Primeiros anos de (des)governo

image_pdf

Por VLADIMIR SAFATLE*

Prefácio do livro recém-lançado, organizado por Paulo Martins & Ricardo Musse

Esse livro é, inicialmente, a expressão da capacidade de intervenção e análise da Universidade brasileira diante de um dos momentos mais sombrios de nossa história. Nele, as leitoras e leitores encontrarão textos analíticos e de intervenção a respeito do processo de explicitação do colapso da democracia formal brasileira a partir da ascensão de Jair M. Bolsonaro.

Enquanto o Brasil confrontava-se com o fim do sistema de pactos da “Nova República”, com o retorno das matrizes do fascismo nacional, com a explicitação da guerra civil não declarada do estado policial contra as populações submetidas historicamente à pauperização e desaparecimento, a Universidade compreendeu que era tarefa sua intervir, alertar e mobilizar. Nesse sentido, ela lembrou daquilo que lhe define, a saber, ser o espaço de exercício da crítica implacável do existente, na crença de que tal exercício é condição fundamental para que a sociedade encontre forças para criar novas situações e se confronte com a verdade de sua condição, por mais dura que ela seja.

Quando o governo Bolsonaro subiu à cena política, um de seus alvos reiterados e preferenciais foi a Universidade brasileira. Contrariamente àqueles que afirmavam ser a Universidade brasileira espaço estéril, produtora de um saber que não teria contato com as fontes vivas da sociedade, esse governo entendeu muito bem a força do que se produz em nossos campi, assim como entendeu a transformação que está a se operar a partir da integração irreversível das camadas populares a nosso corpo discente e docente. Na Universidade, gesta-se novas potencialidades de configuração da sociedade brasileira. Por isso, para governos como esse, ela deve ser quebrada e calada.

Em sua luta contra a Universidade, o governo Bolsonaro não temeu mobilizar discursos e práticas que nos remetem aos mais dramáticos momentos do fascismo histórico. As acusações de “marxismo cultural”, as “denúncias” de “permissividade sexual” entre nós podem parecer dignas de anedotário, mas elas têm método. Elas ressoam as acusações de “bolchevismo cultural” e “bolchevismo sexual” que já foram ouvidas nos anos trinta do século passado. Pois elas indicam focos reais de luta.

Toda transformação social efetiva começa por mudar o lugar natural dos corpos, criar novas circulações e visibilidades de desejos. E a Universidade brasileira tem um papel importante nesse processo, ao forçar debates sobre as estruturas disciplinares da vida social e a maneira com que os corpos são sujeitados, classificados e construídos. Mas toda transformação social efetiva começa também por questionar as estruturas de reprodução material e seus circuitos de riquezas. Isto, a Universidade brasileira fez desde sua consolidação, através das mais diversas tradições e perspectivas.

A consciência de habitarmos uma sociedade cuja célula fundamental é o latifúndio escravagista primário-exportador, com suas divisões ontológicas entre dois tipos de sujeitos, a saber, aqueles reconhecidos como “pessoas” e aqueles postos na condição de “coisas” foi uma arma que a Universidade brasileira apontou contra aqueles que procuravam nos fazer acreditar que nossa sociedade saberia lidar com suas contradições em um ritmo tranquilo de conciliações.

Nesse sentido, há de se lembrar que as inúmeras conciliações que vimos nas últimas décadas foram incapazes de garantir transformações graduais e seguras. Sequer elas foram capazes de desarmar os setores militaristas e fascistas da sociedade brasileira. Nesse exato momento, o Brasil se debate com riscos concretos de derivas autoritárias ainda mais profundas. Em momentos como esses, as sociedades contam apenas com a plasticidade de sua revolta e a insistência na confiança em sua própria capacidade de criação.

São exatamente nesses momentos que as Universidades se tornam mais importantes, que seu trabalho deve se tornar mais inegociável e irreconciliado. Livros como esse demonstram como várias gerações de pesquisadores, vindos de várias regiões do país são capazes de mobilizar sua sensibilidade, seu sentido de urgência para colaborar e lutar ao lado dos mais vulneráveis e espoliados.

*Vladimir Safatle é professor titular de filosofia na USP. Autor, entre outros livros, de Maneiras de transformar mundos: Lacan, política e emancipação (Autêntica).

 

Referência


Paulo Martins & Ricardo Musse (orgs.). Primeiros anos de (des)governo. São Paulo, FFLCH, 2021, 448 págs.

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
7
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
14
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES