Por uma história da Mátria Brasil

Dora Longo Bahia, Revoluções (projeto para calendário), 2016 Acrílica, caneta à base de água e aquarela sobre papel (12 peças), 23 x 30.5 cm cada
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Por PATRÍCIA VALIM*

A representatividade da diversidade de mulheres na história desse país é um caminho respeitoso contra todo tipo de violência

Na manhã de 7 de novembro de 1822, em Lisboa, o periódico O Brasileiro em Coimbra encerrou o editorial a favor da ruptura do Brasil com Portugal com uma carta de uma menina baiana relatando as lutas pela independência em Salvador e um manifesto intitulado “Brasileiras!”

Um dos trechos dizia: “Por acaso eu preciso dizer-vos que tomei o exemplo desta heroína baiana? Desta espartana? Mostrai que não sois tão somente fontes de prazeres e delícias! Mostrai que sois igualmente fontes de virtudes domésticas, de virtudes civis e de patriotismo! Assim excedereis os homens que injustos vos chamam de entes passivos. Sedes livres se quiseres ser mais bela! […] Sem liberdade, não só o homem, o belo sexo e seus encantos nada valem!”

Até o ano passado, a autoria do periódico e do manifesto foi atribuída a um homem pelo teor das críticas políticas e pelo fato de ter sido escrita em primeira pessoa: Cândido Ladislau Japiassú Figueredo de Mello, político e amigo de Dom Pedro I.

Dois séculos depois, sabemos que o manifesto é, na verdade, de autoria de uma menina baiana de 10 anos chamada Urânia Vanério, que também escreveu um dos mais importantes panfletos sobre a guerra pela independência do Brasil na Bahia, publicado em fevereiro de 1822, e depois uma tradução de uma novela americana chamada Triumpho do Patriotismo, em 1827.

Usar a identidade de um homem foi uma das várias estratégias que as mulheres do tempo ido utilizaram para ocupar a esfera pública e lutar por direitos. Por isso, foram perseguidas, criticadas, tiveram suas lutas questionadas e apagadas nos livros de história.

A sufragista baiana Leolinda Daltro, por exemplo, foi chamada de “mulher do diabo” na imprensa carioca em 1909 porque defendia publicamente o direito à cidadania política das mulheres: votar e ser votada.

Ser chamada de bruxa e feiticeira ou ser considerada uma mulher com poderes “demoníacos” foram estratégias perversas de criminalização do exercício político das mulheres do passado. É o caso de Anésia Cauaçu. Em 1910, muito antes de Lampião e Maria Bonita, ela formou seu bando de cangaceiros para defender sua família dos ataques sangrentos de um coronel de Jequié, no interior da Bahia.

Os conflitos tomaram tal dimensão que tropas policiais foram enviadas para capturá-la, viva ou morta. O bando foi derrotado, mas disseram que Anésia conseguiu escapar porque tinha o poder de virar uma planta, conforme ela contou ao jornal A Tarde, em 1986.

Outra estratégia de apagamento das mulheres na história é diminuir suas lutas, atribuindo-as a um parente, que pode ser pai, filho, marido ou amante. Leopoldina e a Marquesa de Santos são bons exemplos, mas não são os únicos.

Hoje, conhecemos a história da professora Celina Guimarães Viana, a primeira mulher a votar na América Latina, em uma eleição que se tornou viável por meio de uma lei estadual de 1927, em Mossoró, no Rio Grande do Norte.

Durante muito tempo, essa conquista foi atribuída às articulações políticas do marido, o advogado Eliseu de Oliveira Viana. Logo depois, porém, a professora encaminhou um telegrama ao presidente do Senado, pedindo que o direito ao voto feminino fosse reconhecido no país.

Nacionalmente, o direito de uma mulher votar e ser votada foi conquistado em 1932 e reconhecido na Constituição de 1934. No entanto, no Código Civil de 1916, uma mulher casada só poderia ter um emprego, viajar, fazer transações bancárias e votar mediante autorização do marido.

Essa tutela só terminou com o reconhecimento da igualdade de direitos e deveres entre mulheres e homens na Constituição de 1988, há 35 anos apenas.

A igualdade de gênero foi um marco importante, mas a violência contra meninas e mulheres não para de crescer no Brasil. Como a história pode ajudar a explicar e reverter isso?

Primeiro, acabando com a “invisibilidade ideológica”, que tenta apagar, silenciar e criminalizar as lutas das mulheres do passado. Não foi por falta de fontes que isso aconteceu, como mostra o início deste artigo.

É preciso querer dialogar com as mulheres do passado por meio de outros questionamentos, incluindo a violência original dos arquivos, historicamente constituídos por homens brancos e com o poder de decidir quais sujeitos e documentos seriam descartados ou preservados.

Depois, destacar os modos pelos quais as diferenças e assimetrias que as oprimiram foram construídas e como elas se organizaram e lutaram contra isso: é um ganho para a sociedade, em especial para os homens.

A representatividade da diversidade de mulheres na história desse país é um caminho respeitoso contra todo tipo de violência. Vamos juntas, juntes e juntos construir um futuro melhor por meio de uma revisão radical do nosso passado: uma história da Mátria Brasil.

*Patrícia Valim é professora de história na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Autora, entre outros livros, de Conjuração Baiana de 1798 (EDUFBA).

Publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo.

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