Por LUIZ ROBERTO ALVES*
Todos supõem que há no país políticas públicas de cultura, cuidados da família, orçamento, educação, saúde, defesa, patrimônio etc. Não, não há. Houve
Diariamente, ouvem-se âncoras e comentaristas de rádio, imprensa e TV afirmarem isto ou aquilo sobre “políticas públicas”, quer os e as mais estudiosos/as, quer comunicadores que ouviram falar delas. Todos supõem que há no país políticas públicas de cultura, cuidados da família, orçamento, educação, saúde, defesa, patrimônio etc. Não, não há. Houve.
O que seria o contrário de uma política pública? Provavelmente, decretos, leis, portarias, normas, discursos intervencionistas e assemelhados que governam valores, procedimentos, disposições, ideias e tendências partidárias e ideológicas.
Do mesmo modo como seria impossível falar em Política Pública nos anos de 1920 e 1930, em parte ainda República Velha, também se torna impossível a sua existência, manejo e vigência no país do pior governante do planeta. Na antiga república ocorria a ausência de acúmulo de massa crítica para a formulação, experiência cotidiana de governança e avaliação de políticas. Uma adequada nomeação do que ocorria era a realização do serviço público, ou serviço ao público. E já era grande coisa! O que ocorria de bom nos governos das várias instâncias de poder não tinha a grandeza do que mais tarde se instituiu como política pública.
Convém desestruturar o senso comum acerca da existência de política pública sob governos lunáticos. Alguns argumentos do campo da administração são indispensáveis.
Draibe (2007, p. 30) sugere um momento adequado para a revelação da política social, ou pública social, na ação das Nações Unidas a favor de práticas mais duradouras e robustas de desenvolvimento das sociedades. Para tanto, cria uma nota em que localiza a consecução dessa relação entre desenvolvimento e política social para o bem-comum:
Foi Gunnar Myrdal quem explicitou originalmente tal conceito de desenvolvimento social, quando coordenou, em 1966, no Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, o grupo de especialistas encarregado de elaborar o estudo sobre a estratégia unificada de desenvolvimento social e econômico, orientada por quatro princípios normativos básicos: a) que nenhum segmento da população seja deixado à margem do desenvolvimento e das transformações sociais; b) que o crescimento seja objeto da mobilização de amplas camadas da população e que se assegure sua participação no processo de desenvolvimento; c) que a equidade social seja considerada igualmente no plano ético e no da eficiência econômica e d) que se confira alta prioridade ao desenvolvimento das potencialidades humanas, especialmente das crianças, evitando-se a desnutrição precoce, ofertando-se serviços de saúde e garantindo-se igualdade de oportunidades.
Para Draibe, a pedra-de-toque da equipe de Myrdal abre para as demais manifestações multilaterais, como a Declaração Mundial sobre a Proteção das Crianças (1990), a Cúpula do Desenvolvimento Social de Copenhague (1995), as Metas do Milênio etc.
O texto lapidar, que tem a ver com as recentes conceituações de Política Pública/Social se encontra com o texto de Capella (2007, p. 93), para quem os estudos pós-positivistas do campo das políticas “procuram mostrar que o processo de formulação de políticas está mais próximo do campo das ideias, da argumentação e da discussão do que de técnicas formais de solução de problemas”. Deste modo, Capella (p. 95) pode afirmar que:
Em determinadas circunstâncias, estes três fluxos – problemas, soluções e dinâmica política – são reunidos, gerando uma oportunidade de mudança na agenda (agenda setting, ou formulação de agenda). Nesse momento, um problema é reconhecido, uma solução está disponível e as condições políticas tornam o momento propício para a mudança, permitindo a convergência entre os três fluxos e possibilitando que questões ascendam à agenda.
