, volúvel, livre, de contradição, estende “a mão fraternalmente […] ao povo” (p. 310) e a “insatisfação” com o mundo como ele não deveria ser, “não é apanágio da intelligentsia [ela é] partilhada pelo povo miúdo das classes subalternas” (p. 32).
Paulo Arantes não é um bolchevique (ele vez por outra cifra suas mensagens citando a experiência russo): mas vivendo em um país de potencial subversivo, sempre contido pelo cinismo e a violência das elites brancas dominantes e racistas, a ele, Paulo, faltaram os bolcheviques.[5]
*Ronaldo Tadeu de Souza é pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ciência Política da USP.
Notas
[1] Todas as passagens citadas e de referência indireta seguem esse volume.
[2] Cf. Leo Strauss. Da Tirania: Seguido da Correspondência com Alexandre Kojève. São Paulo. É Realizações, 2016.
[3] Cf. Walter Benjamin – Sobre o Conceito de História. In: Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo, Brasiliense, 2010.
[4] Cf. Edmund Burke – Reflexões sobre a Revolução Francesa, Várias Edições.
[5] Bem entendidas as coisas concentrei esse texto sobre Paulo Arantes e seus 80 anos no Ressentimento da Dialética… que entendo ser seu principal e talvez maior trabalho e que revela suas posições como busquei expor; é evidente que há nisso, mesmo que comedidas, passagens arbitrárias na argumentação. Mas é o risco de quem escreve esse tipo de texto. Pois não é preciso dizer que a obra e o pensamento de Paulo Arantes são mais nuançados, com matizes positivas e negativas a serem observadas por outros e outras, sobretudo pelos que se dedicam a pensar a esquerda e seus intelectuais, bem como os que pesquisam na área de pensamento social e político brasileira.
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