Por que Donald Trump venceu?

Imagem: Rosemary Ketchum
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Por RUI ALEX ABREU*

Trump surfa na nossa incapacidade de disputar maiorias sociais que não se enxergam no sistema, que nestas últimas eleições são dois terços da população: um terço que votou em Trump e um terço de abstenção

Passadas mais de duas semanas das eleições presidenciais estadunidenses é incontornável a retumbante vitória de Donald Trump.

Trezentos e doze grandes eleitores, cinquenta e três senadores, setenta e cinco milhões de votos (vitória no voto popular), vinte e sete governadores e seis juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos nomeados por republicanos; são alguns dos números da nova legitimidade institucional e política que sustenta Donald Trump neste novo ciclo político.

Depois de ter perdido sua reeleição em 2020, como o povo devolveu a confiança política a um ex-presidente que atentou contra direitos básicos das mulheres, da população imigrante, que tem dezenas de processos contra si no judiciário (onde tem até várias condenações) e que contribuiu para a morte evitável de centenas de milhar de cidadãs e cidadãos durante a pandemia da covid? Afinal, por que Donald Trump venceu?

Neoliberalismo é seu nome

A chegada de Ronald Reagan ao poder em 1979 trouxe um aprofundamento do capitalismo num formato neoliberal que colocou o estado totalmente a serviço do grande capital, em particular do capital financeiro. Reduziu a capacidade de dinamização econômica do Estado em cenários recessivos, entregou aos privados setores estratégicos da economia, cortou os programas de apoio social, desmantelou as leis trabalhistas e as organizações de defesa da classe trabalhadora; rebaixou as condições de vida da população colocando a classe trabalhadora numa maior desproteção social, criou mecanismos de roubo do orçamento federal através da dívida pública. Foi dentro desta composição econômica e social que o PIB norte americano se multiplicou por nove, crescendo de três trilhões de dólares para vinte sete trilhões nestes últimos quarenta e cinco anos.

Setorialmente os EUA lideraram mundialmente transformações importantes na economia em torno duma globalização que alimentava as taxas de lucro das suas megacorporações. As Bigtech(s), então em crescimento, implantaram a economia digital, a indústria deslocalizou-se para sul e oriente em busca de fatores de produção mais baratos, com destaque para a mão de obra. O capital financeiro ocupou parcelas cada vez maiores da economia, secundarizando o papel do estado como agente dinamizador e subjugando os setores primário e secundário à lógica e prática da capitalização financeira.

A condição da classe trabalhadora ia acompanhando essas mudanças estruturais econômicas, sendo empurrada para a precariedade sem que sindicatos e comissões de trabalhadores tivessem capacidade de resistência às alterações nas relações de produção que o neoliberalismo impunha. O salário real foi desfalecendo, encontrando-se atualmente pouco acima dos valores de 1980, retirando do fator trabalho a partilha da imensa riqueza criada nos últimos quarenta e cinco anos. Tudo com a complacência da esquerda, que no centro do império foi (e é) quase inexistente em termos organizados e não quis dar respostas às dificuldades impostas ao povo. Este quadro econômico neoliberal norte americano foi replicado pelas economias ocidentais, dando origem a conjunturas semelhantes de intensa acumulação de capital e empobrecimento generalizado da população na Europa e restante América.

É neste contexto que surge Donald Trump e ressurgem os movimentos de extrema direita para coletar apoio no estado de desesperança da população trabalhadora que não vê neste sistema neoliberal a melhoria de suas condições de vida, tendo garantido para si e para as gerações vindouras condições de vida piores que de seus pais, identificando na esquerda (normalmente anêmica de proposta) uma parte integrante do sistema. Um sistema capitalista que despeja suas crises em cima de quem trabalha com ajustes fiscais cada vez mais draconianos sustentados numa ideologia que individualiza os problemas e soluções, a qual não sofreu o devido contraditório no debate e na proposta pela esquerda nas últimas décadas.

A luta de classes não esgrimida dos dois lados cria campo fértil para a extrema direita e condições para a contínua degradação das condições de vida duma classe trabalhadora cada vez mais politizada pelo neoliberalismo e neofascismo. Sem alternativa de esquerda e com perspectivas de luta limitadas, os “trumpismos” surgem como catalisadores do descontentamento geral, sendo a opção política que mais aparenta mudar o atual estado de coisas.

A economia de Joe Biden

Os indicadores apresentam uma economia em recuperação no final do mandato de Joe Biden. A inflação, refletindo o corte de circuitos econômicos com a guerra na Ucrânia atingido 9.1% em junho de 2022 (sendo a maior dos últimos quarenta anos), situava-se em setembro deste ano nos 2,4%. Também a taxa de desemprego acomodou-se entre os 3,8% e os 5%, durante o mandato democrata, sendo considerada pelos analistas liberais como uma situação de pleno emprego. O PIB cresceu 6,1% em 2021 gozando do crescimento negativo de -2,2% de 2020 provocada pelo impacto da pandemia da covid, de 2022 a 2024 cresceu entre 2,5% e 2,9%, o que dá aos mesmos analistas o discurso de uma economia forte, de crescimento sólido.

O que os indicadores liberais não mostram são os 25% de aumento do custo dos produtos que constituem a cesta básica e os 30% de aumento do custo da energia, afinal a inflação não é igual para todos; não mostram os quarenta e um milhões de cidadãos e cidadãs norte americanas que se encontram em estado de pobreza, afinal o PIB não cresce para todos; não mostram um mercado imobiliário inflacionado pelos bancos e grupos de investimento que vêm nos imóveis mais uma fonte de especulação e lucro, colocando os preços inatingíveis para a maioria dos trabalhadores; não mostram uma classe trabalhadora esmagada nas suas condições laborais que, para fazer face às despesas quotidianas, acumula dois e três trabalhos para poder levar um salário digno para casa. Afinal o pleno emprego de Joe Biden é repleto de precariedade e miséria.