De sua vez, Souza (2007:72-73) resume bem esse movimento:
*a política pública permite distinguir entre o que o governo pretende fazer e o que de fato faz;
*a política pública envolve vários atores e níveis de decisão, embora seja materializada nos governos, e não necessariamente se restringe a participantes formais, já que os informais são também importantes;
*a política pública é abrangente e não se limita a leis e regras;
*a política pública é uma ação intencional, com objetivos a serem alcançados;
*a política pública, embora tenha impactos a curto prazo, é uma política de longo prazo;
*a política pública envolve processos subsequentes após sua decisão e proposição, ou seja, implica também implementação, execução e avaliação;
*estudos sobre política pública propriamente dita focalizam processos, atores e a construção de regras, distinguindo-se dos estudos sobre política social, cujo foco está nas consequências e nos resultados da política.
Draibe nos mostra que as políticas sociais são reveladas no bojo dos debates dos anos de 1960 sobre desenvolvimento. É verdade que Laswell (1936) introduziu a expressão policy analysis bem antes. No entanto, como explica Souza, tratava-se de criar uma relação entre conhecimento científico e produção empírica dos governos. Quanto à política cultural, a partir da fundação da UNESCO sucedem-se conferências que fazem avançar o conceito de política cultural.
Por certo, a Constituição cidadã (a despeito de, hoje, estar mais furada e remendada que a tábua de tiro ao alvo/álvaro em Adoniram) insufla sentidos associados de políticas para o bem-comum, ordena formas de governança, propor conselhos, arranjos econômicos e políticos regionais com potencial inovador e, deste modo, institui um discurso novo de política para o público, para o povo. Ocorre, em decorrência, que somente governanças – e não governos – criam políticas, pois a tríade governo, organizações e instituições de cooperação social e setores de produção, distribuição e consumo da cidade/região adquire escala de participação, leitura da realidade e direito de interferir na distribuição orçamentária por critérios mais justos.
Deu-se, pois, em seguida a 1988 um conjunto de arranjos instituintes de políticas, mais nos planos locais e regionais. Quanto aos governos centrais, é indispensável que eles tenham à testa estadistas, pois a virtude decorrente da postura forja um funcionalismo público de segundo e terceiro escalões com as qualidades necessárias para coordenações de múltiplos procedimentos garantidores das políticas ao público. Tais políticas não são uma grade de conteúdos: saúde, orçamento, transporte, cultura, assistência, saneamento, educação. Ao contrário, são uma construção de valores desde a sua formulação à sua avaliação e seu aperfeiçoamento.
Nada disso existe no governo da figura sinistra. Deste modo não há políticas. Há projetos, segmentos de ações anteriores, normatizações de condutas, funcionalismo e burocracia que dão conta de obrigações de governo do modo como vemos, conhecemos e sentimos. Um de seus resultados é a morte injusta e absurda de mais da metade daqueles e daquelas que as famílias brasileiras perderam para o Sars Cov 2.
Esta seria a grande política pública brasileira a se iniciar em fevereiro de 2020, com amplo movimento de governança e intensa participação popular, empresarial. Em decorrência dessas forças, seriam possíveis ações de fechamento social, apoio decisivo aos empobrecidos e aos empreendedores necessitados e grande valorização da educação e da cultura como lugares de construção simbólica para a vida mais feliz e bela.
Nada disso se fez. Por tudo isso, um influenciador responsável não pode falar do que não há, políticas públicas A e B. Carece-se de dar nomes adequados à realidade, pois já é demais para este povo sofrido – e que muitas vezes, como sugeriu Paulo Freire, assume a ideologia dos dominantes – a irresponsabilidade discursiva das pessoas que teriam responsabilidade na liderança política e, ao fim e ao cabo, se comportaram como amigos fiéis da morte e do desalento. Estes são encontrados, às pencas, nos três poderes da triste república.
Se cabe dizer em que ocasiões se desenvolveram formas de governança capazes de instituir políticas públicas em obediência criativa à CF 1988, não há qualquer dúvida. Começaram no governo FHC e se desenvolveram amplamente no governo Lula. Este texto busca expressar um pensamento técnico-científico e, portanto, não deve nada ao discurso de palanque ou tribuna de câmaras e senado. Nada se deu em Collor, tentativas em Itamar, aberturas importantes em FHC e fartura construtora em Lula, caindo muito em seguida até chegar ao nada.
Em FHC há políticas efetivas de cultura, educação e processos econômicos no formato liberal, o que tanto associa o universo simbólico aos ditames do mercado quanto é capaz de abrir para direitos até então desconhecidos, como se viu com leis estimuladoras do fazer cultural e uma preparação para universalizar direitos em educação.
No governo Lula, os grandes artífices das políticas foram intelectuais e especialistas de segundo e terceiro escalões do serviço público, que teimaram em superar o governo ainda liberal e desenvolvimentista em que se encontravam. Eles e elas trabalharam como militantes a serviço de conferências locais, regionais, estaduais e nacionais, cujos resultados, escritos a muitas mãos, permitiriam governar o país – e bem – até o ano de 2050. Por certo, com uma inteligente leitura de novas realidades, mudanças legais e discursos adequados. Isso em todos os campos do saber e do fazer, da cultura que brilha ao esgotamento sanitário que ninguém vê. Tudo era um imenso processo de construção cultural. No seu interior, a sistematização do próprio núcleo formador da cultura, que é a educação, cresceu fartamente como política pública e chegou às pontas do sistema onde vivem os povos periféricos, ribeirinhos, nômades, quilombolas, indígenas. Essa gente ajudou a escrever as políticas. Quando elas não têm direito a fazê-lo, gora a política. Inexiste. Um trabalhador tem tanta sabedoria na construção de sua casa quanto o arquiteto que entrará com a ciência construtiva. Afinal, é a casa dele que se encontra na retina do cérebro, em efetivo processo construtivo.
Ora, o que está a fazer o governo insano, hoje, é o assassinato do que ainda tinha sinais de política pública no seu modo de conceber, implantar e avaliar. Tem o apoio submisso e capacho dos diversos escalões de governo, cada qual agarrado às bocas, bem do jeito que o lunático gosta. De norte a sul do país, buscam organizar-se movimentos de defesa e reconstrução do que sobrou, ou em busca do “novo”. Os mais belos e fortes movimentos se localizam entre trabalhadores rurais, na luta ecológico-ambiental, nos espaços culturais indígenas e quilombolas, nos pequenos empreendimentos de trabalho e renda. O movimento cultural está manietado e o campo da educação fervilha de teorias disputantes e, ao fim e ao cabo, tem dificuldade até mesmo de analisar e explicar as razões da armação tecnológica que está a assassinar a pedagogia e a didática, campos do saber indispensáveis para fazer educação como projeto de autonomia, liberdade e cidadania. O relativismo dos teóricos da educação é brutal. Também útil para as meras conversações, para as lives no momento em que o MEC não existe. Evaporou. Viva o MEC renascido e vigoroso pós 2022! Viva o Plano Nacional da Educação, mortinho da silva, no qual os professores e as professoras, educandos e educandas têm direitos reais, agora também gorados.
Influenciadores e profissionais de mídias poderiam ajudar na crítica à derrocada das políticas. Ao contrário, ao tentar sinalizar que conhecem o conceito, repetem e repetem coisas desconexas sobre políticas públicas, o que leva água ao moinho bolsonarista. Primeiramente por demonstrar uma realidade supostamente factível que, ao perder seus símbolos, morreu sufocada pelos insanos da república. Linguagens não podem perder símbolos. Do mesmo modo, a reprodução do inexistente sugere um país normal, mas aqui não há quase nada normal. Muito menos políticas. Ainda quando são críticos do governo, muitos influenciadores fazem um trabalho morto, pois não vão à raiz das contradições do governo insano. Assim, atuam como redentores do mal e colaboram com a obsessão do lunático, 2022.
Logo no ano em que começaremos a comemorar o extraordinário, polêmico e criativo tempo modernista iniciado em 1922. Valha-me Deus!
*Luiz Roberto Alves é professor sênior da Escola de Comunicações e Artes da USP.