No plano externo, por obrigação imperial, impôs-se a estratégia da economia do caos com a promoção da instabilidade e conflitos como método para atrasar o crescimento chinês. A guerra econômica à China tem criado reflexos inflacionários devido à forte interdependência que existe entre as duas economias. O maior parceiro comercial dos EUA tem sido a China que só foi substituída pelo México após o início da guerra na Ucrânia. A exigência estadunidense de separar economicamente as potências e seus campos de influência consuma-se através da política belicista e das diversas guerras econômicas que a casa branca promove. O quadro de confronto com a China promete aumentar com a eleição de Trump, assim como as contradições econômicas que essa política externa provoca internamente, sendo a inflação uma ameaça real para o poder de compra da classe trabalhadora.

Por que não venceu a esquerda?

Cansada está a análise sobre a queda do muro de Berlim e a consequente desorientação política provocada em toda a esquerda mundial. De maior marca ficou o acomodamento da esquerda aos lugares conquistados eleitoralmente e o seu afastamento da classe trabalhadora.

O jargão liberal tomou lugar no discurso da esquerda e a radicalidade de proposta foi substituída pela competência técnica, como se o papel da esquerda fosse agora o de fazer uma melhor gestão de orçamentos neoliberais que a direita, estabelecendo aqui e acolá uma medida, uma assistência social ou subsídio. A esquerda tornou-se defensora dum capitalismo humanizado, ente que conseguiu existir em tempos idos da guerra fria e se materializou nas sociais democracias europeias da segunda metade do século vinte. Na política global de hoje o “capitalismo de rosto humano” não tem qualquer lugar, sendo seus preconizadores uma espécie em vias de extinção.

Participando o movimento global que a política fez para a direita, a esquerda perdeu suas âncoras ideológicas, suas referências políticas e seu trabalho de base que lhe permitia ter penetração social.

São desenvolvidos diagnósticos de conjuntura cada vez mais distorcidos pelos indicadores liberais, tomados como fieis tradutores das condições de vida das populações. Crescimento do PIB é encarado como determinante absoluto da boa política, retirando o detalhe de quem ganha com esse crescimento; a taxa de desemprego é apresentada como taxa de satisfação laboral, mesmo que a precariedade extrema esteja camuflada nesses números; a inflação reveste-se de medidor do poder de compra, não contrastando seu peso em rendas tão desiguais como as que existem atualmente.

Os objetivos deslocaram-se da disputa política pelo poder para a eleição de representantes na democracia burguesa. As propostas tornaram-se inevitavelmente pouco esclarecidas, seguindo os diagnósticos feitos de forma errada. Programas cada vez mais pastosos surgem na incapacidade de comunicar com a classe trabalhadora, tentando com medidas liberais acertar nalgum termo decisivo do voto. Propostas neoliberais como educação financeira nas escolas, PPP(s) e concessão de serviços públicos a empresas privadas começaram a ser lugar comum em programas e governanças de esquerda. A esquerda não só deixou de apresentar uma proposta de sociedade diferente como foi assimilada e atualmente é identificada como “o sistema”.

Até na autocrítica perdeu-se a referência, (aqui também me incluo). Termos como “institucionalização”, “descaracterização”, “perda de identidade” e “afastamento das bases” ofuscaram o bom velho “aburguesamento” que tão bem define o processo pelo qual passaram a esmagadora maioria de partidos e quadros da esquerda ocidental.

É conhecida a incapacidade transformadora da esquerda per si, não conseguindo seu voluntarismo ultrapassar o tempo da luta de classes. São as contradições de classe que determinam esse tempo de luta. Mas Donald Trump e “trumpinhos” só correm na nossa insuficiência de questionar e propor a superação do capitalismo que hoje, perante o choque da socioesfera com a bio e geoesfera, assume forma de extermínio. O neofascismo só cresce na mescla da esquerda com o capitalismo neoliberal.

Também é sabido que o neofascismo de aparência antissistêmica não passa de um endurecimento político do projeto liberal, dando uma relação musculada entre o estado e a classe trabalhadora, garantindo maiores margens de lucro para os bilionários, consolidando a desigualdade social como objetivo a perseguir. Não é assim possível derrotar a política neofascista sem combater a base econômica liberal que a sustenta. A estratégia da frente ampla para derrotar a extrema direita goza desse pecado original: tenta derrotar a cabeça política neofascista alimentando seu corpo econômico neoliberal.

Donald Trump corre na nossa incapacidade de disputar maiorias sociais que não se reveem no sistema, que nestas últimas eleições são dois terços da população: um terço que votou em Donald Trump e um terço de abstenção.

Esta é uma fase da luta de exigência teórica, de valores e de práticas. Clarividência na proposta social e econômica é fundamental para conseguir superar o mundo trumpista que se edifica. Medo e aburguesamento só garantirão que regimes neofascistas se imponham nos tempos que aí vêm.

*Rui Alex Abreu foi autarca eleito pelo Bloco de Esquerda em Oeiras e Lisboa.

Referências


https://pt.tradingeconomics.com

https://pt.countryeconomy.com/governo/pib/estados-unidos

https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz0m3l7r5yko

https://www.census.gov/library/publications/2024/demo/p60-283.html

https://www.statista.com/chart/26882/us-energy-costs-natural-gas-gasoline-electricity


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